Não sendo nós católicos praticantes nem nunca o tendo
sido, a nossa relação com época pascal é semelhante à que temos com o Natal, ou
seja, não ligamos ao seu significado e sim aos seus rituais laterais. O mesmo é
dizer, que desde pequenos comemos umas tantas amêndoas, um ou outro ovo de
chocolate e, chegado o domingo de Páscoa, cabrito.
Dito isto, talvez possa ter certo interesse, contarmos
a quem nos lê, como e quando em crianças pela primeira vez tomámos contato com
o mistério da Paixão de Cristo. Não foi na catequese nem através de qualquer
outro tipo de educação religiosa, pois que nunca a tivemos. Também não foi em
missas, dado que a elas não íamos. Não foi sequer numa procissão, foi sim por
meio de um mero e singelo filme.
Podia muito bem ter sido num daqueles grandiosos
épicos de Hollywood, que noutros tempos a RTP transmitia por alturas da Páscoa,
nessa distante época em que a televisão estatal era a única estação existente.
No entanto, não foi igualmente na TV, foi mesmo numa
banal e corriqueira sala de cinema de Lisboa, a vez primeira em que vimos
representada diante de nós a Paixão de Cristo.
O nosso contato inaugural com o mistério pascal foi
numa película intitulada “Jesus Christ Superstar”. Terá sido num qualquer
início de verão de finais da década de setenta. As salas de cinema de então,
aproveitaram a época estival para fazerem a reposição dos grandes sucessos de
bilheteira dos anos anteriores, sendo que, “Jesus Christ Superstar”
englobava-se perfeitamente nesse conceito. Em suma, vimos a Paixão de Cristo
numa “reprise”.
No momento da sua estreia, “Jesus Christ Superstar”
causou enorme polémica, no entanto, passadas atualmente umas quantas décadas
desse tempo, e tendo o mundo mudado tanto, hoje em dia é um filme absolutamente
inocente e que já a ninguém ofende.
O filme baseava-se num musical da Broadway, significa
isto, que a história da Paixão de Cristo era cantada e dançada. À época, no
início dos anos 70, o Vaticano condenou o musical e o correspondente filme como
sendo ambos blasfemos, porém, em 1999 retirou tal condenação.
Mais recentemente, até o Papa Francisco foi ver “Jesus
Christ Superstar” a um teatro de Roma, tendo no final da peça abençoado o
respetivo elenco. Como diria Camões, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
A canção de maior sucesso de “Jesus Christ Superstar”,
que seria gravada dezenas de vezes por muitos e diversos artistas, chamava-se
“I don’t Know how to love him”.
Nesse tema é Maria Madalena quem nos canta e conta o
que sente por Jesus. Madalena conheceu muitos homens (And I've had so many men
before, In very many ways) e está com dificuldades em aceitar que Jesus não é
somente mais um deles (He's a man, He's just one more).
A sua dificuldade consiste no facto de se sentir
tocada e mudada (I've been changed, When I've seen myself, I seem like someone
else), mas não conseguir perceber o porquê de se encontrar em tão inédita
situação (I'm the one who's always been, So calm, so cool, no lover's fool).
A sua perplexidade é tanto maior, pois quanto nunca
pensou chegar a tal ponto (I never thought I'd come to this, What's it all
about?). Em resumo, Maria Madalena está desorientada e não sabe o que fazer
diante do mistério que é, o que sente por Jesus Cristo. Ouçamos “I don’t know how to love him”:
A incompreensão de Maria Madalena acerca do
significado daquilo que sente por Cristo é um assunto antigo, que a frase
latina “Noli me tangere” expressa bem. “Noli me tangere”, traduzido para
português de um modo literal, quererá dizer “Não me toques”.
