Atualmente todos se preocupam bastante com as “fakes news” e perguntam-se sobre o que é verdade e o que não o é. A nosso ver, a questão haveria de ser outra, ou seja, não tanto com a verdade, e sim mais com a autenticidade.
Num mundo onde até a mentira e a verdade se tornam cada vez coisas mais difíceis de distinguir, onde poderemos agora nós encontrar a autenticidade. Repare-se no seguinte: a autenticidade, é algo de maior e de mais vasto do que a verdade. Por exemplo, atentemos na imagem abaixo. É verdade, e absolutamente inegável, que nela vemos uma Torre Eiffel. Uma que não fica em Paris, mas em Las Vegas. Dito isto, haverá nela alguma autenticidade?
E que autenticidade terá esta Veneza, que abaixo vemos, também ela situada em Las Vegas?
E já agora,
o que dizer de uma Torre de Londres em plena China, mais concretamente, na
cidade de Suzhou? É verdadeira, disso não há quaisquer dúvidas, mas qual é a
sua real autenticidade?
Poderíamos
continuar a dar-vos exemplos, mas cremos que o nosso ponto está feito, ou seja,
a autenticidade não se esgota na verdade. Todavia, o nosso principal ponto é
outro, ou seja, não o de fazer tal distinção, mas sim, como ao início
anunciámos, o de procurar onde, nos tempos de hoje, poderemos encontrar a
autenticidade.
Se já vos
deixámos alguns exemplos de coisas verdadeiras, mas inautênticas, queremos
agora dar-vos exemplos de autenticidade. Abaixo temos um tríptico fotográfico
de Paulo Nozolino. Vale pena aumentar a imagem, olha-la com muito atenção, e
perceber que não se compreende completamente aquilo que lá está.
Provavelmente,
é tão ou mais importante o que não se compreende nas imagens fotográficas
abaixo, como aquilo que se entende, sendo precisamente essa paradoxal
duplicidade, o que faz a sua real autenticidade.
A diferença
radical entre a Torre Eiffel e a Veneza de Las Vegas, a Torre de Londres da
China, e as imagens de Paulo Nozolino, é que nas três primeiras, compreende-se
rapidamente tudo o que estamos a ver.
Muito embora
nas fotografias de Nozolino, de algum modo, também se compreenda o que se vê, o
tempo da percepção é outro, um totalmente distinto. Com efeito, o que
fundamentalmente se vê nessas fotografias, é a lentidão inerente a um qualquer
mistério.
Um mistério,
um qualquer mistério, é um outro modo de se dizer, que não se compreende de
forma imediata e completa aquilo que se vê, ou seja, que para se ver com
autenticidade, é preciso ter-se tempo, o mesmo é dizer, é preciso que o tempo
seja mais lento.
No que é
autêntico há sempre um certo jogo lento entre a luz e a escuridão, entre o que
se sabe e não se sabe, ou seja, há zonas de sombra onde se esconde e
simultaneamente se deixa ver a matéria de que são feitos todos os mistérios,
desde os menores aos maiores: donde vimos, quem somos, para onde vamos.
Vejamos um poema de Josep M. Rodriguez numa tradução de Manuel Freitas. Entre outras coisas, o poema diz-nos o que é isso da autenticidade, e de como ela é esquiva e vai muito para além da verdade. Na realidade, a autenticidade pode até ser uma mentira ou o que não sabemos:
De pé neste
penhasco,
aceito a
mentira da paisagem.
Tudo é
inacessível:
o orvalho
– que é
suor vegetal –
e o comboio
que passa.
Uma cegonha
voa a preto e branco.
Tem o seu
ninho no cimo da igreja
que fica
junto ao cemitério.
Estranho
paradoxo,
a pedra
testemunha a fugacidade,
a carne é
apenas um leito para o tempo.
(Cada osso
que tenho é uma lápide
pelos mortos
que escondo no meu íntimo.)
Para quê
contar o tempo que nos resta?
Viver é
abraçar escuridões:
do que não
sabemos ao que não sabemos,
de uma
distância a outra distância.
Tudo é
inacessível.
Quem vê um
comboio passar compreende o resto.
