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A indecisão da luz, o mesmo é dizer, sonhemos com Marlene Dietrich, ou talvez em acabar de vez com o 2º ciclo de escolaridade.

A luz é indecisa, tanto escurece o que ilumina como ilumina o que escurece. No fundo, a luz é esse constante e contrastante jogo entre o negror e o fulgor. A foto acima é de Marlene Dietrich, no seu rosto há claros cintilares e soturnas escuridões, que lutam entre si e nos dão a ver um estupendo exemplo da eterna contenda entre luminosidade e obscuridade.

 

Mas não é de Marlene Dietrich que vos queremos agora falar, mas sim da educação nacional. Também nela há assuntos que surgem na luminosa babugem dos dias, mas que depois, indecisos, se escondem e desaparecem na obscuridade durante uns tempos. Mais tarde, regressam novamente à claridade, lutam mas voltam a escurecer, e assim sucessivamente.

 

São assuntos dos quais se fala intermitentemente durante décadas, mas que nunca chegam a materializar-se totalmente à luz clara da realidade. No fundo, não são bem assuntos, é mais como se fossem uma espécie de ideias platónicas, que repetidamente aparecem, desaparecem e reaparecem, num eterno e indeciso jogo de luzes e sombras.

 

Há coisas que jamais chegam a ser plenamente dadas à luz. Pensemos por exemplo, em algo que nada tem a ver com educação, a saber, em aeroportos que em tempo algum se constroem.

O novo aeroporto de Lisboa aparece, desaparece e reaparece, nunca chegando verdadeiramente a ser. É quase como se também ele fosse uma espécie de ideia platónica, algo que de certa forma existe, mas que simultaneamente não existe.

E se ao invés de nos andarmos a massacrar, rebaixando a autoestima nacional e dizendo que em Portugal não há capacidade de decisão e que tudo se adia, disséssemos antes, que o novo aeroporto, que anda há cinquenta anos à espera de ser dado à luz, mais não é do que uma bela ideia platónica?

 

Uma ideia linda, com o seu quê de poético, destinada a continuamente vaguear no éter, bailando entre sombras e luzes, mas não algo para ser efetivamente concretizado. Em síntese, e se disséssemos que o novo aeroporto mais não é que filosofia ou então pura poesia…e se…

 

Se assim fosse, já não nos veríamos como um povo que adia constantemente o que há para fazer, mas sim como um povo de sonhadores, poetas e filósofos. Um povo que idealiza excelentes soluções, mas que prefere não as colocar em prática, pois entretém-se plenamente com poéticas e filosóficas contemplações platónicas.

 

Na verdade, se assim fosse, já não teríamos porque nos martirizarmos, poderíamos dizer para connosco, que certamente haverá povos mais eficientes, esses que pensam, planeiam e executam, mas que nós, os portugueses, somos muito maiores que a própria realidade. O nosso hino poderia até ser assim: “heróis do mar nobre povo que idealiza, sonha e não faz…contra a realidade marchar, marchar”.

 

Certamente que Platão ficaria orgulhoso da lusitana nação, que entre escolher a realidade concreta e um ideal, prefere sem a menor hesitação o ideal.


E agora sim vamos à educação, pois tudo isto vem a propósito, de ter vindo novamente à luz, a ideia de fundir o primeiro e o segundo ciclo de escolaridade. Ontem, o Conselho Nacional de Educação anunciou que vai propor ao novo governo, seja lá ele de que partido for, extinguir o 2° ciclo de escolaridade na próxima legislatura.

 

Tal como o aeroporto, é uma daquelas ideias platónicas que paira no ar e nunca mais levanta voo. O 2° ciclo, tal como está, é uma originalidade portuguesa sem praticamente nenhum paralelo noutro sítio do mundo civilizado. Lá por fora, o mais vulgar é a existência de um primeiro ciclo que se prolonga até ao 6° ano de escolaridade.

 

No entanto, apesar de ser essa a prática corrente em quase todos os países desenvolvidos, e de já há muito se ter chegado à conclusão que isso provavelmente seria uma boa solução, o certo é que essa ideia nunca se chega a materializar. Tanto é, que já em 2008, o jornal Expresso nos dava conta que o Conselho Nacional de Educação de então, propunha a fusão do 1º e 2º ciclo do ensino básico:

 

https://expresso.pt/actualidade/manter-o-mesmo-professor-ate-ao-2-ciclo=f325917

 

Estudos feitos à época, concluíram que há uma transição muito brusca entre estes ciclos do ensino básico e que “O contraste acentua-se ainda pela diferença de cultura profissional entre os professores do 1º ciclo e do 2º ciclo. Enquanto que os primeiros se assumem como professores de crianças cuja missão se centra na promoção de aprendizagens fundamentais por parte dos alunos, os segundos assumem-se primeiramente como professores de uma disciplina escolar. Ou seja, para os primeiros o que interessa é que os alunos aprendam, enquanto que para os segundos o que interessa é que a sua disciplina seja aprendida. Para os primeiros o foco são os alunos, enquanto que para os segundos o foco é a disciplina escolar".

 

Tudo isto está estudado e mais do que estudado, sendo que, de todos esses estudos surgiram propostas que sugerem a implementação de um regime misto de monodocência com progressiva coadjuvação até ao 6° ano de escolaridade, em várias das áreas disciplinares.

Mas dito isto, nunca por nunca se decide em conformidade, o que nos faz verdadeiramente desconfiar, que estaremos diante de mais uma autêntica ideia platónica, dessas cujo destino é permanecerem nessa indecisão entre a luz e a sombra, na qual algo existe e simultaneamente não existe.

Atentemos num poema de Adília Lopes: 

A rapariga que esperava muito

as cartas do namorado

que lhe escrevia muito pouco

casou-se com o carteiro

 

O poema reflete bem, parte deste nosso desígnio nacional, ou seja, o de gostarmos de namorarmos com ideias platónicas e de recebermos cartas poéticas, mas no fim acabarmos por casar com o carteiro.

 

As ideias brilhantes apaixonam-nos mas também nos encadeiam. Encadeiam-nós de tal modo, que nos paralisam. Razão pela qual, optamos antes pelo mais cómodo ainda que mais sombrio, ou seja, por aquilo que é seguro e não brilha tanto, o igual ao de sempre, o que nem é claro nem é escuro.

 

Uma vez feita essa opção, podemos continuar platonicamente a pensar sobre o que poderia ter sido, caso a opção fosse outra. No fundo, é a nossa vocação, a de sermos poetas, sonhadores e filósofos, ou seja, a de vivermos entre laivos de luz e escuras sombras, algures entre o ser e o não-ser, não na realidade, mas sim no nevoeiro.

Não é de excluir a hipótese, de que o novo aeroporto de Lisboa, tal como a fusão entre o 1° e o 2° ciclo de escolaridade, só aconteçam em Portugal no dia em que D. Sebastião regressar numa manhã de nevoeiro. Aguardamos por esse dia ideal, o problema é que o retorno à pátria de El-Rei D. Sebastião é uma história de ficção, não é real.

Em vez de ideias platónicas e de passarmos o tempo a sonhar, olvidando que a realidade existe e pode ser transformada, talvez fosse bom começarmos a refletir nas seguintes palavras de Marlene Dietrich: “Na vida real, a maioria dos atores de cinema são uma decepção. Eu, por outro lado, sou melhor na vida real do que no cinema."

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