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O rato que há em nós


É um problema de todo o tamanho, a quantidade de vezes que aparecem ratos nas escolas de Portugal. Sem nos esforçarmos absolutamente nada, apenas com uma brevíssima pesquisa, descobrimos imediatamente dezenas de notícias dos últimos três ou quatro anos, em que o tema é “há ratos na escola”.

 

Ele foi nas escolas secundárias do Restelo, de Caselas e do Lumiar em Lisboa, na Escola Básica de Vila D'Este em Vila Nova de Gaia, no centro escolar Carvalhal-Mó em Gondomar, em Macedo de Cavaleiros, em Alenquer e bem recentemente também na Escola de São Roque, em Ponta Delgada, nos Açores.

 

Os casos que acima referimos foram os mais mediáticos, mas são só uma pequena amostra da estreita relação que existe neste país entre ratos e escolas. Se alargarmos o período cronológico da nossa pesquisa, digamos a uma década, conseguimos descobrir muitas mais notícias, de muitas mais escolas, de muitas mais localidades, onde também houve ratos.

 

Em certo sentido, poder-se-ia dizer, que é quase uma tradição, algo que, assim como o fado, o cante alentejano, a olaria negra de Bisalhães, o queijo da serra, as alheiras de Mirandela e a manufactura de chocalhos, poderia perfeitamente ser elevado à condição de património imaterial nacional.

 

À primeira vista, talvez a ideia vos possa parecer descabida, todavia, na milenar civilização indiana, há um templo exclusivamente dedicado aos ratos, onde estes deambulam aos milhares. A adoração aos ratos pratica-se nesse local há mais de 600 anos, vejam lá. O Templo de Karni Mata é uma importante peça do património cultural da Índia e é diariamente visitado por milhares de turistas vindos de todo o mundo.

 

Existem várias versões sobre o assunto, mas a mais célebre, conta-nos que a deusa Karni Mata tentou ressuscitar o filho de um contador de histórias. Como não o conseguiu, prometeu a todos os contadores de histórias que a sua vida não terminaria com a sua morte, todos reencarnariam como ratos. A promessa era válida para os contadores de histórias desse momento e para todos os outros que no futuro viessem a existir.

Prometeu igualmente, que depois de viverem um tempo como ratos, todos os contadores de histórias voltariam a renascer, só que desta vez como membros de uma divina casta de deuses, ou seja, a da própria família de Karni Mata.

 

Desse modo, cada um dos milhares de ratos do referido templo é um antigo contador de histórias e um futuro ser divino, devendo por isso ser adorado e receber o adequado tratamento que se dá aos deuses. Caso porventura algum dos ratos seja acidentalmente morto, o que acontece por vezes quando turistas mais distraídos os pisam, ele deverá ser substituído por um rato de ouro ou prata.

É bem verdade que os ratos estão associados a problemas de higiene e a doenças, mas não é menos verdade, que estão igualmente associados a contos, a lendas e a histórias. Isso é tão mais evidente, porquanto há inúmeros personagens da banda desenhada e dos desenhos animados, que são ratos.

 

O que será que a humanidade vê nos ratos, para que estes em todas épocas, culturas e civilizações estejam constantemente a ressurgir como personagens infantis e não só? É muito provável que não haja animal que mais vezes tenha reencarnado em histórias de todo o tipo, do que o rato.

Na realidade, o assunto está academicamente estudado. Como os ratos têm uma péssima fama, quase ninguém gosta deles e são caçados e perseguidos. Os criadores de histórias humanizaram-nos, para assim representarem personagens excêntricos, peculiares, rebeldes, marginalizados ou que de algum modo saiam fora da norma.

 

Claro que atualmente olhamos para um personagem como o Rato Mickey, e já nele não vislumbramos nada de estranho, mas apenas um simpático desenho animado, contudo, à data da sua criação, há precisamente um século, não seria bem assim.

Quando surgiu, Mickey era uma personagem bem distinta da de hoje. Na fase inicial, Mickey era bastante magro, tinha olhos esbugalhados, fumava e era anormalmente travesso. Ao longo dos anos foi-se adocicando, tornando-se mais simpático e ficando com uma silhueta mais arredondada. 

 

O caso do Rato Mickey é até exemplar para o que dizemos. Com efeito, tendo-se completado um século da sua criação, o personagem passou a ser do domínio público, o que significa que a sua utilização já não está sujeita a direitos de autor, portanto, qualquer um pode usar livremente a sua imagem naquilo que entender. Em resumo, o Rato Mickey deixou ser propriedade da Disney.

 

Assim tendo sido, o que imediatamente sucedeu, foi que o Rato Mickey se pôs a beber, voltou a fumar e, espante-se, começou a comportar-se como um autêntico marginal, ao invés de ser um docinho. 

A que é unanimemente considerada a melhor banda desenhada de sempre, muito embora nem todo concordem com isto, intitula-se “Maus”. O seu autor foi Art Spiegelman. A história é simples: os ratos representam os judeus durante o nazismo. Foram perseguidos e caçados pelos gatos, que no caso representavam os nazis. Como se percebe, mais uma vez, os ratos encarnam os que são caçados, marginalizados, e que, de algum modo, saem da norma.

Deixamos-vos uma entrevista a Art Spiegelman, na qual ele reflete acerca da banda desenhada e, na verdade, da vida.

https://youtu.be/EZefKS-WEo4?si=eNqDvHsH1lhFe2cr

Dito tudo isto, e para não nos alongarmos muito, a única conclusão a tirar é que de rato todos temos um pouco. Os melhores de nós, muito de rato terão. Já os piores, pouco.

A que propósito dizemos nós tal coisa? Porque os melhores de nós têm sempre algo de rebelde, de excêntrico, de peculiar, e até de marginal, que de algum modo, fazem com que saiamos da norma, ou seja, que sejamos únicos, humanos.

 

Não nos espanta por isso, que o artista Augustin Lignier tenha posto ratos a tirar selfies. Surpreendentemente os ratos, tal como os humanos, fazem-no. Lignier condicionou os ratos para que estes, de cada vez que carregassem num botão e tirassem uma selfie, recebessem um doce. A pouco e pouco, foi-lhes retirando a recompensa. No entanto, os ratos continuaram a tirar selfies. Ficaram viciados.

 

Esta experiência é de âmbito artístico, mas simultaneamente, de foro neurocientífico. Ficou provado que os ratos são muito semelhantes a nós, aos humanos.

Aqui fica a notícia que nos dá conta disso.  

https://www.publico.pt/2024/01/24/p3/noticia/augustin-ensinou-ratos-tirar-selfies-continuaram-fotografarse-2077935


Vamos terminar. Mas se por acaso, alguém ainda tem dúvidas de que há um rato em cada um de nós, e que os humanos se assemelham a ratos, deixamos-vos ainda mais uma descoberta científica.

Então não é que os ratos se gostam de abanar, digamos dançar, ao som dos Queen, de Mozart e de Lady Gaga? 

Quem quiser bailar com a rataria, é ler o artigo abaixo…

https://www.publico.pt/2022/11/17/ciencia/noticia/ate-ratos-tambem-mexem-ritmo-musica-2028112

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