Um dos mais surpreendentes temas surgidos nesta atual campanha eleitoral, no que à educação concerne, foi o facto de se ter começado publicamente a debater, onde é que certos políticos têm os seus filhos a estudar, se na escola pública ou na privada.
Nesse contexto, nos últimos
tempos, houve determinados políticos que foram acusados de serem incoerentes,
por defenderem com unhas e dentes o ensino público e, simultaneamente, terem os
seus próprios filhos a estudar em escolas privadas.
Ao que se diz, se um político defende a escola
pública, para ser coerente com essa sua posição, não poderá ter os seus filhos
a frequentar o ensino privado, pois caso os tenha, mais não será que um mero hipócrita.
Ainda anteontem, o colunista João Miguel Tavares, no
jornal Público, aparentava advogar essa mesma tese. O artigo intitulava-se
“Defender a escola pública com os filhos dos outros” e iniciava-se assim:
“Saber se os filhos dos políticos andam em escolas públicas ou privadas, desde
que essas escolas não sejam identificadas, não é invasão de privacidade em lado
algum”.
Desde já vos dizemos, que a discussão acerca de onde
estudam os filhos dos políticos, nos parece absolutamente irrelevante. Contudo,
e dito isto, não cremos que esse seja um assunto tabu, exclusivamente
pertencente à esfera íntima, e do qual não se possa falar publicamente. Em
conclusão, na nossa opinião é um tema insignificante, mas não proibido.
Se por um lado consideramos que o sítio onde estudam
os filhos dos políticos um tema descartável e desinteressante, por outro lado,
e contraditoriamente, decidimos dedicar-lhe a nossa melhor atenção e escrever
sobre o mesmo.
Para agravarmos a nossa contradição, consideramos que
os filhos dos políticos estudarem numa escola pública ou privada não é um
assunto proibido e exclusivamente pessoal, a propósito do qual não se possa
escrever, e por isso, e em total disconformidade com o que dizemos, nada
escreveremos sobre esse ponto em concreto.
Confusos? Calculamos que sim, mas como já terão percebido, a coerência não é o nosso forte. O que na verdade queremos dizer, é que vamos escrever acerca de um tema irrelevante, mas não proibido, e isto de um modo, em que nada de especifico escreveremos sobre esse tema. E agora? Ficou mais claro? Parece-vos mais coerente? Sim? Não? Ainda bem.
Uma vez feito o intróito, vamos então seguir com a
missa, o mesmo é dizer, com o assunto em questão. O pressuposto que, tanto
quanto percebemos, sustenta o debate público sobre este tema, é o célebre
adágio popular, "bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que
ele faz".
Segundo certas opiniões, um político que defende a
escola pública e coloca os seus filhos a estudar no ensino privado, estará a
pregar aos outros para fazerem algo, que ele próprio não faz, tal e qual como
Frei Tomás.
No fundo, esses políticos são acusados de pregar aos
restantes, o que não pregam para si mesmos. Aparentemente essa atitude parece
uma hipocrisia, todavia, se fizermos uma analogia com um martelo, talvez já não
nos pareça assim tanto.
A analogia é a seguinte: uma vez que um martelo prega
muitas e variadas coisas, ser-lhe-á por isso exigível que seja coerente e
também se pregue a si mesmo?
A questão parece-vos parva? Sim? Não? Talvez, uma vez que joga com a polissemia do verbo pregar, mas, seja como for, o desenho abaixo ilustra-a na perfeição.
A nós parece-nos evidente que não é exigível a um
martelo que se pregue a si próprio, tal como, por analogia, também não será
exigível a um político, que pregue para si mesmo o que prega para os outros.
A nosso ver, no domínio da política, pregar aos outros
o que não se prega para si mesmo, em princípio, nada tem que ver com
hipocrisia, tem sim a ver com democracia representativa.
O problema é que muita gente não sabe o que significa
a democracia representativa. Entre muitas outras coisas, o que na verdade esta
significa, é que os políticos candidatam-se e são eleitos (ou não) para nos
representarem, o mesmo é dizer, para atuarem em nosso nome. Se são coerentes ou
não com o que apregoam, é uma questão menor.
Os políticos democraticamente eleitos existem para
representarem e atuarem, e mais concretamente, para personificarem o povo e as
suas respetivas ambições, anseios e desejos.
Feitas as contas, nas democracias representativas, os
políticos são os que representam, os atores do regime, sendo que, ser ator não
significa ser falso, mentiroso, hipócrita ou incoerente, significa sim encarnar
um ou mais personagens.
