É bom ver arte contemporânea, e isto
mesmo quando não se percebe nada de arte. Aliás, uma das grandes vantagens da
arte contemporânea, é precisamente essa, ou seja, todos a conseguem perceber,
até crianças da mais tenra idade, digamos por exemplo, de seis ou sete anos.
Em boa verdade, estamos mesmo em
crer, que as crianças conseguirão perceber muito mais rapidamente algumas obras
de arte contemporânea, do que as gentes adultas.
Vem isto a propósito de uma exposição
da Culturgest, em Lisboa, na qual se mostram as obras da coleção de arte
contemporânea da Caixa Geral dos Depósitos. É uma das mais prestigiadas
coleções do nosso país, mas ainda assim, não é de excluir a hipótese, de que
qualquer adulto que a visite, sinta ao fazê-lo, uma enorme estranheza e se
questione sobre o sentido daquilo que observa.
Vejamos um exemplo, uma obra de Leonor Antunes, intitulada “Funambolismo”.:
Como poderão verificar pela imagem
acima, a obra consiste tão-somente num estreito percurso de sensivelmente uma
dúzia de metros, o qual o visitante é suposto atravessar, equilibrando-se com a
ajuda de uma vara. Em síntese, nada de especial. Não é propriamente um Da Vinci…
Mas uma vez dito isto, o certo é que
há nesta obra uma lição. Imaginemos que o percurso é uma metáfora das nossas
vidas. Sabemos que num ou noutro ponto ao longo do caminho, nos vamos
desequilibrar e eventualmente cair, é assim a vida. Mas sabemos também, que
podemos continuar, tentar reequilibramo-nos e seguir em frente até ao fim.
Um adulto talvez olhe para esta obra
de arte e pouco ou nada veja, mas uma criança certamente que percebe
imediatamente a ideia, que no fundo consiste em cairmos, falharmos, voltarmos a
tentar e acabarmos por conseguir terminar a viagem. Na realidade, é isso o que
significa crescer, ir avançando, mesmo que por vezes se vá tropeçando e até
caindo.
Acreditamos que uma criança intuí
instantaneamente esta mensagem na obra de Leonor Antunes. Já no que concerne a
um adulto, é muito provável que não a perceba tão rapidamente.
As crianças estão a crescer e por isso andam sempre a testar o seu equilíbrio, seja nas bermas dos passeios, nos desenhos das pedras da calçada, a saltar à corda ou a jogar à macaca. Os adultos, por outro lado, creem-se muito equilibrados, razão pela qual, por vezes não entendem nada do que veem à sua frente.
Mas pensemos agora, numa outra obra patente na mesma exposição. Esta de Gabriela Albergaria e cujo título é “Árvore cortada em cubos e montada em linha”. Acreditamos que o título descreve perfeitamente a dita obra, ainda assim, abaixo fica uma imagem.
Mais uma vez, cremos que será fácil a
uma criança perceber imediatamente o que aqui está aqui presente. É certo que
hoje em dia há muitos ecrãs para a criançada se entreter, todavia, estamos
convencidos que a maior parte ainda brincou (ou brinca) com cubos de madeira,
legos ou outros jogos para construir coisas, assim tipo cenas.
Qual é a criança que não gosta de
colocar coisas por ordem? Seja a crescer ou a decrescer, pois para o caso,
tanto faz. E qual é também a criança, que não gosta de desmontar algo e de o
remontar.
Se porventura tivessem tal
oportunidade, acreditamos que nenhuma criança desdenharia em desmontar e
remontar uma árvore inteira. Foi precisamente isso, o que fez Gabriela
Albergaria.
Relativamente a montar, desmontar e
remontar, parece-nos que até mesmo os adultos se divertem com tais práticas e,
assim sendo, todos poderão apreciar a obra “Árvore cortada em cubos e montada
em linha”. Já agora, a árvore é originária da floresta de Monsanto, não muito
longe da vila de Sintra.
“O canavial: memória metamorfose de um corpo ausente” é uma obra de Alberto Carneiro de 1968, que igualmente podemos ver na exposição. No que consiste, é numa estreita e sinuosa passagem, por entre um canavial banhado por uma luz semi-obscura.
