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Todos acabam catalogados numa biblioteca escolar.

Imaginemos uma biblioteca infinita que contenha todas as obras literárias do mundo que já foram escritas, e também todas as outras que ainda não o foram!  
A Biblioteca de Babel” é um conto de Jorge Luis Borges (1889-1986) acerca de um colossal arquivo bibliográfico imaginário que contém todos os livros compostos, ou a compor, pelos inúmeros milhões e milhões de combinações possíveis de efetuar com letras, palavras e frases.
Tudo o que eventualmente pode ser escrito, existe nessa biblioteca. Tal significa, que estão aí todos os livros que alguma vez foram escritos, mas igualmente todos os que algum dia alguém possa vir a escrever.
Os livros dessa biblioteca aparentam não estar arrumados segundo uma qualquer ordem visível, sendo eles dos mais diversos assuntos, nas mais diversas línguas existentes e não existentes, e até uns quantos completamente ininteligíveis. 
Trabalham nessa biblioteca seres humanos que durante a sua vida inteira procuram discernir um significado para a existência da biblioteca, mas que tentam também dar-lhe uma ordem e uma arrumação, que de algum modo espelhe o conteúdo de cada um dos seus livros.  



Numa certa perspetiva, essa biblioteca é uma metáfora do universo e simultaneamente da vida humana. Ela é tal qual o universo infindo que nos circunda, e é igualmente tão misteriosa, maravilhosa e inexplicável como o são as nossas breves vidas.
Como o universo ou como a nossa vida, a biblioteca aparenta frequentemente mais não ser que um desconexo labirinto, no qual quase sempre não sabemos bem por que caminho seguir. Nela parece reinar uma espécie de caos, que uns esforçados bibliotecários tentam desesperadamente contrariar catalogando os livros e dando-lhes uma qualquer arrumação. Tal e qual como os astrónomos tentam dar uma ordem ao vasto universo, e como de igual modo cada um de nós tenta dar um sentido à nossa existência.
Há quem, diante da vasta e caótica imensidão de livros, da infinitude do espaço sideral e perante o que de imponderável e surpreendente nos sucede na vida, tenha a esperança de nisso tudo conseguir vislumbrar uma ordem e, por consequência, acredite verdadeiramente que a biblioteca, o universo e a vida possuem um sentido.  
A crença na esperança de ordenar a biblioteca, ou seja, de catalogar os seus livros e dar-lhe um sentido, deixa-nos bastante mais tranquilos e sossegados, do que se porventura concluíssemos de um modo definitivo, que tudo nela é absolutamente caótico ou aleatório.  
Por essa mesma exata razão, acreditamos também que esse impenetrável labirinto de salas com livros, deve ter um qualquer caminho que conduza a um centro, no qual se decide a lógica segundo a qual tudo é arrumado e catalogado. Esse centro é o ponto donde irradiam as respostas para todas as nossas perguntas. Se esse centro existe ou não, é uma questão de fé. 
Jorge Luis Borges foi diretor da Biblioteca Nacional da República da Argentina. Instalado bem no seu cerne, era como se fosse uma entidade divina. Conhecia todos os seus cantos, conhecia todos os seus livros. Era ele que lhe dava o seu sentido e ordem.
O grande catalogador que era Jorge Luis Borges não usava as classificações habituais, criava as suas: ontologias fantásticas, genealogias sincrónicas, gramáticas utópicas, geografias ficcionais, múltiplas histórias universais, bestiários lógicos, silogismos ornitológicos, ética narrativa, matemática imaginária, thrillers teológicos, geometrias nostálgicas e memórias inventadas…

Num destes dias, a propósito das bibliotecas escolares, fomos consultar o site do Plano Nacional de Leitura, plano que estará em vigor até ao ano de 2027. Ao vermos elencados os principais objetivos do plano, reparámos que um deles consiste na “Melhoria do sistema de catalogação de livros recomendados no PNL…” 
Ao percorrermos os vários catálogos do site, descobrimos que o livro “Águas-Fortes Portenhas”, do escritor argentino Robert Arlt (1900-1942), integra o Plano Nacional de Leitura.
Acabar catalogado numa biblioteca escolar, é um estranho e improvável destino para um autor cuja vida e obra são avessas a todo o tipo de catalogações. Quem tentou definir Robert Arlt, o mais que conseguiu fazer, foi formar frases cujas palavras quase parecem querer contradizer-se entre si: “Um cínico lírico, nunca muito cínico nem muito lírico.” 
Estar arrumado entre paredes, na prateleira de uma estante, numa gaveta ou num catálogo, era algo que desagradava de sobremaneira a Robert Arlt, era mais de andar a vadiar pelas ruas, sem ordem nem sentido.
Foi um “niño” terrível. Era rebelde e um péssimo aluno. Fazia constantemente frente aos seus professores. Chumbou no terceiro ano de escolaridade e foi expulso de várias escolas do Barrio de Flores em Buenos Aires, onde vivia com os seus pais.
Abandonou os estudos logo aos 14 anos para se tornar escritor, o que de facto veio a ser, e um dos maiores da literatura latino-americana. Em boa verdade, a escola e os manuais nada lhe podiam ensinar, mas a desarrumação que encontrava pelas ruas, isso sim:
“Recordo-me perfeitamente de que os manuais escolares pintavam os senhores ou os jovens cavaleiros que perambulavam pelas ruas como futuros perdulários, mas eu aprendi que a escola mais útil para o conhecimento é a escola da rua, escola amarga, que deixa na boca o sabor de um prazer agridoce e que ensina tudo aquilo que os livros nunca dirão. Porque, desgraçadamente, os livros são escritos por poetas ou idiotas.”

Se o universo inteiro de Jorge Luis Borges cabia todo numa biblioteca, o de Robert Arlt cabia numa rua: “Cheguei à conclusão de que aquele que não encontra todo o universo encerrado nas ruas da sua cidade, não encontrará uma rua original em nenhuma outra cidade do mundo. E não a encontrará porque o cego em Buenos Aires é cego em Madrid ou em Calcutá…”
O mais que se pode dizer de Robert Arlt, era que não catalogava ninguém. As gentes com quem se encontrava pelas ruas de Buenos Aires eram de todas as espécies. Tanto lhe fazia serem patifes como santos, trabalhadores como mandriões, honestos como ladrões e imbecis ou canalhas, todos faziam parte do seu mundo. Não era um bibliotecário, nem um astrónomo, nem alguém como uma vida arrumada.
Fé também não tinha, nem acreditava que houvesse um centro ou um ser do qual irradiasse uma lógica ou um sentido para tudo isto, no entanto, acreditava em Cristo: “(...) já pensei mais do que uma vez que a magnífica indulgência que fez de Jesus eterno, resultou da sua permanente vida na rua. E da sua comunhão com os homens bons e maus, e com as mulheres honestas e também com as que não o eram.”
Terminamos, com uma ilustração feita para um livro de Robert Arlt, um daqueles que colocado numa prateleira de uma biblioteca escolar, certamente não será fácil de catalogar…

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