Terão sido essas as palavras ditas por Jesus a
Madalena quando esta o reconheceu após a sua ressurreição. Esse momento foi
representando por inúmeros artistas ao longo dos séculos. Abaixo a obra “Noli
me tangere” de 1514, do pintor veneziano Ticiano:
“Não me toques” é normalmente uma frase que denota
repúdio ou uma ameaça, assim sendo, por qual razão diria Jesus tal coisa a
Maria Madalena? Com efeito, em vida ninguém tocou tanto em Jesus como Madalena
o terá tocado, lavou-lhe até os pés com perfumes, tendo-os enxugado com os seus
próprios cabelos. Qual será então a razão e o significado de não o poder agora
tocar?
Jesus pede a Madalena para não lhe tocar, mas o que na
verdade ele lhe diz, é que toca-lo fisicamente não é a forma de contato
adequada para esse momento. O que Madalena deve tocar nesse instante, não é o
corpo de Jesus, mas sim o significado espiritual da sua presença diante dela.
É esse o mistério dessa passagem da Paixão de Cristo,
o anúncio de Jesus que há alguma coisa cujo significado se situa algures entre
o visível e o invisível, ou seja, entre o tocar-se fisicamente e o tocar-se ou
deixar-se tocar pelo imperceptível.
Maria Madalena foi tocada por Jesus em vida e tocou-o
fisicamente, agora, após a ressurreição, ela não deve toca-lo corporalmente,
mas antes ser tocada ou deixar-se tocar pelo significado do que nele não é
visível nem tangível.
Que ninguém nos entenda mal, a mensagem que Jesus
deixa a Maria Madalena e através dela ao mundo, não é a de que as coisas
impalpáveis e invisíveis são mais decisivas que as palpáveis e visíveis, nada
disso.
Ao contrário do que muitas vezes sucedeu na história
da cristandade, não há aqui nenhuma desvalorização do significado do corpo, da
tangibilidade, da fisicalidade e das coisas terrestres, em favor das coisas
intangíveis, incorpóreas e divinas.
O que verdadeiramente há, é a afirmação de que o
profundo significado da vida é esse vai e vem entre o visível e o invisível,
entre o palpável e o impalpável, entre o concreto e o abstrato, o mesmo é
dizer, entre o físico e o espiritual.
Abaixo, um fresco de Fra Angélico de 1438:
Por um lado, quem vive exclusivamente agarrado ao
corpo e à terra, só acreditando no que apalpa e vê de físico e concreto, é
alguém muito limitado. Mas por outro lado, quem só se sente bem nas altas e
castas esferas celestiais, vivendo num mundo de divinos ideais, tomando como
pecaminosos os palpáveis prazeres da carne e como despiciendas as concretas
maravilhas da terra, é também alguém bastante limitado.
O decisivo na vida é o vai e vem sem limites entre o
espiritual e o carnal, entre o visível e o invisível, entre o real e o
imaterial, entre a terra e o céu, entre a alma e o corpo.
Abstrata, impalpável, imaterial e incorpórea, são tudo
qualificativos que se podem atribuir à arte de Piet Mondrian. Compreende-se,
pois o artista era filho de um pastor e cresceu num ambiente extremamente
religioso.
Na base da sua pintura havia uma utopia de fundo
místico, todavia, isso é só metade da questão. A outra metade é a de que a sua
obra é também profundamente concreta, ou seja, não é apenas abstrata e
espiritual, revela-se também no mundo das coisas terrestres e nos corpos.
Se quisermos fazer uma analogia de sentido oposto ao
“Noli me tangere” que Cristo disse a Maria Madalena, o que Mondrian
verdadeiramente nos quis dizer com a sua obra foi “toquem-me”.
“Toquem-me” e transformem as minhas castas, puras e
abstratas linhas, o meu mundo ideal, em coisas corpóreas, concretas, palpáveis
e tangíveis. E assim foi, a sua mensagem foi acolhida e as suas imaculadas
linhas geométricas foram transformadas em coisas tão normais como vestidos…
…em shampoos…
…estantes…
…e muitas outras coisas mais, como por exemplo, ovos
de Páscoa.
E por aqui terminamos, as respostas às questões do
nosso título, “A Páscoa, Mondrian e Cristo, terá tudo isto igual génese? Ou
será que devíamos ter ido à catequese?” estão dadas, agora é aguardar pelo
cabrito.
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