Também no caso desta obra de Alberto
Carneiro, não é difícil pensarmos em desafios infantis. Quem, quando em
criança, nunca se escondeu debaixo de uma mesa ou de uma cama, e atravessou um
túnel semi-obscuro?
Tanto fazia que esse túnel não
tivesse mais que um metro de distância entre o princípio e o fim, o que na
verdade interessava, era essa sensação de aventura que se sentia na travessia,
por curta que esta fosse.
No caso da obra de Alberto Carneiro,
a travessia do canavial, entre o início e o final, tem bem mais que um metro.
Mesmo sendo adultos, também não há de ser complicado de perceber, que numa
qualquer travessia que façamos na vida, há sempre momentos de sombra, bem como
memórias, metamorfoses e corpos ausentes.
“…é esta a linha ao longo da qual…”
São estas as palavras iniciais, às
quais se acrescentam outras, que sucessivamente e repetidamente surgem, tal e
qual iguais, durante metros e metros por uma parede afora.
A obra é de Luísa Cunha e o seu nome é “Linha # 1”.
O certo é que mais uma vez, é o
universo inocente e ingénuo das crianças que aqui nos aparece. Qual terá sido a
criança, que enquanto o foi, não gostou de repetições? Fosse uma lengalenga, o
mesmo e sempre idêntico “Era uma vez…”, ou o nunca diferente “Vitória, vitória
acabou-se a história”, todas as crianças adoram os dizeres em que os ritmos, as
sílabas, os sons e tons se repetem: “Um dó-li-tá, quem está livre, livre está”.
Estamos em crer, que os adultos
também gostam dos dizeres que repetem os mesmos motes, pelo menos a avaliar por
uma canção que havia noutros tempos e rezava assim:
“Ora dá cá um e a seguir dá outro. Depois dá mais um que só dois é pouco. Ai eu gosto tanto e é tão docinho. E no entretanto dá mais um beijinho”
A última obra desta exposição de que
vos queremos falar, intitula-se “O (de Eco a Narciso)”. É de 1998 e o seu autor
é Ricardo Jacinto. Não é uma obra de fácil compreensão, nem sequer para as
crianças. Mas ainda assim, se lhes contarmos uma história, precisamente a de
Eco e Narciso, talvez tudo se torne mais claro.
Se olharem para a fotografia abaixo da obra "O (de Eco a Narciso), talvez possam constatar que existe um microfone, instrumento esse, que de algum modo, faz eco da nossa voz.
Se voltarem a olhar, constatarão também que existe uma televisão, aparelho que de certa forma reflete. Se olharem ainda com mais atenção, verão que há uma superfície espelhada que ecoa imagens.
Se tiverem um pouco de paciência e nos lerem até ao fim, já adiante relacionarão tudo isto com a história de Eco e Narciso.
Eco era uma
ninfa cheia de encanto, beleza e juventude. Um dia foi castigada, uma deusa
condenou-a a repetir para sempre a última sílaba daquilo que ouvia.
Mais tarde,
Eco apaixonou-se por Narciso, mas ele ignorou-a. Eco refugiou-se nas cavernas.
Aí morreu de desgosto, e é nessas cavidades onde ainda hoje se ouve a sua voz.
Por ter
desdenhado de Eco, Narciso foi castigado pelos deuses. Foi condenado a
apaixonar-se pela sua própria imagem. Acabaria por morrer a olhar para o seu
rosto refletido nas águas de um lago.
É uma história
de encantar, a de Eco e Narciso. Não acaba bem, isso não, mas estamos
perfeitamente convencidos, que quando há encanto, quer adultos, quer crianças
acabam por compreender daquilo que se fala, nem que seja de arte contemporânea.
Mas caso assim não seja, e a arte contemporânea vos seja incompreensível, nomeadamente para vós que sois adultos, aqui fica a mesma história, Eco e Narciso, mas desta vez, em estilo neoclássico.
Terminamos deixando-vos a folha de sala da exposição da Culturgest, cujo título é “Fantasma/ Gaita”:
Afinal não terminámos... temos um encore. Deixamos-vos também um pequeno guião que usámos para uma visita de estudo a esta exposição...
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