Nós não gostamos da disneyficação das cidades! Não gostamos que os centros históricos estejam progressivamente a ser transformados em parques temáticos, onde por todo lado só há hostéis, pizzarias, gelados artesanais, boulangeries, souvenirs e tuk-tuk’s.
Será que efetivamente precisamos mesmo de atravessar o centro da cidade e termos a cada canto, assim tantos sítios que vendam o melhor pastel de nata do mundo? Se calhar não. Fica a questão.
Quem outrora conheceu Veneza ou Barcelona, sabe que estas cidades já não existem como antes existiam. Os edifícios estão lá e as ruas também, mas de resto, tudo o mais são artifícios. Há tours privados, neotabernas, gastrobares e filas enormes para qualquer lado, dá igual que seja para visitar um museu, ou ir andar de montanha russa ou carrossel.
Muitos séculos após a queda do Império Romano, reaparecem agora gladiadores diante do Coliseu, estes não lutam entre si nem com leões, degladiam-se sim para que tiremos uma foto. Em Barcelona abrem-se novas lojas pelas Ramblas abaixo, que imitam o estilo das antigas, que continuamente foram fechando. Em Veneza, é tal a tristeza, que até torniquetes há, para quem quer lá entrar. Já em Nápoles, há zonas onde se seca a roupa à janela, mas só com o intuito de dar um ar típico e popular ao lugar.
Dantes as cidades eram como os filmes que víamos, os livros que líamos ou as canções que ouvíamos. Nelas havia histórias, dramas, mercearias, alegrias, esquinas, avenidas, tascos, encontros, desencontros, becos sem saída e todo o tipo de gentes e de personagens. Em boa verdade, as cidades não eram como, eram mesmo tal e qual filmes, livros ou canções.
Havia cineastas, músicos e escritores que as imaginavam, e cada um de seu modo distinto. Agora parecem estar a ser pensadas e planeadas por um único ser, são todas tão típicas e tão iguais, que tanto nos faz ir a Barcelona como ir a Veneza, dá praticamente no mesmo. Dir-se-ia que a exclusiva intenção de quem hoje as pensa e planeia, é que cada vez mais turistas venham e que os negócios cresçam e floresçam.
Às cidades, queríamos continuar a vê-las, vivê-las e visitá-las como outros antes as imaginaram, e como nós as imaginámos e imaginamos, ou seja, com História e com histórias que possam ser contadas num filme, num livro ou numa melodia.
O que nos interessa a nós visitar a atual realidade de muitas cidades, de onde a História e as histórias foram progressivamente sendo apagadas, para dar lugar a um espaço lúdico onde se vê as vistas, come-se, bebe-se e se faz compras? Na verdade, isso não nos interessa absolutamente nada. Para isso mais vale ir ao shopping, que lá ao menos não chove.
Um aparte, a rima entre “shopping” e “chove” dava um belo slogan, tipo “No shopping não chove”. Mas no shopping também não faz frio, nem calor, é um sítio climatericamente perfeito, ou seja, tépido.
Talvez se pudesse fazer uma campanha publicitária baseada nesse tema, que ficaria mais ou menos assim, “Quer comer, beber e fazer compras? Não vá à cidade, pela sua saúde, não arrisque. Venha ao shopping que não chove, nem faz frio nem calor, é tudo tépido, jamais precisará de ir ao médico.”
Voltando ao assunto, às cidades. Mas para que quereríamos nós recuerdos, souvenirs e bugigangas que tanto podem ser vendidas aqui como na China? Para quê irmos a restaurantes gourmet, onde seja que prato for, tudo tem o mesmo sabor? Para que nos serviriam pífias experiências imersivas na obra de artistas de reconhecido mérito internacional?
Para além de tudo isso, perguntamos ainda quantas mais vistas inéditas da cidade vão ser ainda descobertas. Já não há telhados que aguentem com tanto rooftop!
Mais a mais, não é lá grande ideia ir beber um copo no rooftop. Com azar, ainda nos desequilibramos, caímos lá do alto e esbardalhamos-nos contra uma típica calçada portuguesa.
Para não corrermos tais riscos, tão pouco turísticos, propomos que autoridades de segurança lancem uma campanha de prevenção: “Diz não ao copo on the rooftop”. Teria certamente a sua eficácia, pois a rima entre “copo” e “rooftop”, é daquelas que capta a atenção e nos fica no ouvido.
Uma vez que já desancámos no modo como uns quantos vão matando as cidades para as transformar num parque de diversões para jovens desocupados, adultos equivocados sobre o que é viajar e velhos reformados, vamos então de visita a uma cidade real, ou seja, imaginada.
