“Isto não é um país, é um sítio e ainda por cima, mal frequentado!” A frase é de Almada Negreiros, embora haja muito quem a atribua a Eça de Queiroz. Em qualquer dos casos, é uma frase que atravessa os anos mantendo sempre a sua atualidade, sendo que não se espera que a perca em 2024, muito pelo contrário.
Em 2024 assinalam-se os 500 anos do nascimento de Camões, sendo o poeta um dos nossos maiores símbolos, seria de esperar que as comemorações tivessem a correspondente importância, mas isso era se Portugal fosse mesmo um país a sério, coisa que não é.
Saíram esta semana a público, notícias que nos dão conta que o programa das comemorações dos 500 anos de Camões em 2024 está por fazer. Deveria ter sido apresentado até ao final de 2022, mas não existe, porque depende de estruturas que nunca foram criadas.
Em maio de 2021 foi nomeada uma comissária e estabelecida uma Comissão de Honra e um Conselho Consultivo. Diz a dita comissária que "desde a sua nomeação, não teve noticias nenhumas, quando em 2022 o programa deveria estar preparado”. Quando lhe perguntaram se ainda há tempo para se fazer um calendário das comemorações, considerou que “será uma meta difícil de atingir, pela forma como o processo se tem vindo a desenvolver“.
Boa resposta, a da comissária. Apostamos que se fosse para organizar o torneio internacional de futebol estava tudo pronto a tempo e horas.
Não é apenas Portugal, que tem como um dos seus maiores símbolos um poeta ou escritor, por exemplo, Shakespeare é também um símbolo maior do Reino Unido. Em 2016 assinalaram-se os 400 anos da morte de Shakespeare e o que fizeram os britânicos? Será que fizeram como por cá, nomearam uma comissão e um conselho consultivo e a coisa ficou feita?
Não, fizeram também filmes, peças de teatro, programas de televisão, novas edições, bailados, conferências, leituras, palestras, concertos e festas. Foram milhares e milhares de eventos que aconteceram pelo Reino Unido inteiro e até para lá dele.
E não se pense que foram apenas eventos destinados a intelectuais, estudiosos ou especialistas, nada disso. Houve de tudo um pouco e para todos os gostos. O grande público foi ativamente convidado a participar e ninguém foi deixado de fora, o mote era “Get Involved”.
Se por acaso quem nos lê deu uma vista de olhos ao extenso programa, há de ter reparado que as escolas também não foram esquecidas, tendo sido disponibilizados imensos recursos pedagógicos, para que nas salas de aulas fosse trabalhada a obra de Shakespeare.
Tal como Camões, Shakespeare é um escritor universal, não só no sentido em que é lido por todo o mundo, mas igualmente no sentido em que qualquer um pode encontrar na sua escrita algo que lhe toque.
É fácil citar a mais célebre passagem de Shakespeare, “Ser ou não ser, eis a questão”, e dizer que não há quem em algum momento da sua vida não se tenha sentido dividido entre ser e não ser.
Seria igualmente fácil citar passagens de “Romeu e Julieta”, que certamente também ecoariam em muitas almas, contudo, escolhemos propositadamente algumas menos conhecidas, que tocam até gente com características muito específicas.
Tocam por exemplo ao guloso: “É um péssimo cozinheiro aquele que não lambe os próprios dedos.” Ou, ao queixoso: “Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente”. Ou ainda mais particularmente, ao que se queixa dos dentes: “Nunca houve um filósofo que conseguisse suportar pacientemente uma dor de dentes”. Mas também ao indeciso: “Sabemos o que somos, mas não sabemos o que poderemos ser”. E por fim, igualmente ao tristonho: “A alegria evita mil males e prolonga a vida.”
Abaixo uma imagem de uma encenação de uma peça de Shakespeare no Globe Theather em Londres, o teatro que era o seu.
