As palavras deste título são do escultor
português Rui Chafes e com elas, ele caracteriza as suas obras. As suas
esculturas são fendas no mundo. Recordam-nos, que mesmo na escuridão mais
impenetrável, há sempre uma porta, ainda que por vezes estreita.
Um dia, o poeta francês Max Jacob (1876-1944)
escreveu um livro intitulado “Conselhos a um jovem poeta”. Há uma frase que
consta nessa obra, em que se diz assim: “Abrirei uma escola de vida interior e
escreverei sobre a porta: escola de arte.”
O que Max Jacob nos diz nessa frase, é que a arte
expressa a nossa vida interior, aquela que se passa nos segredos da alma, nos
labirintos da mente e nos mistérios do coração.
Segredos, labirintos e mistérios são tudo coisas
com as quais, devemos ter um trato delicado. Para tudo isso, é preciso uma
certa delicadeza.
Todavia, em boa verdade, há sempre quem conte
segredos aos gritos, quem não tenha cuidado algum num labirinto e os que não
têm nenhuma atenção aos pormenores. Vamos ver o que acontece, quando qualquer
um desses três casos sucede.
Comecemos pelos segredos e com o Rei Midas,
célebre personagem da mitologia grega. Midas assistiu a um concurso musical,
cujo juiz atribuiu a vitória ao Deus Apolo. Nisto, Midas discorda
fervorosamente da decisão final. No seu entender, o vencedor deveria ser o Deus
Pã. Só que insiste demasiadamente em divergir, facto pelo qual, acaba por ser
castigado pelos deuses com umas orelhas de burro.
Midas fica então bastante envergonhado com a sua
aparência, passando a usar turbantes para esconder as suas orelhas de burro. O
único que sabia dessa sua condição era o seu barbeiro, que sabia também, que
não devia contar esse segredo a absolutamente ninguém.
A pouco e pouco, o barbeiro foi ficando cada vez
mais impaciente por não poder contar a ninguém esse segredo. Precisava de o
contar a alguém, e por isso, decidiu afastar-se o mais que conseguiu. Na curva
deserta de um rio, cavou um buraco, gritando lá para dentro três vezes: “Midas
tem orelhas de burro”.
Aliviado, tapou o buraco. Mas algum tempo depois,
na Primavera, nasceram nessa curva um conjunto de juncos que, quando o vento os
agitava, faziam um som que parecia reproduzir as palavras do barbeiro: “Midas
tem orelhas de burro”.
O vento espalhou esse segredo pelos campos, que o
repetiram aos cascos dos cavalos que por lá passavam em direção à cidade, tendo
este sido seguidamente repetido por todas as esquinas, feiras e mercados.
Como seria de esperar, o barbeiro acabou por pagar com a própria vida a sua indiscrição. O que esta história nos ensina, é que há segredos, que não devem ser revelados, ou seja, há coisas que não são para se dizer.
Mas deixemos os segredos e passemos ao segundo
caso, aos labirintos. Segundo a mitologia grega, em Creta havia um labirinto do
qual era impossível escapar. No seu centro era onde o Minotauro vivia. Todos os
anos lá entravam sete moças e sete rapazes atenienses, que acabavam
inevitavelmente devorados pelo Minotauro.
Em caso algum lhes ocorreu, percorrerem o
labirinto com cuidado, estabelecendo para o caminho uma qualquer estratégia,
que lhes permitisse nele não se perderem. Dito isto, a história do labirinto
mudou quando um jovem rapaz, Teseu, resolveu enfrentar o seu monstro, o
Minotauro.
Teseu foi ajudado por Ariadne, que lhe enviou um
fio para o ajudar a não se perder, e assim sair vivo do labirinto. Teseu teria
que desenrolar o fio por onde passasse e, assim sendo, o seu caminho ficaria
marcado, evitando de tal modo perder-se. A ideia de Ariadne foi fundamental,
para que ele conseguisse vencer o Minotauro e regressar são e salvo.
