Que discos levaríamos para uma ilha deserta? Esta é
uma questão que lateralmente atravessará todo este texto. Todavia, não lhe
vamos dedicar nem mais uma palavra, quanto mais uma frase. Vamos sim falar de
música.
Surgiu por inícios da década de 60 do século XX e
durou até meados dos anos 80, um programa na rádio que se chamava “Quando o
telefone toca”. O conceito era simples, os ouvintes telefonavam, diziam o seu
nome, pediam um disco e por vezes dedicavam-no a alguém. O disco pedido tocava,
vinha um outro telefonema, outro disco pedido tocava, e assim sucessivamente.
Quem telefonava eram gentes das mais diversas idades,
terras e classes sociais, e assim sendo, tanto podia tocar o último sucesso em
voga como um fado muito antigo. Não havia qualquer critério ou seleção musical,
excepto o que era consequência das escolhas dos ouvintes.
O programa era patrocinado por uma marca ou
estabelecimento comercial, e havia uma frase publicitária simples a decorar e a
repetir pelos ouvintes antes de pedirem o disco. A conversa passava-se mais ou
menos do seguinte modo:
- Boa noite, posso dizer a frase?
- Pode.
- Sapatos bons para o seu pé, só na sapataria Tozé.
- Posso pedir disco?
- Pode
- Era o José Cid, “Como o macaco gosta da banana”.
- Posso dizer o nome?
- Pode.
- Sou o Joselito da Quinta da Amoreira. Posso dedicar o disco?
- Pode.
- É prá Clementina que mora no 3° Esquerdo, lote 6 do Bairro Sonho de Abril. E já agora é também prá Leocádia do 2° Direito, não vá ela ficar chateada.
O programa “Quando o telefone toca” foi um enorme
sucesso de audiências, sendo que na verdade, o que tinha de único, era que os
muitos que o ouviam, eram “obrigados” a escutar temas musicais para todos os
gostos.
Os gostos eram diversos, havia quem os tivesse
refinados e quem os tivesse estragados, contudo, todos ouviam de tudo, desde o
Marco Paulo a Led Zeppelin, passando pela Amália, pelas Doce ou pelos Pink
Floyd.
Dantes havia rádios a tocar música por todo o lado,
depois deixou de haver. As pessoas iam ao café, à taberna, ao clube recreativo
local ou à mercearia e deixavam-se por lá ficar a ouvir as cantigas que vinham
pelo éter.
Inclusivamente nas escolas, sobretudo nos liceus, não
era de todo em todo invulgar que as associações de estudantes arranjassem um
gira-discos, umas colunas de som e um amplificador, e nos intervalos das aulas
dessem música ao pessoal, tal e qual como uma estação radiofónica.
Hoje em dia já nada disso existe, os programas de
telefonia e as próprias estações de rádio especializaram-se, e cada qual só
ouve aquilo que gosta de ouvir e nada mais. A música também já não entra pelas
escolas adentro, pois os jovens andam agora equipados com fones nos ouvidos e
cada um escuta o que escuta exclusivamente para si. A minha playlist é minha e
só minha, a tua é tua e só tua.
Em síntese, escutar-se música em conjunto, ouvindo-se aquilo de que se gosta e também aquilo de que não se gosta, mas de que há quem goste, é uma prática que já não existe. É certo que há mega-festivais e concertos em estádios e arenas que juntam multidões, mas isso são eventos organizados, com data certa e de alta índole comercial, que nada têm a ver com práticas correntes e espontâneas, que antes naturalmente aconteciam no dia a dia.
Há uma parte da educação musical que tem a ver com
saber cantar afinadamente, tocar um instrumento, ler uma pauta e conseguir
distinguir notas e tons. Mas há uma outra parte, que tem simplesmente a ver com
o ouvir e sentir.
