Como diria Calimero, é uma injustiça. Há uns quantos, os favoritos, que façam o que fizerem, são sempre apaparicados. Mesmo fazendo grossas patacoadas ou dizendo grandes asneiradas, aos favoritos, tudo lhes é perdoado. Em sentido diametralmente oposto, os injustiçados, queixam-se que mal põem o pé em ramo verde, logo lhes cai o mundo em cima.
Os injustiçados são neste caso, os que queriam ser os favoritos e não o são. Acham-se vítimas de uma injustiça e por isso esforçam-se, agitam-se e fazem tudo para brilhar, mas mesmo com tanta azáfama, o mais que lhes dizem, é que tão-somente cumpriram a sua obrigação e, muitas das vezes, nem isso.
Já aos favoritos, para brilharem, de pouco mais precisam do que aparecer. Mesmo sem que nada de especial façam, basta-lhes pouco fazerem para serem imediatamente elevados à condição de super-heróis.
A vida é injusta? Ah pois é. É tão injusta, que há uns cujo destino é serem desconsiderados e outros a quem o destino concedeu a graça de serem amados. Porquê a uns e não a outros? Isso não se sabe. O que se sabe é que ninguém escapa ao seu destino.
Tudo isto vem de muito longe. Já na Bíblia e logo no início, no Génesis, se conta uma história a esse propósito, na qual estiveram envolvidos dois irmãos. Caim esforçava-se por agradar a Deus, não havia nada que não fizesse. Abel apenas ia fazendo o que fazia, conforme muito bem lhe aprazia. Caim trabalhava arduamente a dura terra no seu dia-a-dia. Abel era pastor, levava a vida a sonhar enquanto passeava os seus rebanhos pelos verdes campos.
Em determinado momento, Caim e Abel fizeram oferendas a Deus. Caim apresentou os frutos que com o seu labor fez crescer do solo. Abel ofereceu as primícias e a gordura do seu rebanho. A oferta de Abel agradou a Deus, enquanto que a de Caim não. Ficou evidente que Abel era de Deus o preferido. A coisa foi de tal maneira, que roído de inveja e ciúme, Caim não se aguentou, e o seu irmão Abel matou.
Entremos agora por uma sala de aula adentro, também aí há e sempre haverá o favorito. Pode ser um excelente, um razoável ou até um mau aluno, para o caso tanto faz. O favorito não o será pelos seus méritos académicos, mas sim por alguma outra razão adjacente a essa, ou então só porque sim. Assim, sem mais nem porquê.
Em princípio, um professor nunca demonstrará de um modo explícito ou intencional que tem um favorito. À partida tudo fará para tratar todos os alunos por igual, razão pela qual, ser o favorito do professor, pode ser algo de que o dito aluno não tenha consciência, mas mesmo que não se saiba o preferido, pressente-o.
Esse pressentimento dar-lhe-á uma confiança que, passe-se lá o que se passar ao longo da sua vida futura, jamais o irá abandonar. Nenhuma nota que obtenha num teste ou no final de um ano escolar, será tão decisiva para o favorito na forma como ele se vê a si mesmo, aos outros e ao mundo, como o saber-se ou pressentir-se o preferido do professor.
Por rigor profissional, muitos professores negarão, inclusivamente para si próprios, que tenham um aluno favorito, todavia, todos o terão. Na escola como em qualquer outro local, haver um favorito é coisa tão antiga como o mundo.
Logicamente, havendo um favorito, haverá igualmente todos os outros que não o são. À larga maioria desses, ser favorito ou não, é coisa que tanto se lhes faz como se lhes fez, porém, há sempre uns poucos que o desejariam ser e sentem ou pressentem, que o lugar a que julgavam ter direito lhes foi roubado.
É a esses poucos, os que queriam ser mas não são, aqueles a quem nós chamamos os injustiçados, que é igualmente outra coisa que existe desde que o mundo é mundo.
