Um oximoro é uma figura de estilo em que se exprime um paradoxo, associando dois conceitos opostos com o objetivo de criar um novo sentido. Um instante eterno, um contentamento descontente, uma lúcida loucura ou um nada que é tudo, são exemplos poéticos de oximoros.
Um oximoro ao associar palavras antagónicas tem algo de surrealista. Um oximoro ao juntar o radicalmente diferente tem algo de utópico.
Um oximoro é coisa de poetas e artistas.
Para se saber dar cabo de palavras, não há melhor do que se ser português, temos um talento inato para tal. Mesmo as mais poéticas palavras, tarde ou cedo, acabam por ganhar em Portugal um sentido jocoso, corriqueiro ou vulgar.
Pense-se por exemplo, no uso que por vezes fazemos da palavra artista. Em princípio, a palavra artista designaria alguém com um dom ou uma vocação para produzir coisas belas e profundas, no entanto, há casos em que assim não o é. “Saíste-me cá um artista”, é uma expressão que popularmente significa, que o dito, mais não é do que um mero habilidoso, um trapalhão ou um trapaceiro, que sem demasiados escrúpulos, lá se vai safando conforme consegue e pode.
Se porventura em determinados contextos, se substituísse a poética, nobre e elevada palavra artista, pela muito mais prosaica e corriqueira palavra bisca, o entendimento seria quase o mesmo. Com efeito, “Saíste-me cá uma bisca”, tem em certas situações um significado praticamente equivalente ao de “Saíste-me cá um artista”. Em síntese, muitas serão as frases, em que artista e bisca são uma e a mesma coisa.
Abaixo uma pintura do artista italiano Alessandro Siviglia: “Spritz e Bisca”
Há exemplos sem fim de palavras e expressões assim, cujo significado passou de poético a trivial, como por exemplo, a palavra utopia e todas as que dela derivam. Noutros lugares, um utópico é um sonhador, um visionário e um criador de futuros possíveis e imaginários.
Um utópico é alguém cujo desejo é levar o mundo para a frente caminhado contra o vento para realizar o que se pensava ser irrealizável. Uma utopia é portanto um destino ao qual ainda não se chegou, mas ao qual se poderá vir a chegar, é um “ainda não” e não um “nunca”.
Utopia rima com esperança, confiança e crença, mas não por cá, pelo nosso Portugal. Aqui a coisa é bem diferente. Um utópico é uma espécie de parvo, louco ou tonto, pois acredita que as coisas poderão vir a ser diferentes do que são.
Na nossa amada pátria, a palavra utopia é usada quase como se fosse um sinónimo de algo impossível de concretizar, de uma tontice ou de uma disparatada fantasia.
A opinião geral, é a de que não devemos levar a sério uma utopia, pois o mais certo era irmos perder tempo, dado que no fim acabaria por inevitavelmente ficar tudo tal e qual antes estava. Como não diria Lavoisier, que disse uma outra coisa: nada se cria, nada se perde, nada se transforma.
Com efeito, por aqui somos pouco dados a utopias e a aventuras. Somos mais de viver como habitualmente e mandar vir o prato do dia, que para quem é bacalhau basta. Por aqui não vale a pena ter-se ideias e andar-se por aí com ilusões. É deixarmos-nos estar sossegados e não pensar muito no assunto, que há de passar.
Tudo isto para dizer, que o significado da antes sonhadora e esperançosa palavra utopia, designa agora algo de delirante ou estapafúrdio. Por consequência, por cá, aos utópicos recomenda-se ir a banhos frios de realidade e uma alimentação pão pão, queijo queijo.
Surrealismo, é uma outra palavra que nasceu ampla e vasta, mas que com o passar do tempo, em Portugal se metamorfoseou em coisa muito restrita e banal. Originalmente, a palavra surrealismo evocava mundos fantásticos, ideias poéticas e viagens ao mais profundo inconsciente. Hoje em dia, em território nacional, parece significar apenas algo de bizarro, de excêntrico ou invulgar.
O primeiro manifesto surrealista foi escrito em Paris por André Breton, vai em breve fazer 100 anos. Nele constavam as seguintes frases:
“Digamo-lo claramente de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo; qualquer tipo de maravilhoso é belo, só o maravilhoso é belo. Desde cedo as crianças são apartadas do maravilhoso, de modo que, quando crescem, já não possuem uma virgindade de espírito que lhes permita sentir extremo prazer na leitura de um conto infantil.”
“A atitude realista é fruto da mediocridade, do ódio, e da presunção rasteira. É dela que nascem os livros que insultam a inteligência.”