É certo que quem tem conhecimentos musicais ouve e
aprecia melhor do que quem não os tem, contudo, já no que diz respeito ao
sentir, é capaz de não ser tanto assim. Mesmo quem não possua nenhum
conhecimento musical, certamente que se entusiasma, alegra, salta e dança com
ritmos e melodias vibrantes, e mesmo quem não consiga distinguir um dó-ré-mi de
um fá-sol-lá-si, consegue ainda assim sentir a melancolia e a tristeza que por
vezes se desprende de certas notas e tons.
Saber sentir a música é tudo o que basta, para ao
ouvir-se uma melodia se saltar e dançar, ou para se padecer de amor e se
suspirar de dor. Sentir é o suficiente, sendo precisamente isso, que a todos é
comum, o que antes permitia, que independentemente dos gostos ou conhecimentos
musicais de cada um em particular, todos ouvissem melodias e cantigas em
conjunto através da rádio do café de esquina ou através da aparelhagem de som da
escola.
O jornal Blitz existiu desde 1984 até aos primeiros anos do século XXI. A publicação dedicava-se à música: ao Pop, ao Rock, ao Metal, ao Fado e a tudo o mais. Depois de ter sido um jornal semanal, ainda se aguentou uns anos como revista mensal, no entanto, acabou por fechar. Antes desse triste momento, ainda teve tempo para eleger os 25 melhores álbuns de sempre da música portuguesa.
A eleição dos 25 melhores álbuns de sempre da música
portuguesa foi um exercício de esperança. Esperança porque pressupõe que no seu
conjunto, os portugueses acolhessem a ideia de que há álbuns musicais que fazem
parte de todos nós, ou seja, que não é cada um individualmente que decide qual
é a playlist dos melhores de sempre.
Independentemente de gostarmos mais desta ou daquela
banda ou daquele ou de um outro tema, a escolha dos 25 melhores álbuns de
sempre da música portuguesa tem como pressuposição que somos um coletivo e que
não andamos todos de fones nos ouvidos, completamente surdos a tudo o que não
sejam os nossos próprios gostos.
A tese é a de que ainda conseguimos sentir que uma
música faz parte do nosso património comum. A presunção é a de que ainda
conseguimos sentir e ouvir música em conjunto.
O Blitz depois de ouvir muitas e variadas gentes, elegeu cinco álbuns por década, desde os anos 60 até à primeira década do século XXI. Aqui fica lista:
Anos 60
1. Carlos Paredes – Guitarra Portuguesa
2. Amália Rodrigues – Busto
3. José Afonso – Cantares de Andarilho
4. Filarmónica Fraude – Epopeia
5. Alfredo Marceneiro – The Fabulous Marceneiro
Anos 70
1. José Afonso – Cantigas do Maio
2. Carlos Paredes – Movimento Perpétuo
3. José Mário Branco – Mudam-se Os Tempos, Mudam-se as
Vontades
4. Amália Rodrigues – Com Que Voz
5. Carlos do Carmo – Um Homem na Cidade
Anos 80
1. Rui Veloso – Ar de Rock
2. Heróis do Mar – Heróis do Mar
3. GNR – Independança
4. Fausto – Por Este Rio Acima
5. Madredeus – Os Dias da Madredeus
Anos 90
1. Pedro Abrunhosa – Viagens
2. Mão Morta – Mutantes S. 21
3. Ornatos Violeta – O Monstro Precisa de Amigos
4. Rui Veloso – Mingos & Os Samurais
5. Ornatos Violeta – Cão
Anos 00
1. Humanos – Humanos
2. Camané – Esta Coisa da Alma
3. Dead Combo – Vol. 1
4. Sam The Kid – Beats
(Vol.1)
5. Rodrigo Leão – Cinema
Uma vez estabelecido este cânone, que no fundo
corresponde à música que é de todos os portugueses, vamos nós agora fazer a
nossa playlist. Não nos vamos afastar da lista, vamos sim escolher uma canção
em cada uma das décadas, sendo que todas elas constam nos álbuns escolhidos
pelo Blitz.
A nossa playlist, apesar de ser uma escolha pessoal,
ainda assim, tem um caráter eminentemente coletivo. Com efeito, não escolhemos
as cantigas de que mais gostamos, mas sim as que abordam problemáticas
nacionais, daquelas que nos assolam enquanto povo e nação.
