Imaginem uma
escola itinerante, que tanto está aqui, como está ali, como acolá. Um dia vai a
uma aldeia longínqua, e no dia seguinte a uma outra irá, que também não fica nada
perto. Depois ainda a uma terceira, a uma quarta e a uma quinta, e por fim,
regressa à primeira, à segunda e à terceira e assim sucessivamente. Tudo isto
durante um largo período de tempo.
Há cerca de
um século, foi isso mesmo o que sucedeu por terras de Espanha. Uma série de
professores, atores, escritores, músicos e pintores decidiram voluntariamente
ir pelas terras remotas do país vizinho, para lá levar às gentes de cada um
desses lugares, um pouco de cultura, de divertimento e de educação.
A esse
imenso projeto chamaram “Misiones Pedagógicas”. As autoridades governamentais de
então, legislaram de modo a apoiar a iniciativa, tendo esta ficado para a
história como uma das mais simbólicas ações do tempo em que Espanha era republicana.
As missões decorreram entre 1931 e 1936, sendo que, nesses anos houve muitos voluntários que se dedicaram a levar a cultura, a educação e o entretenimento às áreas mais distantes de Espanha. Não nos esqueçamos que à época, as zonas rurais e afastadas eram fortemente habitadas, sendo a população de crianças e jovens bastante numerosa.
O intuito das “Misiones Pedagógicas” não era tão-somente alfabetizar, era muito mais vasto do que isso, era fundamentalmente educar através das letras, das artes e da cultura.
Quando
chegavam às aldeias e lugares, os voluntários apresentavam-se às populações
anunciando quem eram e o seu credo: “É natural que queirais saber, antes de
começar, quem somos e a que vimos. Não tenhais medo. Não vimos pedir-vos nada.
Ao contrário; vimos dar-vos de balde algumas cousas. Somos uma escola ambulante
que quer ir de aldeia em aldeia. Mas uma escola onde não há livros de
matrícula, onde não há que aprender com lágrimas, onde não se vai pôr ninguém
de joelhos, onde não se necessita fazer gazeta.”
Como imediatamente todos percebiam, as “Misiones Pedagógicas” não vinham ensinar ninguém à força, o divertimento fazia parte do programa e isso ficava tanto mais explícito, porquanto à frente no seu discurso, apregoavam claramente às gentes locais ao que vinham: “…que venhamos antes de nada às aldeias, às mais pobres, às mais escondidas, às mais abandonadas, e que venhamos para vos ensinar algo, algo do que não sabeis por estardes sempre tão sós e tão longe de onde outros o aprendem, e porque ninguém, até agora, veio ensinar-vo-lo; mas que venhamos também, e o primeiro, para vos divertir. E nós quiséramos alegrar-vos, divertir-vos quase que tanto como vos alegram e divertem os cómicos e os titeriteiros”.
Vejamos o
programa típico de um dia de atividades. Durante a manhã faziam-se filmes,
registando vários aspectos da vida do povo, da paisagem e dos tipos de afazeres
e ofícios que havia. Pela tarde, jogos e exercícios de ginástica com as
crianças no verde prado, seguia-se então um banho no rio, depois a leitura de
excertos de livros, e logo após, mais à tardinha, por debaixo dos castanheiros,
a audição de trechos musicais. Ao fim do dia, uma noite de cinema com a
projeção de documentários educativos e de comédias do Charlie Chaplin.
Em média participavam cerca de quatrocentas pessoas de todas as idades nestas atividades, umas tantas das próprias aldeias, outras-quantas vindas dos lugares próximos.
Algumas das
maiores figuras da cultura espanhola do século XX, participaram intensamente
nestas missões, como por exemplo, a filósofa María Zambrano (1904-1991).
