É sempre a mesma história, há quem ano após ano ofereça sempre pelo Natal um par de meias. É um momento um tanto ou quanto repetitivo, no entanto, não é disso que hoje vos queremos falar mas sim de outras histórias e, mais concretamente, do modo de as contar e as voltar a contar ao longo do tempo.
Bem contada, a mesma história nunca é bem a mesma história, pois de cada vez que nos é contada, mesmo que nos conte exatamente o mesmo de sempre, conta-nos também coisas completamente diferentes das que sempre contou. Na verdade, uma história só vale a pena ser contada e recontada, se de cada vez em que o seja, o for como se o estiver a ser pela primeira vez.
É uso dizer-se que quem conta um conto acrescenta um ponto, mas quem souber contar bem um conto, acrescentar-lhe-á muito mais do que apenas um ponto. Saberá também ter arte e engenho, para que o conto tenha a mesma exata vivacidade do dia inaugural em que pela primeira vez alguém o contou. Bem contada, uma história, mesmo que antes mil vezes contada, é sempre uma novidade.
Uma das mais penosas características da época de Natal, para além do já referido par de meias, é que os filmes que dão nos muitos canais de televisão existentes, são inevitavelmente sempre os mesmos. Exatamente as mesmas histórias, ponto por ponto, ano após ano.
É do cansaço que disso resulta, que nos dão conta alguns recentes artigos de imprensa. Por exemplo, na Time Out diz-se assim: “Sentes que já viste o Sozinho em Casa 525.749 vezes?”. No Diário de Notícias há um artigo que se intitula “Para quem tem medo dos filmes de Natal!”. Já no Público, o título é o seguinte: “Outros filmes de Natal, para acabar de vez com a Música no Coração”.
Sendo este o panorama geral, é bastante compreensível, que até mesmo o Pai Natal esteja mais do que farto de ver sempre as mesmas histórias na televisão e tenha perdido a cabeça. Acontece.
Mas se pensarmos bem no assunto, verificaremos que a própria história do Natal em si mesma, é sempre a mesma. Há a Maria e o José, a manjedoura, o burro, as vacas e o nascimento de Jesus, não há grandes novidades.
No entanto, se voltamos a pensar bem no assunto, o que vamos verificar, é que ao longo dos séculos, a natividade foi contada e representada de muitas formas distintas, havendo sempre quem quisesse contar essa história com a mesma exata vivacidade e intensidade daquele dia inicial, em que pela primeira vez alguém a contou.
Assim sendo, ao invés das repetidas histórias que os muitos canais televisivos continuamente propõem, propomos antes outras imagens. Umas que nos contam a história da natividade sempre como uma novidade. Para tal, recorremos à história da arte.
Comecemos pela idade medieval, quando a natividade era representada de um modo esquemático. Cada figura tinha um lugar determinado e todos estavam enquadrados por uma esplêndida moldura que delimitava toda a cena.
Não havia profundidade, apenas um plano onde a luz se distribuía de um modo perfeitamente uniforme, não existindo uma única sombra ou qualquer graduação na iluminação, que pudesse perturbar a tranquila e imperecível placidez do que se observava.
Os personagens da história apresentavam-se numa espécie de pose imorredoira, na qual pareciam estar desde o início do mundo e nela ir continuar até ao fim dos tempos. Digamos que a aspiração da representação artística era mostrar uma imagem de um momento divino e imutável, que pouco ou nada teria a ver com as contingências, arrelias e imprevisibilidades da vida de todos os dias.
Ao alto da imagem Deus reina sobre os acontecimentos e dele emanam raios de luz dourados, tal e qual como também emanam do deus-menino, mostrando assim de um modo inequívoco, que estamos diante de uma visão celestial, ou seja, que o que vemos representado não é deste nosso mundo. Em síntese, na idade medieval, as imagens da natividade contavam-nos uma história que era um vislumbre da eternidade.
Foi Giotto (1267-1337) o primeiro a criar um outro tipo de imagens. A sua natividade revela-nos que nesse momento nasceu uma nova forma de ver e, portanto, de viver. A novidade trazida por Giotto foi o uso da perspectiva, mas também a emoção que se sente ter colocado nos rostos e posturas das suas figuras.
Os anjos observam-se em vários planos diferentes, um está de frente e outros de perfil, uns vão para cima e outros para baixo. Parecem estar em movimento e a representação pictórica apanha-os num dado momento do seu voo. Estes anjos nada têm a ver com o anjo estático e rígido da representação medieval anterior.
Também Maria parece ter sido captada no instante em que ternamente se debruçava sobre o seu filho, não aparentando estar fixa numa qualquer pose. José, mais abaixo, está meditativo ou então meio adormecido. Á direita, dois pastores que por ali passavam, parecem ter entrado nesta história por um mero acaso.
Tudo na pintura nos quer transmitir uma sensação de dinamismo e movimento, inclusivamente o forte contraste cromático entre o profundo azul dos céus e as auras iluminadas dos anjos, de Maria, de Jesus e de José.
Muito provavelmente, com a sua obra, Giotto pretendia demonstrar que a cena representada, a natividade, poderia estar a acontecer naquele mesmo exacto instante diante dos olhos dos que a observam.
Em conclusão, a história que Giotto nos conta é exatamente a mesma, contudo, o artista quis que mesmo tendo sido antes mil vezes contada, ela surgisse perante quem a visse tão nova e viva como quando em Belém a contaram pela primeira vez.
Se olharmos agora para a natividade do flamengo Rogier van der Weyden (1399-1464), descobriremos um outro mundo, a mesma história, mas contada de modo completamente diferente.
Agora a cena não se passa na eternidade, nem em Belém ou sequer perto de Jerusalém. A cidade que se vê ao fundo na pintura, é em tudo semelhante às da Flandres, à data em que foi pintado o quadro.
O que Rogier van de Weyden faz é trazer a cena para o seu presente, para a sua cidade. Tanto mais, que uma das figuras em lugar de grande destaque, é a do nobre que à época encomendou o quadro.
Mais uma vez, a história é a mesma, mas é simultaneamente outra completamente diferente. Não há qualquer dúvida, que neste caso, não foi apenas acrescentado um ponto ao conto, mas muitos outros pontos, ou seja, todos os que decorrem da alteração do tempo e do lugar onde sucede toda a cena.
Mas vejamos uma outra natividade, esta de Georges La Tour (1593-1652). Neste caso, a cena passa-se num ambiente de intimidade. A luz tem múltiplos tons, indo da negra escuridão que se vê ao fundo na pintura, até à claridade bruxuleante que emana da vela que ilumina o recém-nascido.
A cena que se vê na obra de George La Tour, não será certamente muito diferente de muitas outras, que todos os dias sucederiam no seu tempo, aquando do nascimento de uma criança.
A grande novidade desta história, que continua a ser mesma de sempre, é que aqui se fala de intimidade e de que a história da natividade, é a mesma de todos e qualquer um, ou seja, uma história de maternidade.
Terminamos com uma natividade já do século XXI de Frédéric Martin. Aqui a história está reduzida à sua essência. Não há anjos, nem manjedouras, nem a Maria e o José, tão-somente um nascimento. Um ser acabado de nascer, cuja história se inicia nesse momento e a quem tudo vai acontecer pela primeira vez.
Comentários
Enviar um comentário