A verdade é que cada vez mais se fala de menos coisas. Leiam-se os jornais, vejam-se as TV’s e escutem-se as conversas do dia-a-dia. De que se fala? Da carestia, das notícias, do futebol e se vai estar briol ou fazer sol. Também se diz que a família vai bem muito obrigado, e que chegando o final do mês e havendo carcanhol, tudo corre menos mal.
Feitas as contas, já quase ninguém fala da melodia de uma canção, de liberdade, de amor, de arte, da alegria, do infinito e, muito menos ainda, dos poetas e da sua poesia.
Saberíamos nós o que é um herói ou uma odisseia, se nunca tivéssemos lido o poeta grego Homero? O que conheceríamos nós dos descobrimentos portugueses, para além de meros factos e datas, se Camões não tivesse escrito “Os Lusíadas”? E sem poesia, alguma vez desconfiaríamos que o amor é um fogo que arde sem se ver ou que verdes são os campos de cor de limão e assim são os olhos do meu coração? Estamos cá convencidos, que não havendo poetas, certamente que tudo isto e muito mais desconheceríamos.
Por assim ser, vamos hoje ver o que cantam os poetas portugueses de agora, ou seja, que sentem e dizem. O mais certo é que as suas palavras não se fiquem pela espuma dos dias e vão a lugares muito mais fundos, do que as velhas e gastas palavras das habituais conversas fiadas de todos os dias.
Agora como sempre, são os novos poemas que nos trazem de volta o tempo em que todas as coisas estremeciam só por murmurarmos uma certa palavra. Um tempo em que acreditávamos que todas as coisas eram possíveis de ser ditas. Um tempo em que as conversas continuamente se renovavam e não se limitavam às coisas do dia-a-dia, antes se espraiavam pela melodia de uma canção, pela liberdade, pelo amor, pela arte, pela alegria, pelo infinito e pela poesia.
Comecemos por Catarina Nunes de Almeida, que nasceu em 1982. O que nos diz a poeta que sente, que no fundo, é o mesmo que dizer-nos o que atualmente todos nós sentimos e somos.
O que nos diz é que crescemos, ficámos mais velhos e os nossos amigos também. Mas dito isso, diz-nos ainda que não nos esquecemos daqueles dias distantes(?) em que fomos jovens ou crianças:
Os amigos são assim fazem grandes viagens
fazem músicas que já passam na rádio
fazem filhos e sopas de pacote
fazem filas nas repartições de finanças
fazem pequenas hortas no terraço
fazem trinta anos
mas no fundo estão ainda de giz na mão
a separar as palavras graves das palavras esdrúxulas
estão ainda nalgum canto escuro do varandim
de caderno pousado no colo
a aprender a travar o primeiro cigarro
Continuemos com uma outra poeta: Renata Correia Botelho, nascida em 1977, que contraria as lições da escola primária, e muito particularmente aquela em que se dizia que as frases se iniciam sempre com letra maiúscula. No entanto, também ela regressa aos seus dias de infância:
viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.
entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.
E agora um poeta: Rui Pedro Gonçalves, nascido em 1973, que nos fala de coisas de adulto: da bolsa, de jantares no Gambrinus e, sobretudo, de dívidas e dúvidas.
Eu não sabia
Mas o sol acaba de nascer
Com as cotações da bolsa de Lisboa.
Abriu em queda.
É menos luminoso este dia do meu Verão.
Este sol de gravata
E jantar no Gambrinus
Faz-me arrepios
Causa-me depressões cársicas
E faz com que fuja
E encontre noite
Depois das bolsas fechadas
(pelo menos da minha)
Acho que qualquer lugar de engate é mais decente
Que este sol fingido
De juros
Onde os raios chegam a prestações
Onde quer que esteja a vida
Quem diz gostar de poesia
Quem finge viver e cruza os dentes na gravata do seu cinismo
Que viva este sol
E que possa brilhar
Nos dias que restam
Até que sejamos considerados
Simplesmente,
Lixo (sem dívidas, nem dúvidas)
Vamos a uma outra poeta, Joana Serrado, nascida em 1979, que diz doerem-lhe os cafés e a sua cidade. É um poema de amor:
Doem-me os cafés da minha cidade
os que fecham ao domingo
os que fecham para obras
os que fecham para férias
os que fecham indefinidamente
os que fecham por fechar
os que não precisam de fechar e se trespassam trespassando-me.
Sei que vou morrer com eles, sei que vou morrer sem eles.
Sei que o teu corpo é um corpo perecível, corruptível.
Sinto a tua morte nos meus ossos e não consigo salvar-te.
A tua frigidez, a tua alvura apodrecida
a maneira como os teus maxilares se adormecem um no outro.
Só o perfume das violetas que brotam do teu corpo me faz acalmar.
Dói-me a cidade que escolhi para morrer.
Não tenho lugar para escrever um poema de amor.
Por fim, o quinto poeta, Rui Lage, que nasceu em 1975. O poema intitula-se “A moral da história”. História que é só uma, a que vai desde o tempo em que brincávamos, até ao momento em que para lá dos sessenta pedimos a reforma. Nesse entretanto, partilhamos um gelado:
Deixamos passar o
outono, o inverno,
a primavera, o verão,
e fazemos de conta
que lhes sobrevivemos
como se tudo não passasse
de inofensiva e reversível
sucessão
Passeamos de mãos dadas,
temos filhos e casamos,
pedimos a reforma,
partilhamos o gelado na praia
junto à rebentação,
apertamos o casaco na gola
quando as folhas se deitam,
pisamos papoilas em caminhos
de aldeias abandonadas,
olhamos a água no tanque
quando levamos o cão à rua
de madrugada,
e dizemos: é isto a vida, é isto
o real
(e assim nos enganamos)
como meninos
livres para brincar junto do poço
enquanto a mãe não está a olhar
ou fala ao telefone,
ou prepara o almoço.
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