Dos anos 60 escolhemos o fado “Ironia”, que faz parte do álbum de Alfredo Marceneiro, “The Fabulous Marceneiro”. A razão da nossa escolha é simples, o fado fala-nos de uma problemática que atravessa a História de Portugal, desde o nascimento da nação até à atualidade, ou seja, mulheres que parecem sérias e são cruéis, e homens que coitados, são abandonados. Enfim, agora como sempre, amor, ciúme, cinzas e lume:
Na década de 70 escolhemos o tema “Maio maduro Maio”
do álbum de José Afonso “Cantigas de Maio”. A nosso ver, a metafórica cantiga
de José Afonso, fala-nos de algum modo de um problemática, que a muitos agora
preocupa: a imigração que vem de Oriente.
A determinado momento da canção diz-se assim: “Raiava
o sol já no Sul e uma falua vinha lá de Istambul”. De Istambul? Numa falua? São
com certeza imigrantes muçulmanos num barco. Provavelmente José Afonso já antevia os
problemas que a imigração iria trazer à nossa nação.
O primeiro problema é o facto de termos mercearias
abertas perto de casa a qualquer hora do dia e da noite. Com efeito, é uma
vergonha podemos adquirir um pacote de arroz sem termos de nos deslocar aos
hipermercado, prejudicando assim os lucros desses grandes grupos empresariais
nacionais e empobrecendo os seus acionistas e proprietários.
O segundo problema são os kebabs, que fazem uma concorrência desleal às tão nossas bifanas e sandes de courato e aos trabalhadores das barraquinhas e roulettes. Uma bifana e um courato, é coisa que cai tão bem aquando das manifestações e festas do 1° Maio:
Relativamente à década de 80, a nossa escolha vai para
o tema “Donzela Diesel” do álbum “Ar de Rock” de Rui Veloso. A canção fala-nos
de uma outra problemática nacional, a saber, a carestia dos combustíveis.
Há muito por aí quem queira andar com altas cilindradas e depois verifique que não tem rendimentos suficientes para abastecer o depósito. É desses perigos que Rui Veloso nos fala: “Andas aí no ataque nas boates da moda, a dançar o disco como ninguém. Longe vai o tempo do uísque com soda, és coisa de luxo, gastas bem aos cem. Vê lá bem donzela diesel. Vê lá bem que a vida nem sempre é super. Vê lá bem donzela diesel”:
No que concerne aos anos 90, a nossa escolha vai para
o tema “Ouvi dizer” do álbum dos Ornatos Violeta, “O Monstro Precisa de
Amigos”. O que aparentemente é apenas um tema romântico, na verdade fala-nos
também de um modo subliminar de prestações bancárias, uma problemática que
também muito afeta as nossas gentes.
No refrão da canção, o vocalista repete por três vezes quase em desespero: “E pudesse eu pagar de outra forma. E pudesse eu pagar de outra forma. E pudesse eu pagar de outra forma…”. Sabemos que há medidas, renegociações e subsídios para tentar aliviar o custo das prestações, contudo, temos muitas dúvidas que neste caso aliviassem a situação:
Nos anos 00 do século XXI, optámos pelo tema “Não me
consumas” do album “Humanos”. Estamos mais uma vez perante uma grave
problemática, a do consumo. Há muito quem alerte para o risco de se
consumir certas substâncias e também quem tente tratar e cuidar dos
consumidores, o que não há é quem tenha pena dos consumidos.
A canção dos Humanos fala-nos precisamente de alguém
que se sente consumido e pede desesperadamente o seguinte: “Não me consumas. Não
me consumas. Não me consumas mais. Não me consumas mais. Para de me consumir,
que tu abusas. Que tu abusas, sempre cada vez mais”:
Podemos dizer-vos mais umas frases? Não! Já estão fartos de nos ouvir. Assim sendo, ficamos por aqui, amanhã há mais.
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