Um
dado muito preocupante que tem vindo a ser revelado por investigações
neurológicas recentes, é que quanto mais tempo jovens e crianças passam a olhar
para os ecrãs eletrónicos, menor é a sua capacidade de identificar os
sentimentos dos outros, mesmo daqueles que lhes são mais próximos.
A
capacidade de perceber o que os outros sentem desenvolve-se, hoje como sempre,
conversando cara a cara, aqui e agora. Havendo pouca conversa, há consequente
fraco entendimento. A propósito disto, lembrámo-nos da D. Ermelinda.
No outro dia, a D. Ermelinda, a velhota
que mora no rés de chão do prédio que fica de esquina, proclamou do alto da sua
janela para quem a quisesse ouvir: “Com
estas desgraças todas que agora vão pelo mundo, ainda assim, do que sinto mais
falta é das conversas que antigamente havia.”
A nossa visão do mundo em pouco ou nada
coincide com a da D. Ermelinda, pois esta crê que dantes é que era, que hoje em
dia já não há respeito nenhum, que isto é tudo uma grande bandalheira, que eles
estão lá todos é para se encherem e que é preciso é que venha alguém para pôr
ordem nisto. Ou seja, isto é tudo aquilo em que nós não cremos.
Assim como os achaques, os bicos de
papagaio e outros males, a desgostosa visão do mundo da D. Ermelinda, mais não
é do aquele tipo de coisas que nalgumas pessoas costumam aparecer com a idade.
A uns dá-lhes mais forte, a outros nem tanto, a D. Ermelinda enquadra-se no
primeiro caso.
Dito isto, há um ponto em que não podemos
deixar de concordar com a D. Ermelinda, de facto, a conversa faz mesmo muita
falta, sendo que, cada vez mais, se conversa menos.
Por estranho que tal vos possa parecer,
relativamente à falta de conversa, a D. Ermelinda está alinhada com as mais
recentes teses científicas elaboradas por conceituadas universidades
internacionais.
Nesse ponto em específico, a D. Ermelinda é de uma modernidade e contemporaneidade a toda a prova, capaz não só de fazer inveja à vizinhança, mas também aos mais prestigiados institutos tecnológicos e científicos existentes por esse mundo fora.
Se
a D. Ermelinda porventura conhecesse a investigadora Sherry Turkle do Massachusetts Institute of Technology
(MIT) e os estudos por ela
realizados, certamente que lhe diria assim:
-
A menina tem muita razão, vê-se bem que o paizinho e a mãezinha lhe deram educação,
não é como essa canalhada que anda para aí.
Os
estudos de Sherry Turkle alertam-nos para a crise de empatia resultante do excessivo
uso dos aparelhos electrónicos, algo que acaba por nos impedir de ver as
emoções que naturalmente despontam quando duas pessoas conversam frente a
frente.
Conversar
é a forma mais eficaz de criar laços, mas Turkle diz-nos no seu livro Reclaiming
Conversation, que esperamos cada vez mais da tecnologia e cada vez menos
das pessoas: “Sacrificámos a conversa
pela mera conexão”.
Aparentemente, até há pouco tempo atrás,
conversar com gente com opiniões contrárias às nossas e discuti-las com
argumentos, ideias e cara a cara, era algo que se fazia com gosto e prazer,
agora parece que já não. Quem
quer ouvir o outro, quando tem uma caixa de comentários pronta a usar mesmo à
mão de semear?
Não muito longe da esquina onde mora a D.
Ermelinda, há um restaurante, o único das redondezas. É um estabelecimento
antigo, semelhante a tantos mais que pela cidade existem. Modesto,
relativamente pequeno e com a televisão inevitavelmente acesa. A programação não
é muito variada, ou é o telejornal ou um desafio de futebol.
O patrão serve às mesas enquanto a mulher
cozinha. A comida é barata e o que mais saída tem são os pratos do dia. A
confecção dos alimentos é tal e qual a programação da televisão, é sempre a
mesma, não há cá inovações ou exotismos culinários, é o que é e basta.
Como já terão adivinhado, não é a
sofisticação gastronómica que ali nos leva nem sequer o facto de ficar perto. A
razão é outra, é porque há lá gente amiga ou simplesmente conhecida, que está
sempre pronta a conversar acaloradamente sobre tudo e mais alguma coisa, e
também acerca daquilo de que nada sabe ou entende.