Se o Reino Unido assinalou com pompa e circunstância os 400 anos anos da morte de Shakespeare, outro tanto se fez em Espanha no mesmo ano de 2016, por ocasião dos 400 anos da morte de Cervantes, o imortal criador de “D. Quixote”.
O IV Centenário da morte de Cervantes foi comemorado por toda a Espanha e pela América Latina, do lado de lá da fronteira não houve atrasos como os há do lado de cá.
Se consultarmos o programa das festas para essa ocasião em https://400cervantes.es/IV-CENTENARIO-CERVANTES-PROGRAMA-OFICIAL.pdf , verificaremos que também em Espanha não faltaram concertos, conferências, danças, leituras, filmes, passeios, peças teatrais, exposições e muito mais.
São setenta e quatro páginas com milhares de eventos e, mais uma vez, as escolas não foram esquecidas, tendo sido criadas imensas atividades a elas especificamente destinadas.
Tal como Camões ou Shakespeare, Cervantes é igualmente um escritor universal. O que nos diz, diz-nos a todos, ao mais utópico e ao mais vulgar. D. Quixote simboliza o que se bate por ideais nem que seja contra moinhos de vento, Sancho Pança simboliza a sensatez do boçal, do que só pensa no dia a dia e é muito terra-a-terra.
Cervantes sabe que a sabedoria tem duas faces, uma que mira as mais complexas ideias e uma outra que olha para o que é simples e prático. Sabe que a erudição é importante, pois “Aquele que lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito”, mas sabe também verdades quotidianas e corriqueiras como que “Tolo e muito tolo é aquele que, ao revelar um segredo a outra pessoa, pede-lhe encarecidamente que não o conte a ninguém”, ou ainda que “Assim como o mentiroso está condenado a não ser acreditado quando diz a verdade, é privilégio de quem goza de boa reputação ser acreditado mesmo quando mente.” Mas sabe fundamentalmente que “É dos sábios mudar de opinião”, que é coisa que hoje em dia poucos parecem saber.
Já agora falemos também de Itália, onde Dante é o equivalente do que é Shakespeare no Reino Unido, Cervantes em Espanha e Camões em Portugal. Adivinhem lá o que sucedeu por terras transalpinas em 2021 aquando das celebrações dos 700 anos do nascimento de Dante? Terá havido comissões? Lentidões? Não, foi tal e qual como no Reino Unido e em Espanha, o que houve imensas manifestações culturais e populares.
Não estavam à espera de uma destas, pois não?
Um dos maiores acontecimentos desse ano foi a exposição “Dante, La visione dell'Arte”. O poeta que escreveu “A Divina Comédia”, da qual consta “O Inferno”, capítulo que viria a dar origem ao adjetivo dantesco, sempre foi um favorito dos artistas.
Desde a idade medieval, passando pela Renascença e pelo Barroco, até à idade moderna e contemporânea, foram inúmeros os artistas que representaram em pinturas, gravuras e esculturas as visões de Dante:
Passámos pelo Reino Unido, por Espanha e por Itália, e pelas comemorações dos centenários de Shakespeare, de Cervantes e de Dante, é tempo de regressarmos a Portugal e a Camões onde idênticas comemorações, ou pelo vistos quaisquer outras, serão “uma meta difícil de atingir, pela forma como o processo se tem vindo a desenvolver”, palavras da comissária encarregue das ditas.
Num dos seus poemas Camões perguntava-se onde acharia um lugar tão afastado e apartado, que nem por humano, nem feras fosse frequentado.
Pensou num bosque medonho e numa selva solitária, lugares onde poderia estar em vida morto e queixar-se livremente e continuamente triste andar. Se porventura Camões ressuscitasse e visse o que (não) está a ser preparado para o celebrar, estamos cá desconfiados que não precisaria ir muito longe, Portugal seria lugar onde penar, mas ao menos podia comer frango tipo leitão.
Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?
Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;
Que, pois a minha pena é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farão contente.
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