O que esta história nos ensina, é que quando se entra num labirinto, é necessário estabelecer-se uma qualquer estratégia. Não se entra por um lugar incompreensível adentro sem qualquer cuidado, pois se assim o fizermos, o mais certo é acabarmos por nos perder e sermos devorados. Em síntese, em tais circunstâncias, há que ter um fio condutor.
Vamos agora então à terceira situação. Diante de
um mistério, é fundamental ter-se extrema atenção aos detalhes e pormenores.
Arthur Conan Doyle, o célebre autor de Sherlock Holmes, decidiu atravessar a
fronteira entre realidade e ficção. Decidiu ele próprio, investigar um caso
real na região de Staffordshire. Como seria de esperar, a coisa correu-lhe mal.
A polícia local não achou piada alguma à
situação, ou seja, a ter um famoso escritor de livros de mistério, a competir
consigo na resolução de um caso policial. Vai daí, o chefe de polícia do sítio,
decidiu forjar provas e inventar documentos para desacreditar o famoso autor
das histórias do detective Sherlock Holmes.
E o facto é que conseguiu. Ao contrário do que
sucederia com o seu ilustre personagem, Arthur Conan Doyle não teve suficiente
atenção a certos detalhes e pormenores, acabando por chegar a uma conclusão
totalmente errada. Como detective, ficou desacreditado.
Muitas décadas mais tarde, toda a tramoia foi
desvendada. Veio a lume, que todas as provas nas quais Arthur Conan Doyle
acreditou, foram forjadas e os documentos inventados. O que é certo, é que
Sherlock Holmes jamais teria na resolução de um tal mistério, a falta de
atenção aos pormenores e detalhes revelada pelo seu autor.
O que esta história nos ensina, é que para resolver mistérios não basta sermos inteligentes, há também que ser extremamente atento, a todos os detalhes e pormenores.
Façamos uma síntese destas três histórias: não se
contam segredos, percorre-se um labirinto com especial cuidado e desvenda-se um
mistério, tendo atenção a todos os detalhes e pormenores.
Recordemos Max Jacob, “Abrirei uma escola de vida
interior e escreverei sobre a porta: escola de arte”.
A arte expressa a vida interior, ou seja, o que
sucede nos segredos da alma, nos labirintos da mente e nos mistérios do
coração.
Rui Chafes é provavelmente o maior escultor vivo
português. A sua arte lida com os interstícios da alma, com os lugares
recônditos da mente e com os sítios escondidos do coração.
Quem a vê, só a começará a perceber, se a
observar e a tentar compreender usando de uma enorme delicadeza, ou seja, tendo
sempre presente que está perante um segredo, que entra numa espécie de
labirinto, e que só com extrema atenção a todos os pormenores e detalhes, algo
da obra lhe será revelado ou desvendado.
Há muitos anos, que na Avenida da Liberdade em Lisboa, existe uma escultura de Rui Chafes intitulada “Sou como tu”.
É uma das tantas esculturas de Rui Chafes, que só
se entendem sabendo-se que nela há segredos que nunca serão contados,
labirintos para descobrir com especial cuidado, e detalhes e pormenores que só
com muita atenção poderão ser descobertos.
Sabendo-se que a obra de Rui Chafes só poderá ser
entendida, por quem dela se aproximar com alguma delicadeza, custa saber, que
num projeto promovido pela Junta de freguesia de Santo António e pela Câmara
Municipal de Lisboa, várias estátuas e esculturas situadas nessa zona da
cidade, e entre essas a de Rui Chafes, são apresentadas por figuras do
entretenimento em ficheiros áudio ouvidos através do smartphone.
Com efeito, quem se aproximar com um smartphone
da escultura de Rui Chafes na Avenida da Liberdade, verá um QR Code, a partir
do qual poderá ouvir os comentários de Joana Cruz, que é uma senhora que exerce
funções de apresentadora em órgãos de comunicação social deste nosso país.
