É reconfortante ver que apesar das modernas tecnologias digitais, de norte a sul, nas cidades e nos campos, nas altas serras e nos mais longínquos locais, agora como sempre, em cada amanhecer, alguém vai escrever a data a branco giz nos escuros quadros de ardósia deste país. Nas salas de aula da nossa amada pátria, é com a data que o dia de escola se inicia: Lisboa, 27 de janeiro de 2024.
Estávamos no dia 23 de abril de 1983, uma data em que tanto quanto sabemos, não sucedeu absolutamente nada de especial. Claro que nesse dia terá nascido gente, assim como também terá falecido. Alguns terão casado, a uns poucos ter-lhes-á saído a lotaria ou feito um treze no totobola. Haverá quem tenha iniciado funções no seu primeiro emprego e, com toda certeza, houve alguém que encontrou um outro alguém, que tão cedo não largou. Mas tudo isso é o que acontece desde sempre a cada data, consequentemente, 23 de abril de 1983 terá sido um dia igual a tantos mais.
Mas se nesse dia não sucedeu nada de excepcional, por qual razão vos falamos dele. Pura e simplesmente porque, por um mero acaso, encontrámos uma página de jornal, mais especificamente, do Diário de Notícias. E o que tem de especial, essa página de jornal perdida no tempo? Na verdade nada, mas na realidade tudo.
Não se trata de uma página em que se deem notícias bombásticas, nem em que haja uma entrevista a um ser genial. Não tem sequer um importante e elaborado artigo de opinião, é apenas uma banal página de jornal, na qual estão anunciados os filmes em exibição, nas salas de cinema da Lisboa de então.
Aqui fica:
“La forme d'une ville, change plus vite, hélas, que le cœur des mortels”. A citação é de Baudelaire (1821-1867). O grande poeta francês diz-nos que ao percorrermos as ruas e avenidas das nossas cidades, encontramos por todo lado destroços do que outrora foram. Na verdade não os encontramos, o que na realidade encontramos são as nossas memórias dos lugares que já não são como eram. Um café que já não o é, uma loja que deixou de existir e uma mercearia que se foi. Em síntese, a partir de certa idade, o que encontramos pelas cidades são destroços de quem um dia fomos.
Quem quer que já tenha essa tal certa idade, e que vá andando pela Praça dos Restauradores e subindo a Avenida da Liberdade, sentir-se-á inevitavelmente confrontado com a memória das grandes salas de cinema que por ali havia: o Éden de um lado, o Condes do outro, e mais acima, também o São Jorge e o Tivoli.
O Éden é hoje um elegante apathotel tipo VIP, mas é um destroço. O Condes é agora um divertido e vibrante bar ao melhor estilo norte-americano: um destroço. O Tivoli alberga um requintado restaurante de “haute-cuisine” muito em voga, mas é mais um destroço. O São Jorge lá vai andando, coitadinho, exibindo filmes alternativos, documentários e dando guarida a festivais independentes. Não vai mal de todo, no entanto, não deixa por isso de ser um outro destroço.
Quem antes o viu e agora o vê, não consegue evitar ter diante do São Jorge aquela incómoda sensação, de quando se apanham os cacos do chão e se os colam, de modo a que o objeto quebrado fique tão semelhante ao original quanto o possível. Por muito bem colados que os cacos fiquem, são ainda assim destroços.
Abaixo um recorte de um jornal antigo, com uma imagem do desaparecido cinema Condes, aquando da estreia de “E tudo o vento levou”.
Mas voltemos à página inicial do jornal, à que anunciava todos os filmes em exibição em Lisboa ao dia 23 de abril de 1983. Numa outra zona da cidade, que não a central e requisitada Avenida da Liberdade, verificamos que também tudo mudou.
Façamos por exemplo, o percurso que vai da Alameda Dom Afonso Henrique até à Praça de Alvalade, passando de caminho pela Praça de Londres e Avenida de Roma.
São tão-somente dois quilómetros, que a pé, caminhando tranquilamente, se fazem em cerca de vinte cinco minutos, não mais. Em 23 de abril de 1983 podíamos encontrar pelo nosso trajeto os seguintes cinemas: Império, Star, Londres, Roma, Vox (depois King), Quarteto e Alvalade. Feitas as contas, eram sete no total.
Na Alameda, o Império é a atual sede da Igreja Universal do Reino de Deus. Um pouco mais adiante, na Avenida Guerra Junqueiro, o Star é a Zara. Na Praça de Londres, o Londres é uma loja de chineses. O Roma, na avenida do mesmo nome, serve para fazer assembleias municipais, reuniões e encontros vários. O Vox, que depois mudou o nome para King, está fechado e abandonado. O Quarteto, que tinha quatro salas, foi convertido num espaço de “coworking” para “startups”.
Já o Alvalade continua a funcionar como cinema, mas apenas num exíguo rés-do-chão. O edifico foi remodelado e a quase totalidade do espaço do anterior espaçoso cinema, é agora ocupado por 27 apartamentos de luxo, de T1 a T7, com áreas entre os 71 e os 401 metros quadrados. O condomínio dá pelo nome de Hollywood Residences. Um nome bem piroso, não vos parece?
