Antes de irmos a Bernini, façamos uma breve
deambulação. Na propaganda política, seja ela de que setor ideológico for, uma
das palavras de ordem destes nossos tempos é “mudar”. Uns querem mudar isto,
outros querem mudar aquilo e há até quem queira mudar o país inteiro.
Nós nada temos contra mudanças. Desde que estas sejam
para melhor, porque não? No entanto, temos uma leve desconfiança que ao
abundante uso do verbo “mudar”, não corresponde uma igual vontade de o fazer.
Na educação, por exemplo, há anos e anos que ouvimos
dizer que é preciso mudar, todavia, todas as mudanças que se foram (ou não)
tentando implementar ao longo dos tempos depararam-se quase sempre com enormes
e ferozes resistências. Mesmo as que são mais evidentes, são tudo menos
consensuais.
Em boa verdade, temos a suspeita que muitas vezes
sob a máscara da palavra “mudar” se esconde ao invés o desejo de regressar a
um supostamente glorioso paradigma educacional do passado, no qual haveria
ordem, respeito, autoridade, rigor e exigência.
Nas escolas, como noutros lugares, esse “virtuoso”
mundo nunca existiu (e a ter existido foi só para uns poucos), contundo,
continua misteriosamente a povoar a imaginação de muito boa gente.
Terminamos esta breve deambulação com uma citação do
principal personagem do romance “O Leopardo”. Confrontado e preocupado com toda
a instabilidade e a agitação que acontecia no seu país, o Príncipe de Salina
confidenciou aos seus apaniguados, qual a estratégia a seguir: “É preciso que
algo mude para que tudo fique na mesma”.
Abaixo uma foto do ator Burt Lancaster no filme “O
Leopardo”, no qual interpretou o papel de Don Fabrizio Corbera, o Príncipe de
Salina.
Roma é uma cidade antiga, poucas como ela terão tido
um passado tão glorioso. Foi fundada em 753 a.C., e por consequência, quando se
chegou ao século XVII, Roma tinha por detrás de si inúmeros séculos de
existência. Já então lhe chamavam, e com razão, a cidade eterna.
No século XVII Roma cria-se imutável e pensava ser o
que sempre tinha sido: Caput Mundi (a capital do mundo). Se antes tinha sido a
capital de um colossal e vasto império que se estendia por vários continentes,
na época setecentista era a máxima sede da cristandade, a cidade onde os
poderosos Papas exerciam os seus pontificados.
No entanto, a verdade é que a passagem do tempo a
tinha mudado. Os seus grandiosos monumentos da antiguidade clássica foram-se
transformando em ruínas, em tão-somente melancólicas memórias de pedra de um
antigo império. Roma julgava que a sua essência era ser eternamente sublime,
mas o que nesse tempo se via eram os vestígios de uma inquietante decadência.
Foi a essa Roma cuja imagem e identidade há muito
estavam fixas, carimbadas e registadas no imaginário coletivo, que no século
XVII aportou um rapaz que iria para sempre modificar a eterna cidade, o seu
nome era Gian Lorenzo Bernini.
Bernini foi escultor, arquiteto, pintor, urbanista,
cenógrafo, figurinista e pirotécnico. Transitou por todas essas distintas áreas
e disciplinas, como se navegasse por um mesmo mar, razão pela qual foi
transdisciplinar.
Não era coisa fácil que uma urbe com milénios, há muito estabelecida e ainda para mais detentora de um enorme prestígio e tradição, em poucos anos acabasse por mudar tanto como mudou e se reinventasse completamente.
Como mais à frente se há de ver, por vezes basta um
pouco de transdisciplinaridade para o que há muito está instalado e petrificado
se modifique totalmente, deixando assim de ser tão-somente uma decadente imagem
de glórias do antigamente, e passe a viver plenamente o presente.
No século XVII Roma era fundamentalmente passado, as
suas monumentais ruínas constituíam o cenário perfeito para se refletir sobre a
decadência que traz a passagem do tempo, e saudosamente se suspirar pelo que
passou. “Sic gloria transit mundi”, até que veio Bernini e Roma adquiriu um
renovado esplendor.
Abaixo um autorretrato de 1622 do então jovem Bernini.
À época tinha 24 anos de idade, atualmente é possível vê-lo na Galleria
Borghese em Roma.
É na mesma Galleria Borghese que podemos encontrar a sua mais célebre escultura, “Apolo e Daphne”. O mito aí representado resume-se num instante, Apolo, o mais belo dos deuses, perseguia Daphne, mas ela não o queria e dele fugia. O seu desdém pelo lindo deus era tanto, que ela preferia até ser um loureiro, a ser por ele tomada.
Uma vez, tendo Apolo apanhado-a, Daphne rogou para que
se transformasse na já referida árvore. Consequentemente, a pouco e pouco
deu-se a metamorfose. A sua pele foi-se transformando em casca, os cabelos em
folhas de louro, os braços enrijeceram e passaram a ser galhos, os pés
fincaram-se no chão aí criando raízes e assim sucessivamente. Foi esse o
momento que Bernini gravou na pedra.
O que a escultura de Bernini possui de genial, é que
ele como que consegue dar alma ao branco mármore. Como que metamorfoseia o que
é pedra, ou seja, o que é duro, inflexível e rígido, em carne viva.