Convidada a integrar o projeto da Junta de
freguesia de Santo António e da Câmara Municipal de Lisboa, a dita senhora
gravou um texto acerca da escultura “Sou como tu” de Rui Chafes em que diz o
seguinte: “Sou como tu… Não, por acaso, não sou! Sou a Joana Cruz, locutora e
apresentadora de rádio. No fundo, sou contribuinte como todos nós. Mas não
vamos falar mais disso, se não ficamos a chorar (…) Deixei o carro em quatro
piscas, a EMEL anda aí. Já agora, querem uma dica para não vos roubarem a
viatura? Estacionem o carro sem ticket, ele é bloqueado e, assim, já
ninguém o leva (…) porque hoje em dia, ninguém é igual a ninguém, partindo do
princípio que há pelo menos LGBT…IKEA.. mais XPTO, turbo-diesel...”.
Se quisermos apreciar a contribuição desta
senhora para este projeto, uma coisa teremos que dizer, não revela a menor
capacidade para, perante a arte e a vida interior que essa expressa, ter a
delicadeza para lidar com segredos que nunca serão contados, para percorrer
labirintos com especial cuidado e ter extrema atenção a detalhes e a
pormenores.
Em resumo, partindo deste exemplo, se quisermos
avaliar este projeto numa escala de zero a dez, a nota que lhe atribuímos só
pode ser um “Ridículo Menos”, com direito a orelhas de burro.
Se alguém quiser ler esta notícia de um modo mais
detalhado, aqui o artigo do jornal Público cujo título é “Perfeitamente
imbecil. Rui Chafes crítica terem posto a sua escultura a falar na Av. da
Liberdade”:
O ponto de tudo isto de aqui vos falamos, é
que para como dizia Max Jacob, se abrir uma escola da vida interior, e se saber
algo dos segredos da alma, dos labirintos da mente e dos mistérios do coração,
é preciso ver arte.
Todavia, ver arte, implica aceitar que nela há
delicados segredos, ou seja, há coisas que não são para se dizer de qualquer
maneira. Implica também, que para a ver, há que ter um fio condutor, ou seja,
uma qualquer estratégia para se penetrar pelos seus labirintos adentro. Por
fim, para a ver, há também que ter atenção aos seus detalhes e pormenores. Em
resumo, tudo o que o texto da locutora Joana Cruz não faz.
Não há problema, em 2015, quando lhe foi
atribuído o Prémio Pessoa, o artista deu uma bela entrevista ao jornal Expresso
na qual se percebe a delicadeza do seu trabalho, como fala da alma e dos seus segredos, dos labirintos da mente e dos mistérios do coração.
https://expresso.pt/cultura/2015-12-27-Rui-Chafes.-Nao-existe-arte-sem-a-ambicao-de-parar-o-tempo
Para quem talvez não saiba, o exterior, ou seja, a rua, também pode ser uma escola da vida interior. Não é só na Avenida da Liberdade que há esculturas de Rui Chafes, também em Lisboa, há uma outra, que sai por uma janela do interior da Igreja de São Cristóvão em plena Mouraria. Chama-se “Ascensão”.
Ainda em Lisboa, há uma outra peça de Rui Chafes
na rua, junto ao Hospital de Santa Maria. O seu título é “Despertar”,
associando-se à deia de nascimento e de acordar, de regresso à vida, que
corresponde igualmente à escolha do lugar da sua implantação, a caminho da
Maternidade e das Urgências.
Na cidade do Porto, na Santa Casa da Misericórdia, há também uma escultura de Rui Chafes, que vinda do interior sai para a rua. O seu nome é “O meu sangue é o vosso sangue”. Segundo o artista a sua escultura é como uma veia de sangue entre Cristo e os Homens, entre Cristo e a Terra. Será uma veia que une tudo isto.
Por fim, em Coimbra, no imenso Jardim da Sereia, há sete esculturas de Rui Chafes . Os seus nomes são os seguintes: “O Mundo fica em Silêncio I e II”, “Fechar os Olhos Dentro dos Olhos”, “Ter Medo do Medo” e “A Linguagem dos Pássaros I, II e III”.
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