“Fulana é a queridinha da professora!”, “Beltrana é a santinha da turma!”, “Ciclano é o preferido dos professores!”, são o tipo de coisas que os injustiçados costumam espalhar acerca dos que invejam. A maledicência, a intriga e a lamúria nunca nascem no seio daqueles muitos para quem tanto lhe faz como lhes fez serem ou não os favoritos, surge sempre pelas diligências daqueles poucos que se sentem roubados ou usurpados.
Claro que no contexto deste texto, estamos a falar de alunos em idade escolar, consequentemente, têm muito tempo pela frente para mudar, para se educarem e para perceberem que ninguém lhes roubou o lugar ou usurpou seja o que for. E é isso o que sucede com a maior parte das gentes, crescem e esquecem.
O mal são aqueles raros, que uma vez crescidos, adultos e saídos da escola, vão continuar a sentir-se roubados e usurpados por causa dos muitos outros favoritos que encontrarão ao longo da sua existência.
Um injustiçado, no estrito sentido em que aqui usamos o termo, que o continua a ser em adulto, é alguém capaz de se alimentar durante uma vida inteira à base de ressentimentos.
O que um injustiçado já crescido não compreende nem nunca compreenderá, é que um favorito não escolheu ser favorito, não foi algo que quis, nem pelo qual se bateu ou esforçou. Aconteceu-lhe simplesmente ser o escolhido.
O jornal Ionline publicou há uns tempos testemunhos de alguns professores relativamente aos seus alunos favoritos. Pela leitura do texto, percebe-se claramente que os escolhidos dos docentes, o são pelas mais diversas razões, e que portanto, alimentar ressentimentos e imaginar roubos e usurpações, é coisa que não faz qualquer sentido.
Antonio Salieri (1750-1825) foi um músico italiano, compositor e maestro. As suas obras eram muito apreciadas em toda a Europa no final do século XVIII. Com apenas 16 anos rumou a Viena à corte do imperador José II, ao serviço do qual desenvolveu toda a sua carreira musical.
Prometeu a Deus permanecer celibatário, para que pudesse devotar toda a sua vida à música. E assim o fez. Era um homem muito bem sucedido, cujo talento era por todos admirado.
Nisto, passados uns anos, chega à mesma corte de Viena um jovem músico, Wolfgang Amadeus Mozart, que rapidamente se transforma na estrela maior e no favorito de todos. É aclamado como um génio, remetendo Salieri para um plano secundário.
Salieri não consegue compreender o que sucedeu. Mozart é uma pessoa irreverente, imatura, lasciva e, de um certo modo, até irresponsável. Salieri sacrificou toda a sua vida à música, Mozart anda em festas, come, bebe, corre atrás das mulheres e no entanto, é dono de um imenso talento. Salieri sente-se injustiçado, Deus devia ter-lhe concedido todo aquele talento a ele e não ao outro.
Enquanto Salieri trabalha longa e arduamente para compor as suas melodias, a Mozart tudo lhe parece vir num instante. Pega na caneta e no papel, e subitamente, quase de repente, compõe uma sinfonia genial. Salieri não se conforma que Mozart seja o “Preferido de Deus”. Reza a lenda que o terá envenenado, embora isso nunca tenha sido provado.
A imagem abaixo é do filme “Amadeus” de 1984, que relata a história de Mozart e Salieri.
Se já antes falámos da Bíblia e de Mozart, falemos agora de Rod Steward. Bem sabemos que não são coisas equiparáveis, contudo, Rod cantou um dia uma canção em que logo para abrir as hostilidades faz uma clara distinção entre uns e outros, ou seja, entre favoritos e injustiçados: “Some guys have all the luck. Some guys have all the pain.”
Terminamos por aqui, deixando-vos o vídeo da canção que, a bem dizer, não é nenhuma obra-prima. Mas mesmo sendo o penteado, a roupa e a coreografia exageradamente “anos 80”, ainda assim, vale a pena ver o Rod a queixar-se das injustiças que a vida lhe faz:
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