“A mania incurável de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, só serve para entorpecer cérebros.”
Por cá, a palavra surrealismo ganhou um sentido tão quotidiano e tão de trazer por casa, que é possível ir-se a uma repartição de finanças, ficar-se lá longas horas à espera, sair-se sem o problema resolvido, e com indignação exclamarmos que este país é surreal.
Surreal serve agora para descrever incómodos inusitados. Uma grávida que anda de urgência em urgência hospitalar até encontrar uma aberta é surreal. As longas filas à porta da Loja do Cidadão são surreais. E que dizer da produção de azeite? Segundo um produtor de Mirandela, “Começa a haver muita falta de vidro para engarrafar, os prazos de entrega estão a ser muito estendidos, além dos preços que estão a aumentar. Além disso, os fatores de produção, os combustíveis e os fertilizantes tiveram um aumento surreal”.
Salvador Dali é o mais célebre dos pintores surrealistas e houve alguém que se lembrou de baptizar o azeite que produz com o seu nome.
Em boa verdade, era mesmo do surrealismo que hoje vos queríamos falar, toda a conversa que antes fizemos acerca das palavras artista e utopia, foi só para dar o tom. O surrealismo surgiu como um desejo de libertação dos constrangimentos da razão e da moral e como um embarcar em busca do desconhecido nos mais fundos sonhos do nosso subconsciente.
Todas as normas artísticas, morais, sociais, amorosas e as demais impostas pela sociedade foram subvertidas nessa viagem às regiões mais obscuras da mente. Daí nasceram novas formas de pensar, de agir e de se dizer. Por todo o lado se criaram improváveis associações de palavras e imagens. O surrealismo tinha uma utopia, queria transformar o mundo e a vida numa imensa sucessão artística e poética de palavras e imagens oximoras.
E em Portugal, será que houve e há surrealismo? Ou será que por cá só é surreal o encerramento da urgência do hospital, a fila da repartição e o preço do azeite?
Na realidade também tivemos (e temos?) o nosso surrealismo. No dia 17 de Outubro de 1947, no café A Mexicana, na praça de Londres, em Lisboa, deu-se o momento inaugural do surrealismo português.
Tudo terá começado com a amizade entre Mário Cesariny e Alexandre O’Neill que passavam as tardes a jogar bilhar no café Herminius, na Almirante Reis. Juntaram-se a eles Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira, Fernando de Azevedo, tudo amigos desde o tempo em que frequentavam a escola António Arroio.
No já referido dia 17 de Outubro de 1947 na Mexicana, depois de terem fundado o surrealismo português seguiram para a casa do pintor António Pedro onde continuaram a reunião. Desse dia, Alexandre O’Neill dirá mais tarde que apenas se recorda do “bom e abundante whiskey que se bebia na casa do pintor”.
Desde essa primeira noite que houve embirrações, desagrados e zangas entre os surrealistas portugueses. O’Neill redige uma espécie de manifesto ao qual deu o título “Porque Aderimos ao Surrealismo”. Aqui fica a parte inicial:
“Porque perdemos o medo de nos surpreender
Porque deixámos de usar a moeda Bem-Mal
Porque ultrapassámos a questão de saber se a porcaria deve ser de porcaria ou deve ser de ouro
Porque o surrealismo é um velho coberto de estanho antes da invenção do garfo
Porque não queremos o amor mesa-de-família-cama-de-casal
Porque a poesia deve ser feita por todos e não por um.”
Ser surrealista no Portugal das décadas de 40 e 50 implicava ser do contra e não se sujeitar ao “medo perfilado”, nem ao poder que corrompe, recusar o queixume e esta maneira “mansa e quase vegetal” de viver.
Entre zangas e desencontros, o grupo surrealista durou oficialmente até 1952, o que não significa que as suas emanações, contágios, doenças, amores, gargalhadas e truculências não tenham feito o seu caminho por muitos e bons anos.
Aparentemente, a influência dos surrealistas portugueses chegou viva até aos nossos dias. No MAAT, em Lisboa, continua patente uma cuidada e longa exposição dedicada a Mário Cesariny intitulada “O Castelo Surrealista”.
O conjunto musical Lisbon Poetry Orchestra, lançou muito recentemente o Cd-Livro “Os Surrealistas”. Segundo os autores é “dedicado a um grupo de artistas e poetas que, num Portugal cinzento, percebeu a urgência da liberdade.”
Este país é surreal! Será isto um oximoro? Sabendo-o não o sabemos.
Sabemos que hoje é um dia reservado ao veneno:
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