Esse seu talento para dar vida à mera matéria, é por
demais evidente num pormenor de uma sua outra escultura, “O rapto de
Prosérpina”:
Apesar de ser um escultor de génio, a mais famosa obra
de Bernini não é uma escultura, mas sim um trabalho de arquitetura, a colunata
da Praça de São Pedro no Vaticano.
A ampla basílica e a sua imensa cúpula já lá existiam,
mas quando foi concluída a colunata projetada por Bernini, a Praça de São Pedro
adquiriu grandiosidade e humanidade.
A colunata consiste em 284 colunas e 140 estátuas. É
um conjunto arquitetónico mágico que multiplica ao infinito os pontos de fuga e
os efeitos de perspectiva, de modo a que quem está na praça, tem a sensação de
estar numa floresta de colunas que o recolhe e abraça.
Em síntese, ao ser acrescentada à praça a colunata,
logo ela deixou de ser apenas o sitio onde estava situada uma descomunal
igreja, passando a ser também o lugar de um abraço.
Bernini sabia que a rigorosa ordem da fachada da
Basílica de São Pedro transmitia uma imagem da autoridade papal, mas sabia
ainda melhor, que se efetivamente a igreja quisesse ser humana, ensinar, educar
e difundir a sua mensagem, um abraço seria sempre muito mais eficaz do que o
extremo rigor.
Como já vimos, Bernini atravessou disciplinas como a
escultura e a arquitetura, mas também foi cenógrafo e pirotécnico. Terá sido
toda essa transdisciplinaridade que pôs em prática na concepção da Capela
Cornaro na Igreja de Santa Maria da Vitória igualmente em Roma.
Tudo na Capela Cornaro é escultura e arquitetura, mas
também teatro. Ao centro no altar temos a escultura de Santa Teresa em êxtase
perante a visão de um anjo do Senhor. A escultura está arquitetonicamente
enquadrada por magníficas colunas de mármore e encimada por uma cúpula
elíptica.
Nas paredes laterais, como se pode perceber pela
imagem abaixo, Bernini projetou uns camarotes onde colocou as figuras
esculpidas da família Cornaro, que lá estão, tal e qual como se tivessem ido
assistir a um espectáculo teatral.
Mas onde Bernini nos demonstra toda a sua vontade de
que a sua escultura, arquitetura e cenografia não fossem exclusivamente
grandiosos monumentos de dura pedra destinados a glorificar deuses antigos,
santos, Papas ou prestigiadas famílias, foi no rosto que esculpiu de Santa
Teresa. Recorreu nesse rosto aos seus dotes de pirotécnico.
A Teresa de Bernini não é só uma casta santa num
altar, é também uma mulher e isso vê-se na forma como o seu rosto explode num
êxtase, que é em tudo semelhante ao modo como os foguetes explodem no céu.
Bernini sabia que uma mensagem, mesmo uma divina, é
sempre tanto melhor apreendida, quanto maior for o prazer que proporcionar.
Bernini foi também um urbanista, e nesse contexto
concebeu o que desde o seu tempo até à atualidade, veio a ser a sala de estar
de Roma, a Piazza Navona. No seu centro colocou a Fonte dos Quatro Rios. A
fonte representa uns dos quatro principais rios do mundo. Um de cada
continente, o Nilo de África, o Ganges da Ásia, o da Prata da América e o
Danúbio da Europa.
A Piazza Navona é o centro de Roma, a sala por onde
passam todos os seus habitantes, os ricos e os pobres. É por lá, por onde desde
sempre passam as gentes vindas de todos os lugares e continentes do mundo, no
fundo, dada a sua vitalidade e diversidade, a Piazza Navona como que se
assemelha a uma sala de aula de uma escola pública.
Bernini com a Piazza Navona, com a colunata da Praça
de São Pedro, com as suas esculturas e com muitas outras obras, como que
inventou a magnífica Roma barroca. No século XVII, a cidade eterna, ao invés de
continuar saudosamente a lamentar-se sobre a sua transacta glória, virou-se
para o futuro e reinventou-se, sendo que para isso, contribuiu decisivamente um
homem cujo carácter era transdisciplinar: Gian Lorenzo Bernini.
Bernini foi durante toda a sua vida, que foi longa, um
árduo trabalhador. Começou em criança e trabalhou praticamente até ao seu
último dia. Era um homem disciplinado, mas mesmo sendo-o, amava ser
transdisciplinar e inclusivamente, a indisciplina.
Um dia, Bernini conheceu Costanza Bonarelli, filha de
um cavalariço. A simpatia mútua transformou-se rapidamente em intimidade e os
dois foram devorados por um amor avassalador, que durou cerca de dois anos.
Costanza era uma mulher bela mas infiel. Corriam
rumores que namorava com outro. Bernini decidiu ir ao bairro onde ela morava, a
fim de dissipar os rumores, mas sucedeu o oposto, viu a sua amante com o seu
irmão, Luigi Bernini. Foi-se a ele, acabando por lhe partir duas costelas.
Foi um enorme escândalo, pois Bernini já era muito
famoso à data dos acontecimentos, sendo também conhecido por ser amigo do Papa.
Foi-lhe aplicada uma avultada multa, todavia, seria precisamente o Papa a
indultá-lo dizendo que os pintores e os poetas podiam dar-se ao luxo de ter
certas liberdades.
Terminamos com o busto de Constanza, obra esculpida
por Bernini, o Gian Lorenzo, não o Luigi.
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