“Chegámos
pelas quatro da tarde e tivemos uma recepção cordialíssima, quente e
respeitosa. Esperava-nos uma emoção inolvidável e certamente inesperada…”. Foram estas
as palavras com que María Zambrano descreveu o início da sua primeira missão,
aquando da sua chegada à pequena localidade de Navas del Madroño, em março de
1932. Acompanhavam-na um grupo de intelectuais amigos, também eles voluntários.
A chegada
das missões era um autêntico acontecimento. As gentes do lugar recebiam-nas com
muita curiosidade, ansiosos por ver o que iriam fazer. E o facto é que as
missões não desiludiam, traziam modelos educativos inovadores e disruptivos,
que se destinavam àqueles (fossem eles crianças, jovens ou adultos) que estavam
impossibilitados de ter qualquer acesso às artes. Abriam-lhes desse modo os
olhos para extensas janelas de possibilidades, que caso contrário jamais teriam
sonhado ou entrevisto.
Onde as missões iam ouvia-se música, tons e sons que faziam imaginar outros lugares nunca imaginados. O cinema mostrava o movimento das agitadas ruas e avenidas das grandes cidades. Os aldeões contemplavam com espanto todas essas coisas, para eles completamente desconhecidas. O teatro estremecia-lhes as almas e, para além de tudo mais, as missões punham também à disposição das aldeias e lugares bibliotecas inteiras plenas de conhecimentos e de novas ideias.
Uma das mais
interessantes iniciativas das “Misiones Pedagógicas”, foi a que designaram como
o Museu Ambulante, o qual consistia em expor cópias das melhores obras do Museu
do Prado pelas aldeias e pelos lugares.
Aquela gente que vivia apartada dos principais centros urbanos, dificilmente teria algum dia a possibilidade de contemplar os grandes mestres da História da Arte, todavia, foram encomendadas cópias de excelente qualidade, para serem levadas aos mais recônditos locais, para que assim todos pudessem apreciar os melhores quadros do Museu do Prado.
Outra
grande figura cultural que participou nas “Misiones Pedagógicas”, foi um dos
maiores poetas espanhóis do século XX e de sempre, Luís Cernuda
(1902-1963).
A
função que a si se atribuía, era precisamente a de ir por toda a Espanha e
explicar aos habitantes das terras distantes, as pinturas que viam. A propósito
de uma dessas muitas viagens, escreveu ele um dia assim; “A nossa presença, como
habitualmente, suscitava curiosidade na vizinhança, as crianças
acompanhavam-nos por todo o lado. Sempre me surpreendia, ao percorrer estes
lugares, a limpidez dos olhares infantis. Tinham tal brilho e vivacidade que me
entristecia pensar como com o passar do tempo a inércia, a falta de estímulo e o
sórdido ambiente, acabariam por afogar as imensas possibilidades que naqueles
olhares amanheciam.”
Frederico Garcia Lorca, autor de cariz universal e o maior dramaturgo espanhol em séculos, também participou nas “Misiones Pedagógicas”. Formou um grupo teatral, La Barraca, e foi por toda a Espanha para dar a conhecer às populações os grandes clássicos de sempre do teatro.
O trabalho
que fizeram inspirou e ainda inspira companhias teatrais por todo o mundo, e as
atividades que desenvolveram quase que pertencem ao domínio do mitológico, tal
tem sido a sua influência ao longo dos tempos.
Contudo,
tudo isto terminou abruptamente. Os sectores mais
conservadores da sociedade espanhola consideravam as “Misiones
Pedagógicas” como uma obra do diabo, uma coisa que só servia para desassossegar
o povo e pô-lo a pensar.
Com a
ascensão de Franco, tais gentes impuseram a sua lei. Frederico
Garcia Lorca foi assassinado, assim como tantos outros. Os mais que nelas
participaram e escaparam à morte, ou foram presos ou tiveram de fugir e ir para
o exílio. E foi assim o fim desta história de artistas e docentes itinerantes.
Em
1933 Luís Buñuel realizou um documentário intitulado “Las Hurdes, terra sem
pão”. Nele dá-nos a ver o que era a vida das gentes nos locais mais longínquos
de Espanha. São apenas uns quantos minutos, nem a meia-hora chega, mas acabou
por ser proibido durante décadas pelas autoridades espanholas. Foi
inclusivamente proibido noutros países devido à pressão feita pelos governantes,
para que não fosse exibido, devido à má imagem que dava de Espanha. Hoje
podemos vê-lo em qualquer lado, mesmo na mais afastada aldeia. Aqui fica:
Comentários
Enviar um comentário