Nós sabemos que as cidades continuamente mudam e se transformam, aliás, essa é precisamente uma das suas maiores graças. Mas dito isto, podemos verter um lamento pelo outrora, ou seja, por como elas eram no tempo em que nelas crescemos. Na verdade, é um lamento mais vertido por nós mesmos, pelas nossas memórias e pelo tempo que passou, do que propriamente pelas cidades, pois estas continuam sempre em frente, movendo-se e adaptando-se sempre aos novos tempos e as outras jovens gentes.
E nós também, enquanto por cá andarmos, continuamos para diante. Sabemos muito bem distinguir saudades de saudosismo. Se atualmente já não podemos ir como antigamente ver filmes por todas as ruas e avenidas da cidade, podemos todavia ir pela manhãzinha fazer “coworking” e começar uma “startup”, onde antes havia o Quarteto. À hora de almoço é fazer como os CEO’s e os administradores de empresas, toca de dar uma escapadinha ao Eden Aparthotel. De seguida, conforme o tempo de que se disponha, ou vai um “brunch” no Hard Rock Cafe onde antes estava o Condes, ou se não houver pressa, podemos ir almoçar tranquilamente e ingerir uma qualquer iguaria de fusão, que não se sabe muito bem de que é feita e ao que sabe, mas que se come ali no “Je ne sais quoi”, onde dantes ficava o Tivoli.
Para o fim do dia, nada melhor que ir ao antigo Império e participar numa assembleia da Igreja Universal do Reino de Deus. É uma coisa que dispõe bem e uma pessoa sai de lá de alma lavada e com a plena convicção de que será perdoada por todos os seus inúmeros pecados.
Levando em consideração que a Igreja Universal do Reino de Deus nos oferece um serviço, que não só melhora a nossa presente auto-estima e atual situação psico-emocional, mas que nos fornece também a salvação tendo como prazo de validade a eternidade, há que dizer com toda a sinceridade, que nos parece um entretenimento que fica muito em conta. Aconselhamos vivamente.
Comprar casa onde era o Cinema Alvalade é que não dá, são muitos milhões pedidos e o ordenado auferido não dá para tanto. Quando muito dá para ir ver um filme no rés-do-chão, que já não é mau.
Dissemos há pouco que sabemos muito bem distingir saudades de saudosismo e é com tal distinção que queremos caminhar para o final deste texto. Há por aí uma rapaziada, que desconhecemos quem sejam, com contas nas redes sociais cujo nome é União Nacional. O que fazem é publicar fotografias doutros tempos, às quais acrescentam comentários da sua própria autoria.
Em praticamente todos os comentários às fotografias há lamentos pelo Portugal de outrora e ironias a respeito do presente. Exalta-se o tempo em que supostamente todas as ruas estavam asseadas, não havia estrangeiros, as gentes eram honradas e andavam dignamente vestidas, o tempo quando tudo era belo, lindo e bonito. Vejamos como exemplo, uma foto da cidade do Porto, logo seguida dos ditos comentários.
“Porto, Rua dos Clérigos, 1958. Gente esfomeada, descalça, todos rotos...dirão os do costume! Mais uma foto que vale por mil palavras. O tempo em que havia respeito, ordem e Portugal era dos portugueses.”
Como terão verificado, o comentário é um tanto ou quanto irónico. Não vale a pena irem ver muito mais, pois que todos os dizeres são mais ou menos do mesmo género. Aqui há uns tempos, mostraram-nos uma fotografia de 1953, de uma turma numa escola em Coimbra, que foi publicada pela dita União Nacional nas suas redes sociais.
Os comentários à fotografia, como facilmente adivinharão, eram todos em estilo saudosista, do tipo em como nesses tempos as escolas eram maravilhosas e agora são todas (ou pelo menos as públicas) uma absoluta miséria. Aqui fica a imagem:
Talvez nem toda a gente repare a um primeira olhar, mas com uma maior atenção, vê-se perfeitamente, que conjuntamente com os professores, posam meninos muito bem penteados e arranjados, que zelosamente guardam os seus livros e cadernos debaixo do braço. Mas, cerca de um metro mais afastados, uns moços da mesma idade, vestidos com roupas desengraçadas, sem livros nem cadernos nas mãos e uns tantos, que nem sapatos têm nos pés.
Só de olhar, dá logo saudades desses tempos, não dá? Aparentemente aos saudosistas sim.
Já agora, mostramo-vos uma outra imagem, também esta publicada nas redes sociais da União Social. Segundo esses pândegos, a educação compete à família e à escola a instrução, nós não vamos agora perder tempo a dizer a razão pela qual tal afirmação é completamente absurda, vamos apenas chamar-vos a atenção para que no quadro de ardósia escuro representado na imagem do cartaz, ninguém escreveu a giz branco a data.
Tanto rigor, tanta tradição, tanta exigência e depois esquecem-se de escrever a data, está mal. Nós não temos a certeza da data em que o cartaz foi escrito, mas temos a vaga ideia, que é capaz de ter sido não em 23 de abril de 1983, mas sim em 23 ou 24 de abril de 1974.
Terminamos com um fado, “Um homem na cidade”, que em determinado momento diz assim:
Eu sou o homem na cidade
Que manhã cedo acorda e canta
E por amar a liberdade
Com a cidade se levanta
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