Imaginemos uns dias de sonho em Ranholas
ou em Chiqueiro. Nada
temos nem contra nem a favor de localidades como Ranholas ou Chiqueiro, a
primeira fica para os lados de Sintra, a outra para a Lousã. Acontece
simplesmente, que achamos graça aos seus nomes, pois têm algo de ousado, de
sensual e de refrescante.
Ambos hão de ser sítios tão bons ou tão
maus como outros quaisquer, no entanto, quem nos lê, há de concordar connosco,
que será preciso uma certa dose de imaginação, para se pensar em Ranholas ou em
Chiqueiro como destinos de sonho. E daí, talvez não! A ver vamos!
Em boa verdade, Ranholas e Chiqueiro só
aparecem nesta nossa conversa para dar um certo exotismo à nossa introdução.
Com efeito, são destinos que, mesmo não nos fazendo sonhar, ainda assim, têm um
certo apelo indefinido, um qualquer “je ne sais quoi”. Dir-se-ia até, que são
nomes mágicos, com algo de voluptuoso, que têm o condão de nos despertar
imediatamente a imaginação.
Que dramas, aventuras, loucuras, amores e
desamores estarão neste exato momento a ocorrer pelos lados de Ranholas e
Chiqueiro? Que mistérios esconderão os seus becos e vielas? Que segredos terão
as suas gentes? Que ambições? Que devassidões? E concupiscências
carnais pelas alcovas, haverá? E será que por lá há uma tasca onde se coma bem
e barato? E a pinga? Será que é da boa?
Ao certo não sabemos a resposta para
nenhuma destas questões, mas seja como for, estamos em crer que há certamente
extraordinários acontecimentos em Ranholas e em Chiqueiro, que desafiam
grandemente a nossa imaginação, disso não temos quaisquer dúvidas.
Dito isto, terminamos por aqui esta
introdução, pois o nosso assunto de hoje é precisamente a imaginação, e não
propriamente o que se passa em certas pequenas localidades desta nossa nação.
Falemos então de imaginação. Quem não se
recordará de ser jovem ou adolescente, de estar entediado no interior de uma
sala de aula, e sonhadoramente se pôr a olhar por uma janela a ver o que ia
acontecendo lá por fora?
Nesses momentos, por alguma razão ou acaso
do destino, passava sempre alguém que nos despertava a imaginação. A partir
daí, e desde que nenhum professor nos chamasse à atenção, compúnhamos na nossa
mente toda uma imensa ficção. Se porventura puséssemos por escrito essa ilusão
que então tínhamos imaginado, era certo que daria um romance com muitas e
longas páginas.
Foi isso mesmo que um dia fizeram os The
Temptations, só que em vez de um romance, saiu-lhes uma canção, o que na
verdade não tem mal nenhum. Nela diziam eles assim: “Each day through my window
I watch her as she passes by. I say to myself, You're such a lucky guy".
Enfim, estaria tudo muito bem, não se desse o caso de que afinal era só imaginação. Seja como for, uma coisa é real, os The Temptations são o cúmulo do Cool. É verificar, “Just my imagination”:
Cool era como o clima não estava por
alturas do maio de 68 em Paris, muito pelo contrário, andava tudo ao rubro. As
manifestações eram diárias e toda a gente tinha audaciosos projetos. Dizeres e
slogans não faltavam, sendo que uns quantos eram bem giros e imaginativos, como
por exemplo, “Abaixo o realismo. Viva o surrealismo” ou “É proibido proibir”,
ou ainda “Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei o quê” e um dos mais
célebres, “Sejam realistas, exijam o impossível." O entusiasmo era tanto,
que houve alguém a proclamar, que a imaginação devia tomar o poder. Não tomou,
mas ficou a ideia.
Nos dias de hoje, a capacidade de imaginar
anda muito pelas ruas da amargura. Não é invulgar, que quando convidados por um
docente a elaborar um texto de tema livre e a usar a sua imaginação, haja uns
quantos alunos, a alegar não saber sobre o que escrever.
Quando a custo se põem finalmente a
redigir, há uma grande probabilidade que o façam contrariados e o texto seja
acerca de uma qualquer banalidade, pouco ou nada dizendo de jeito ou
proveito.
Constatando tal situação, o diagnóstico
dos docentes é quase sempre consensual, muitos miúdos têm poucas vivências que
os enriqueçam e, por consequência, falta-lhes imaginação.