Quem nos lê
poderá pensar que é um desperdício de tempo conversar sobre tudo e mais alguma
coisa e também acerca do que nada se entende, contudo, quem assim o pensar, pensa
mal.
Uma conversa
não se julga apenas pelo seu conteúdo. Aliás, na maior parte das conversas, que
não em todas bem-entendido, o conteúdo é provavelmente o que menos importa.
Aquilo a que
normalmente se chama “conversa de café”, que a bem dizer pode decorrer num
restaurante, numa pastelaria ou até em casa à mesa de jantar, não vale tanto
pelo que se diz, mas mais pela forma como se diz.
A “conversa
de café” é uma espécie de
arena onde por vezes há circo e noutras há luta livre. Seja qual for o tipo de
espectáculo, os acessórios ou as armas mais usadas, são figuras de estilo como
a ironia, o sarcasmo, a metáfora, o eufemismo ou a hipérbole.
Também há quem na “conversa de café” se
queira mostrar mais intelectual e não se fique pelas figuras de estilo acima
referidas, vai daí espeta-lhe com uma apóstrofe, uma elipse ou até mesmo com
uma anáfora, coisa que impressiona sempre a assembleia presente.
À D. Ermelinda é que não lhe agradam as figuras de estilo. Apesar de dizer que a ela a conversa lhe faz muita falta, não aprecia ver os outros a fazer “conversa de café”. É muito literal relativamente a isso, são todos os bêbados e uns vadios, é o que ela diz.
Estando muita gente cada vez mais desabituada de conversar, vê-se em igual
medida crescer o receio de se falar. A confiança vai-se esvaindo e vem o
medo de nos sentirmos julgados pelo que dizemos.
Por assim ser, confiamos antes na tecnologia para
preencher o silêncio, afastar o tédio e nos conseguirmos expressar sem temor. O
pavor de nos sentirmos julgados pelos outros é tanto, que a indústria
tecnológica esforça-se para desenvolver a
inteligência artificial, para que possamos falar com objetos
em vez de com pessoas. As aplicações digitais de conversação são já hoje uma
realidade.
Abaixo
uma imagem de um robot chinês destinado a essa função. Segundo a empresa
fabricante, este robot está desenhado para conversar com as pessoas e melhorar as
suas emoções e estados de
ânimo. Não acreditamos que a D, Ermelinda fosse nesta cantiga, Em qualquer dos
casos, mesmo que quisesse não podia, o preço do bicho é de 230 Euros e a
reforma não lhe dá para isso.
Um
dia estávamos à conversa com a D. Ermelinda que nos contou que antigamente
viviam no prédio dela o Manel merceeiro e o Zé taberneiro, ambos há muito
falecidos.
Segundo
a senhora, quando
conversava com o Manel merceeiro sentia que ele era o homem mais inteligente
que alguma vez tinha conhecido. Já quando conversava com Zé taberneiro, era ele
que a fazia sentir a pessoa mais inteligente do país inteiro.
Por
isso, não há que ter medo de conversar. Há conversas divertidas, há outras
parvas, assim como as há sérias e importantes, e outras ainda, que é só para se
passar o tempo. Há quem pela sua conversa nos seduza, como há também quem goste
de nos contrariar. Há as que nos fazem rir e outras que nos põem a chorar, mas
o que no fundo mais importa, é que à conversa não fechemos a porta.
Inspiremo-nos
em Pedro Cabrita Reis, o consagrado artista contemporâneo nacional, que muito nos
orgulha enquanto nação nobre e imortal, para não encerrarmos portas às
conversas.
Se observarmos a sua obra abaixo, “South Wing”, certamente que muito haveria a conversar. Nem queiram saber o que a D. Ermelinda teria a dizer caso frequentasse galerias de arte conceptual. De certeza que entrava, olhava, saía, batia com a porta e nunca mais sobre o que viu se iria calar, era conversa para anos…
Mas
para quem eventualmente não esteja tão familiarizado como a D. Ermelinda com as
ousadias estéticas da arte contemporânea, deixamos uma canção para servir de
inspiração a deixarem as portas abertas à conversação. Começa assim: “Abre-me a
porta, apaga-me a luz, preciso falar-te agora…”. Ousemos e ouçamos:
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