Olhando apenas para a rede pública, no pré-escolar os docentes têm uma idade média de 55 anos. Já no 1° ciclo, a média é de 54. Se olharmos para o 2º, 3°ciclo e secundário, verificaremos que a situação é semelhante, com bem mais de metade dos docentes chegados a uma idade claramente acima dos 50 anos. Feitas as contas, Portugal tem atualmente os mais velhotes professores de toda a Europa, é um dado oficial. Vai um cálice?
Como era expectável, excepto num ou noutro caso pontual, tal assunto foi olimpicamente ignorado por toda a comunicação social, que terá certamente coisas muito mais importantes para noticiar. Para além do mais, todos sabem que em Portugal também ninguém quer saber de literatura para coisa nenhuma. Os interesses nacionais são certamente outros, vá-se lá saber quais.
“Misericórdia” surgiu quando a mãe de Lídia Jorge, então internada num lar de idosos no Algarve, lhe pediu que escrevesse um livro com este título. A história decorre entre 2019 e 2020, ano da morte da mãe da autora, que foi uma das primeiras vítimas da Covid-19 no sul do país.
O texto é ficcional e corresponde ao diário do último ano de vida de uma idosa chamada Maria Alberta Nunes Amado, mais conhecida como Dona Alberti. Os pensamentos que lhe vão ocorrendo são, segundo as suas palavras, demasiado vastos para a sua cabeça e igualmente para o volume do seu coração.
Dona Alberti habita numa residência sénior, como agora se diz, e está perfeitamente consciente da degradação que o envelhecimento lhe vai trazendo. Ainda assim, não se abstém de atos de rebeldia contra a “ditadura da realidade” que vive e a rodeia, como quando se recusa a participar em atividades supostamente lúdicas organizadas pelo lar, considerando-as lamentáveis.
A narrativa não se centra somente no envelhecimento e sim no que é a uma vida humana inteira, que mesmo sendo fugaz e frágil, é igualmente feita de embriaguez, entusiasmo e encantamento.
Talvez haja realidades das quais podemos fugir ou fingir que fugimos, mas o envelhecimento é coisa que não se pode eludir. É certo que há quem disfarce muito bem a idade que tem, porém, apenas o conseguirá fazer por fora. O tempo que já se viveu, ninguém o pode negar ou dele escapar, por dentro, ele molda-nos completamente.
Para além disso, há uma enorme diferença entre “o desejo absoluto de não aceitar a ditadura da realidade” e o tentar fugir dela ou querer disfarça-la. Em boa verdade, são coisas praticamente opostas. O desejo absoluto assemelha-se a uma embriaguez, enquanto uma fuga ou um disfarce, evidentemente que não.
Qual é o problema dos professores estarem a ir para velhos? O problema é que, como quaisquer outros de outras profissões, vão a pouco e pouco perdendo a capacidade de se embriagarem com a vida, com a juventude, consigo mesmos, com os outros, com o futuro e com tudo. Em síntese, começam a ansiar por sopas e descanso.
À medida que vão envelhecendo, começam cada vez mais a pensar na aposentação e a aceitar a ditadura de uma futura realidade em que andem de pantufas, e por consequência, sentem cada vez menos o desejo absoluto de se embriagarem, de correr riscos e de viver as aventuras do presente.
Há poucas coisas de que necessitemos tanto para viver o presente, como da embriaguez. Bebe-se pela mesma razão que se faz arte, para levitarmos e nos transcendermos, ou seja, porque não aceitamos a ditadura da realidade, pois que esta é coisa demasiado séria e sóbria.
Deves andar sempre bêbado. É a única solução
para não sentires o tremendo fardo do tempo,
que te verga os ombros e te dobra sobre a terra.
É preciso embriagares-te sem trégua…
…para não seres como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
Embriaga-te sem cessar. Com vinho, poesia ou virtude…
Há muitos docentes e não só, que anseiam por se reformar e dizem que em tal ocasião sim, irão finalmente gozar do seu tempo conforme mais desejam. Vão então viver a vida.
Nós olhamos e vemos tantos e tantas que já assim antes pensaram, a viver a vida em bancos de jardim, a jogar à bisca, a passar os dias a ver os programas de TV da manhã, da tarde e da noite e, por fim, a ir parar aos lares, onde há coisas tão divertidas para se passar o tempo como aprender a fazer tapetes de Arraiolos, convívios musicais com artistas locais, excursões a Fátima e grandes jogatanas de bingo. Em resumo, para muitos, não há dúvida alguma que terem ido para a reforma, foi como se lhes tivesse saído a sorte grande.
Robert Mitchum (1917-1987) foi uma imensa estrela nos anos de ouro de Hollywood. No entanto, nunca se conformou aos ditames da indústria cinematográfica, o mesmo é dizer, nunca aceitou que a realidade não pudesse ser diferente.
Os estúdios tiveram de se adaptar a ele e indo revendo os seus procedimentos. Ainda Mitchum não era ninguém em Hollywood e já estava a contestar as práticas lectivas implementadas. Era hábito que os admitidos como aspirantes a atores frequentassem uma escola onde lhes ensinavam os jeitos e trejeitos da representação, Mitchum disse-lhes que não. A frase que então proferiu tornar-se-ia célebre: “Ir para a escola para aprender a ser actor é como ir para escola para aprender a ser alto”.
As suas recusas em fazer coisas como sempre tinham sido feitas são lendas de Hollywood, tendo isso durado uma vida inteira. Desde que começou a sua carreira até que a terminou nunca envelheceu, quis sempre inovar e experimentar novas e originais formas de atuar e representar.
A princípio todos estranhavam, mas posteriormente acabavam por o seguir. Facto pouco comum, era o de ser adorado pelo grande público, mas simultaneamente muito respeitado pela crítica e pelos intelectuais.
Jamais se aposentou e quando já estava com uma certa idade, constatou que as gentes da sua criação, uma vez envelhecidos, dedicavam grande parte do seu tempo a cuidar da saúde, adoptando estilos de vida saudáveis. Como sempre, recusou-se a aceitar a ditadura da realidade. Questionado sobre o assunto, afirmou o seguinte: “Hoje em dia toda a gente faz jogging, é uma moda. Não tenho nada contra. Já tentei algumas vezes, mas entorno sempre o whisky”.
Abaixo uma foto do homem, num dia em que foi à praia.
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