As causas para isso são sobejamente
conhecidas, muitas crianças e jovens pouco mais leem, que não seja o que veem
nos respetivos smartphones. Para além disso, não frequentam teatros nem museus,
vão ao cinema esporadicamente, conversam pouco e, por fim, demonstram também
escassa curiosidade e diminuto conhecimento do vasto mundo em seu redor.
Em síntese, quando os seus horizontes não
se estendem para lá do que lhes aparece nos ecrãs dos telemóveis, dos tablets
ou dos computadores, é natural que não lhes ocorra nada de particularmente
interessante sobre o que escrever. Tema livre para um texto em que tenham de
usar a imaginação, só pode portanto ser tarefa que pouco lhes agrade.
Claro que nem todos os alunos são assim,
há uns quantos, não muitos, a quem tal diagnóstico não se aplica. Esses dispõem
de livros, levam-nos a museus, a passar férias no estrangeiro, conversam com
eles e fazem-nos interessarem-se pelo mundo em que vivem.
Resulta daqui, que temos nas escolas dois tipos de alunos, uma minoria privilegiada e com vivências, que lê, visita, viaja, ouve, conversa e vê, e tem possibilidades de dar asas à sua imaginação, e os restantes, a maior parte, que por terem um contexto cultural e social menos favorável, ou por mero desleixo, não lê, não visita, não viaja, não ouve, não conversa e não vê, tendo por isso poucas ou nenhumas oportunidades de se deixar levar pela sua imaginação.
Como é óbvio, a escola tentará nivelar esta
desigualdade imaginativa, possibilitando a todos os alunos livros para ler,
indo com eles a museus, dando-lhes filmes a ver, levando-os ao teatro, e também
a visitar palácios, castelos e outros monumentos. Acerca disso em específico,
nada mais há dizer, é o que a escola é suposto fazer. O mais que haverá a
dizer, é que há um outro tipo de trabalho a fazer.
É certo que ler, ver, ouvir, visitar e
viajar só faz bem à imaginação, mas dito isto, o que melhor lhe fará, é mesmo
aprender a contemplar. E é esse o outro trabalho de que falamos.
À escola não basta possibilitar acesso à
leitura, ao património, à arte e à cultura, tem também de ensinar a contemplar.
A apreciar e entender o que se lê, visita, ouve e vê. Só assim pode fazer com
que a imaginação de certos alunos se liberte das suas amarras e voe.
De pouco servirá mostrar aos alunos
museus, palácios e castelos, levá-los ao cinema e ao teatro ou dar-lhes livros
a ler, se estes não os souberem perceber. O mesmo é dizer, que não aprenderam a
contemplar.
A nossa premissa, é que a aprendizagem da
contemplação não se inicia pelo Louvre em Paris, pela leitura de Shakespeare,
com uma visita ao Palácio de Versailles ou ao Museum of Modern Art de Nova Iorque.
Não se inicia sequer com uma visita a sítios mais perto, como a Gulbenkian, Serralves,
o Museu Abade de Baçal ou o Palácio de Queluz.
Não se inicia também pela leitura de
Camões ou de Pessoa, até porque, há muito quem não tenha acesso a nada disso, e
mesmo tendo-o, pouco percebe do que lê ou observa. Inicia-se sim, por coisas
bem mais simples, a que todos têm acesso independentemente do lugar onde estão
e dos seus contextos socioculturais.
Claro que, estejamos nós em Ranholas ou em Chiqueiro, ou a olhar lá para fora pelo vidro da janela de uma qualquer escola, dificilmente se terá oportunidade de contemplar belas pinturas ou esculturas ou de ouvir declamar poesia, não significa isso, que aí nada haja para imaginar. Por vezes, basta contemplar um vulgar saco de plástico a bailar ao sabor do vento, para a nossa imaginação o acompanhar e começar a ver, a ler e a viajar. Ora vejam lá, vendo este saco a bailar, o que conseguem imaginar:
A cena acima
é do filme American Beauty e dá-nos a ver um saco de plástico como jamais o vimos.
Vermos como jamais o vimos é contemplá-lo. Contemplá-lo faz-nos imaginar…
Se para
imaginar basta contemplar um simples saco de plástico, para escrever um texto
livre também o bastará. Assuntos não faltam, é só ensinar a ler, ver, ouvir, visitar e viajar sem
sair do lugar.
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