E que melhor local para imaginarmos uma cidade real, antes já muito imaginada, do que Roma, a cidade eterna? É evidente que Roma existe há milénios, mas a Roma de que vos queremos falar, nasceu apenas há umas décadas. Foi nos filmes que apareceu a Roma da Cinecittà. É dela que queremos conversar. Noutros dias e noutros capítulos, conversaremos de outras cidades e dos seus filmes, livros e canções, mas hoje é Roma.
O momento emblemático da Roma da Cinecittà, deu-se quando Fellini a filmou em “La Dolce Vita”. Fica para sempre, a cena defronte, e depois dentro, da barroca e sublime Fontana di Trevi. A situação foi interpretada pela esplêndida e igualmente barroca Anita Eckeberg e pelo simpático ator Marcello Mastroianni.
A Roma da Cinecittà nasceu mesmo no final da década de quarenta. Essa Roma não era feita apenas do Coliseu, do Panteão, do Vaticano, das inúmeras fontes e dos muitos monumentos históricos. Era uma Roma de verdade, e não só uma cidade da antiguidade.
Era feita de problemas tão simples ou tão complexos, como por exemplo, ter uma mera bicicleta que permita que se trabalhe e se ganhe a vida, para se ter o mínimo de dinheiro suficiente para se viver.
No fundo, é esse o resumo da narrativa do filme “Ladrões de bicicletas”, de Vittorio De Sica, um clássico. Ao personagem principal, é-lhe roubada a sua bicicleta, a qual era essencial para o seu ofício e consequente sobrevivência.
Durante a película inteira, o dito personagem deambula por toda a cidade de Roma, para a tentar recuperar, à bicicleta, claro está. Acompanha-o sempre o seu pequeno filho, Bruno.
Let’s look at the trailer:
Há a Roma de sempre, mas há também a que nos anos sessenta era feita de prédios em construção, de novos conjuntos habitacionais, de arrabaldes, de descampados e de terrenos baldios, que ficavam à época todos bem longe do centro. Hoje ficam lá perto.
Essa outra e nova Roma apareceu em muitos filmes, mas há um em particular, em que se a vê e sente como em mais nenhum outro, “Mamma Roma”. Percebe-se aí, como Roma é tão bela quando nos aparece como um bairro de habitação social, como quando nos aparece imperial.
É bela nas ruínas daquilo que Constantino, Júlio César ou Nero mandaram construir, é bela nuns quantos arruamentos onde foram erguidos uma dúzia de prédios de apartamentos de renda acessível.
A história de “Mamma Roma” é a de uma prostituta de meia-idade que consegue libertar-se do seu chulo, e assim arrendar uma casa e montar uma banca no mercado, para poder ganhar a vida e dar uma educação decente ao seu filho adolescente.
“Bella eh, la nostra casa nova! Che te diceva tu’ madre”, diz a mãe ao seu filho na cena que abaixo vos deixamos. Nela vemos a cidade de Roma que nenhum turista vê, os novos bairros e os descampados onde rapazes e raparigas iam brincar, conversar e namorar. Vemos também a excelente Anna Magnani.
“Mamma Roma” foi realizado por Pier Paolo Pasolini em 1962:
E se nós vamos imaginando Roma através dos filmes que vimos, há um filme em que se filma quem imaginou participar num filme, ou mais concretamente, imaginou que a sua pequena filha participasse.
Em “Belíssima”, vemos novamente Anna Magnani no papel de mãe. Desta vez é Maddalena, uma enfermeira romana que ganha a vida a dar injeções ao domicílio. Um dia decide inscrever a sua filha Maria num concurso para prestar provas num “casting” para crianças nos estúdios da Cinecittà.
Para Maddalena, o “casting” representa a possibilidade de dar à filha uma vida de luxo e sonho. Maddalena está disposta a tudo para garantir que seja a sua filha a escolhida. Esta é mais uma história de Roma, da cidade onde não há souvenirs, nem falsos gladiadores e nem sequer mozzarella.
Para terminarmos este nosso passeio por Roma, um outro filme, este mais recente, “Caro Diaro” de 1994.
Nele, Nanni Moretti passeia de Vespa pelas ruas desertas de Roma durante um quente verão. Não pelos locais mais conhecidos, mas sim por bairros mais afastados do centro.
Enquanto passeia vai nos dizendo o que pensa sobre a vida em geral, sobre Roma, sobre o cinema, sobre as casas, sobre as histórias, os dramas, as alegrias, as melodias e as mercearias.
Ir a Roma e não ver o Papa, a nosso ver, não é pecado. Pecado, pecado é ir ou não ir a Roma, e não ver a cidade que há para ver nos filmes que aqui vos deixamos. De certeza que passavam um bom bocado.
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