A
autenticidade contém sempre em si uma indecisão, um momento lento em que tudo
compreendemos mas nada percebemos e vice-versa. Há nela uma luz difusa que
ilumina mas que também escurece, como a das velas ou como a daqueles instantes
em que bebemos demasiado vinho, o tempo fica mais lento e temos uma súbita
iluminação, vemos nitidamente algo de decisivo, que depois, uma vez passados os
vapores etílicos, se esconde e nos escapa para sempre por entre sombras.
Abaixo uma
pintura de 1640 de George La Tour, na qual se vê representada Maria Madalena à
lenta e ténue luz de uma vela. Será verdade que Maria Madalena era uma
prostituta? Ou será verdade que era uma santa? Não se sabe e pouco importa, a
sua lenda oscila entre uma coisa e outra, tal como a luz autêntica vinda da
chama de uma vela, vacila entre a claridade e a escuridão.
Nos evangelhos apócrifos, de cuja autenticidade há muito quem duvide, a começar pela Santa Madre Igreja, fala-se de Maria Madalena, de Jesus, de sombras, de trevas e luz: “E a companheira do salvador era Maria Madalena. Cristo amava Maria Madalena mais do que a todos os discípulos, e costumava beija-la frequentemente. O resto dos discípulos ficaram ofendidos com isso e expressaram desaprovação. Eles disseram-lhe: Por que a amas mais do que a todos nós? O Salvador respondeu e disse-lhes: Por que não vos amo como a ela? Quando um cego e aquele que vê estão ambos juntos nas trevas, eles não são diferentes um do outro. Quando a luz vier, então aquele que vê verá a luz, mas o cego permanecerá nas trevas.”
Uma verdade
só por si, pode ser qualquer coisa de bastante útil e importante, mas não deixa
por isso de ter também qualquer coisa de vulgar e banal.
Por exemplo,
é absolutamente verdadeira a afirmação de que o tabaco é prejudicial à nossa
saúde, que nos faz mal e pode até ser mortal. No entanto, se olharmos a um
poema de Manuel Freitas, no qual se fala de morte e de cigarros, percebemos que
aí se diz qualquer coisa de intensamente luminoso e de vagamente sombrio.
Dizendo-se por isso, algo de ambivalente, mas com muito mais autenticidade, do
que tão-somente uma simples e mera verdade.
A morte,
claro.
Existem
porém dias grandes, irredutíveis a versos,
em que a
indecisão da luz
nos açoita
de felicidade.
São dias
raros, futuras
imagens do
nada, o suficiente
para que a
palavra amor substitua
o primeiro
cigarro da manhã.
Chegámos
tarde. O quarto 203
trazia-me de
novo o teu corpo.
E até a
música dos sinos
vinha
deitar-se connosco.
Mas será que
há autenticidade para lá da poesia e da arte, ou fora disso, só há mentira e
verdade? Será que ainda conseguimos ver à luz incerta e trémula das velas? Ou
será que atualmente só há escuridão, ou então, luzes fortes e cruas, que como
potentes holofotes tudo iluminam sem dó nem piedade?
Não temos
uma resposta certa para tais questões, o que sabemos, é que nas escolas (e não
só) é possível educar para o mistério das coisas e da vida. É o mistério o que
alimenta o desejo de saber (e não só).
Há quem
queira à viva força mais rigor e exatidão. Quem cujo anseio seja mais testes e
exames, com respostas certas e erradas, com mentiras e verdades. Mas nós não
somos desses, continuamos a acreditar que em cada questão há mil respostas
autênticas possíveis a descobrir, afinal de contas, a água para quem tem sede
não é apenas H20.
Talvez tenha
sido algo de semelhante a isto que dissemos, que o pedagogo português João dos
Santos (1913-1987) quis dizer no livro “Se não sabe porque é que pergunta?”.
Talvez que quando tenhamos uma questão, o caminho certo não seja perguntar pela
resposta certa, talvez o caminho autêntico seja o de sermos nós a descobrir as
nossas respostas entre as mil possíveis, ou seja, aquelas que são verdade, mas
sobretudo aquelas que têm autenticidade.
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