Íamos nós
passeando pela Rua Augusta afora até ao rio, quando de repente, passado o arco
da dita, ao atravessarmos o Terreiro do Paço, nos deparámos com um estranho
objeto. Andámos mais um pouco e subitamente, zás, um outro.
Que coisas
seriam aquelas, com formas tão bizarras e inabituais? Não precisámos de pensar
muito, pois o mistério logo se desfez, mais não eram afinal do que obras de
arte contemporânea.
Descobrimos
que o autor das referidas obras se chama Tony Cragg, e é um muito considerado e
premiado escultor britânico. Ficámos mais descansados por o saber, pois na
verdade, como diz o bom povo português, o saber não ocupa lugar.
Ainda assim,
quisemos saber um pouco mais, nomeadamente, a razão por que estariam ali
aquelas esculturas. Ali, no meio da praça, à chuva e ao frio, e não recolhidas
e aconchegadas no quentinho de um museu. Num de arte contemporânea, pois com
certeza, que outro havia de ser.
A razão para
tal era simples, o Museu do Chiado tem atualmente patente uma exposição
dedicada a Tony Cragg, no entanto, não quer que a dita se restrinja ao espaço
museológico, pretende que o bom povo português, mais concretamente aquele que
habitualmente não frequenta exposições nem museus, possa apreciar arte
contemporânea, e é por isso que a trouxe para o meio da rua.
Para quem
quiser saber mais sobre a mostra, aqui fica o site do Museu do Chiado:
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/programacao/2076
Pelo Terreiro do Paço passam a cada dia milhares de pessoas, muitas vão apanhar os barcos para o Barreiro, para Cacilhas e para o Seixal, pois logo ali adiante está a Estação Sul e Sueste. Ao lado desta, há uma outra escultura de Cragg, é esta, a da imagem abaixo:
Imaginamos
nós, que ao passarem pelas esculturas, todos os milhares que vão a correr para
os barcos, se detenham por um momento e reflitam numa passagem publicada no
texto do catálogo da exposição: “A escultura, para Cragg, representa um modo
ativo de interrogar o mundo e constitui um catalisador para aumentar a nossa
sensibilidade em relação àquele”.
Não temos
dúvidas que a obra escultórica de Tony Cragg possa constituir um catalisador
que aumenta a nossa sensibilidade relativamente ao mundo, o que temos dúvidas é
que isso suceda precisamente no Terreiro do Paço.
Pensemos na
Maria (nome fictício), senhora humilde mas honesta e trabalhadeira. Após uma
cansativa jornada laboral, costuma diariamente apanhar o barco das 18h05 para
regressar ao seu lar. Normalmente apressa-se, só que, ao deparar-se com as
esculturas de Cragg, detém-se e contempla-as longamente.
Será crível
que tenha tido um súbito aumento da sua sensibilidade relativamente ao mundo?
Será crível que a escultura, como anunciado no catálogo, tenha servido como
catalisador para isso?
Não queremos
ser pessimistas, mas estamos cá desconfiados que não. O mais certo é a que a
Maria se tenha detido e esteja agora a debater-se com as seguintes questões:
“Mas que coisa é esta? Mas afinal o que é isto?”
Não nos
parece provável que a Maria, sozinha em pleno Terreiro do Paço e não tendo
qualquer outro enquadramento ou explicação, olhe para as esculturas de Tony
Cragg e tenha uma epifania, ficando subitamente a apreciar arte contemporânea.
O mais que
pode suceder é atrasar-se e perder o barco das 18h05 e só apanhar o seguinte. É
de maneira que já não vai fazer grande coisa para o jantar, vai ser um prato
embalado e congelado e toca a andar.
Abaixo uma imagem das famosas latas de sopa de tomate de Andy Warhol, obra icónica da arte contemporânea:
Não
é a primeira vez, que o Terreiro do Paço e as suas imediações servem de palco a
exposições de arte contemporânea. Ainda há uns tantos meses sucedeu o mesmo,
dessa vez foi o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian que decidiu trazer para a
rua algumas das obras da sua colecção, como por exemplo, a que se encontra na
imagem abaixo, que é de Carlos Bunga.
Na
eventualidade de algum dos nossos leitores estar sem saber onde se encontra a
obra de arte na imagem acima, esclarecemos que a obra se encontra na parte da
frente do contentor. Vista de frente, torna-se imediatamente mais perceptível o
trabalho do artista.
Segundo
o site do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, a obra intitula-se Home e dá continuidade ao pensamento
político e poético que o artista tem desenvolvido em torno das ideias de
nomadismo e de casa, que são aqui reveladas e questionadas.
Não
nos interpretem mal, nós gostamos quer do trabalho de Bunga, quer do de Cragg, o
nosso ponto, ao contrário do que possa parecer, não é esse. O nosso ponto é que
é tão pouco provável que alguém não habituado a contemplar peças de arte
moderna e contemporânea, as possa compreender assim sem mais, só por de repente
se deparar com elas no meio da rua.
É
tão pouco provável que tal suceda, como que alguém não formado em matemática ou
ciências possa compreender as fórmulas de Einstein só por as olhar.
Na
verdade, o significado da arte moderna e contemporânea, não é tão evidente como
o era o da arte clássica e antiga. Quando em séculos anteriores, alguém via uma
pintura ou uma escultura que representasse uma cena bíblica ou histórica, uma
paisagem, uma natureza-morta ou um retrato, era absolutamente evidente para
quem via, o que estava a ver, agora já não é assim.
Abaixo uma imagem com Velásquez (1599-1660) versus Picasso (1881-1973).
Dito
isto, que sentido fará colocar obras de arte contemporânea no meio da rua,
assim sem mais, para que quem eventualmente por lá passe as veja? No nosso
entender, pouco ou nenhum. É tão-somente um ato falhado.
Se
o objetivo deste tipo de iniciativas, é de que a arte contemporânea seja
acessível a todos e não apenas a uma pequena elite intelectual, esse acesso
constrói-se por se dar informações e referências a quem vê para que possa
compreender o que vê, e não por largar obras de arte no meio da rua e depois
logo se vê.
Para
terminar, deixamos-vos um exemplo do que neste âmbito se fez em Londres, que
foi coisa bem mais divertida do que as que se fazem e fizeram no Terreiro do
Paço.
Em
2012 foi construída uma imensa torre de mais de cem metros de altura, cujo
autor foi o consagrado artista britânico contemporâneo Anish Kapoor, o nome da
obra é The ArcelorMittal
Orbit.
A
utilidade da torre não é praticamente nenhuma, puseram lá um observatório
astronómico, mas para o que ela verdadeiramente serve é para ser contemplada,
tal e qual qualquer uma outra obra de arte.
Segundo
o artista, a intenção era construir “o impossível” e assim representar uma nova
estrutura de pensamento para o século XXI, que não assente em certezas
lineares, mas que resulte sim de aprendizagens que se desenvolvem em forma
espiral, ou seja, numa órbita na qual se vão cruzando diversos saberes e
conhecimentos.
Em
síntese, a obra de arte de Anish Kapoor tenta demonstrar que é possível erguer
“o impossível”.
Por
outro lado, também dá para escorregar e viver a arte contemporânea por dentro.
Comentários
Enviar um comentário