As afinidades entre ser-se político e ser-se ator são
tantas, que só assim de repente, recordamos-nos imediatamente de três que
tiveram enorme sucesso em ambos os campos. Ronald Reagan foi um galã de
Hollywood e depois veio a ser Presidente dos Estados Unidos da América. Arnold
Schwarzenegger foi uma estrela à escala global e seguidamente foi durante muitos
anos governador do Estado da Califórnia. Volodymyr Zelensky foi um popular
comediante televisivo e desde de 2019 que é presidente da Ucrânia.
Podíamos igualmente falar de casos menos bem
sucedidos, como por exemplo, o do humorista brasileiro Tiririca, que foi eleito
deputado com o mote “Pior que tá não fica” e pelos vistos ficou. Ou ainda da
atriz italiana de filmes para adultos, Cicciolina, igualmente eleita deputada.
No seu tempo de política, Cicciolina propôs-se entregar-se ao então presidente
iraquiano, Saddam Hussein, para assim colocar um fim aos conflitos no Médio
Oriente. Ao que se sabe, Saddam recusou.
O ator que se tornou político, de que nós mais gostamos, é Clint Eastwood, que foi Mayor da cidade californiana de Carmel-by-the-Sea. Aqui fica uma foto sua no clássico Western “O Bom, o Mau e o Vilão”, um dos seus filmes de maior sucesso.
A relação entre a esfera política e a da representação
é tão intensa e profunda, que são incontáveis os filmes, as peças teatrais e as
séries televisivas em que o personagem principal era um político.
Essa relação iniciou-se há milénios, ainda no tempo da
Grécia antiga. A esse propósito, um dos maiores estudiosos da civilização
helénica, o italiano Diogo Lanza, disse-nos assim: “o teatro ateniense situa-se
no espaço político da cidade e a sua linguagem é a linguagem política”.
Winston Churchill foi um dos maiores governantes de
sempre, talvez tenha sido o mais brilhante herdeiro da linguagem política
nascida na antiga civilização grega. Exerceu as funções de Primeiro-Ministro
britânico durante a Segunda Guerra Mundial e conseguiu conduzir a nação a uma
vitória diante do terror alemão.
Foi uma vitória feita de sangue, suor e lágrimas, mas
também de palavras. Através dos seus frequentes discursos, que todos os
britânicos escutavam religiosamente pela rádio, Churchill liderou, inspirou e
encorajou o seu povo a resistir e a lutar até ao fim:
“WE SHALL
FIGHT IN FRANCE, WE SHALL FIGHT ON THE SEAS AND OCEANS, WE SHALL FIGHT WITH
GROWING CONFIDENCE AND GROWING STRENGTH IN THE AIR, WE SHALL DEFEND OUR ISLAND,
WHATEVER THE COST MAY BE, WE SHALL FIGHT ON THE BEACHES, WE SHALL FIGHT ON
THE LANDING GROUNDS, WE SHALL FIGHT IN THE FIELDS AND IN THE STREETS, WE SHALL
FIGHT IN THE HILLS; WE SHALL NEVER SURRENDER.”
Churchill sabia o valor do sacrifício, mas sabia
também que um político é um ator e que a coerência não é algo a que se deva dar
demasiada importância. Numa das suas mais geniais tiradas, disse assim: “A
política é a arte de prever o que vai acontecer amanhã, na semana que vem, no
mês que vem e no ano que vem, e de mais tarde ter a habilidade para
explicar por que razão nada disso aconteceu”.
Se os políticos acusados de defenderem o ensino
público e terem os seus filhos no ensino privado fossem dignos herdeiros da
Grécia antiga, certamente que seriam bons atores e teriam arte para explicar a
quem os ouvisse, por que razão defenderão a escola pública amanhã, na semana
que vem, no mês que vem e no ano que vem, e teriam simultaneamente habilidade
para explicar a razão pela qual os seus filhos não a frequentam.
Churchill sabia que quem é completamente coerente e mantém sempre a dele sem nunca a alterar, pode tornar-se um tipo perigoso: “Fanático é aquele que não consegue mudar de opinião e não aceita mudar de assunto.”
No filme “O bom, o mau e o vilão” cada um deles é
interpretado por um ator diferente. Um político competente sabe que deve ser
capaz de representar todos os três, e por vezes simultaneamente. Se tiver a
arte e a habilidade para ainda assim parecer coerente, melhor, mas isso é algo
só alcance de alguns eleitos.
Terminamos com o célebre tema musical de “O bom, o mau e o vilão”, composto pelo incontornável Ennio Morricone:
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