Relativamente à arte contemporânea, já quase não há
quem não aceite, que qualquer coisa pode ser uma obra artística. Até uma
simples banana madura colada com fita adesiva numa parede o poderá ser. Na
verdade, tudo depende do modo como se a observa, ou seja, da forma como se a vê
e se a entende conceptualmente.
Em resumo, atualmente a revolução estética do olhar
está feita, e mesmo uma banana é agora arte, tendo por isso lugar garantido em
qualquer grande museu de categoria internacional.
Mais abaixo, a imagem da obra de Maurizio Cattelan de
que acima vos falávamos, ou seja, a banana colada a uma parede. Durante uma
exposição em Miami, a dita obra, a banana, haveria de ser literalmente comida
por um outro artista, um performer norte-americano, que deu à sua performance o
poético título de “Artista com fome”.
A ação performativa do segundo artista causou grande
controvérsia, até porque a obra estava avaliada em 108.511 euros e ele comeu-a
toda, como se ela nada valesse.
No entanto, Maurizio Cattelan, o primeiro artista,
desvalorizou a situação, uma vez que segundo as suas próprias palavras, a sua
obra não foi efetivamente comida pelo performer, uma vez que a banana não era
propriamente uma banana, mas sim uma ideia conceptual, sendo que, às ideias
conceptuais, ninguém as come.
Já relativamente à poesia contemporânea, a coisa não funciona bem assim.
Foi no início do século XX que Picasso disse que o seu
desejo era saber desenhar como uma criança. Provavelmente consegui-o, assim
como muitos outros depois dele. Mudaram desse modo para sempre a face da arte
atual. No entanto, parece ser mais difícil de aceitar, que tal como na arte, os
poetas contemporâneos almejem tão-somente a escreverem como crianças.
Sim, a poesia parece ser coisa mais séria e
transcendente, do que a arte atual. Se já ninguém se importa de ver uma banana
colada numa parede como sendo uma obra de arte, ainda assim, outro tanto não se
poderá dizer da poesia. Com efeito, se porventura um poeta escrevesse um poema
cujas palavras equivalessem a uma mera banana colada numa parede ou aos
triviais versos de uma criança, poucos o considerariam um ilustre lírico.
Mas então, e porque não? Porque razão tem um poeta
contemporâneo de suar para com as suas estrofes espelhar sublimes sentimentos e
grandiosos pensamentos, e ao artista conceptual basta-lhe colar uma banana numa
parede e já está a obra feita? Está mal, ou há moralidade ou comem todos.
Por assim ser, vamos hoje falar-vos de uma poeta
infantil. Não sabemos se é tão simples como uma banana colada numa parede ou
como os versos de uma criança, mas no fundo, o que nos importa isso?
Na realidade nada, pois não pretendemos fazer teoria
literária, apenas falar-vos dos seus poemas. O nome da poeta é Adília Lopes,
que na verdade é só um pseudónimo. Nasceu em Lisboa no dia 20 de abril de 1960.
Adília Lopes escreveu a versão portuguesa das “Nursery Rhymes”, rimas de berço escolhidas por Paula Rego para uma sua série de desenhos, originalmente publicados em Londres, em 1989. Abaixo a imagem de capa de um livro de poemas de Adília, desenhada pela dita pintora.
Como já terão percebido, Adília Lopes não é uma poeta
qualquer, escreve para os melhores jornais nacionais, os seus poemas foram
incluídos em várias antologias de poesia e até já ganhou prémios literários.
Ganhou-os logo desde menina e moça, como nos conta num dos seus poemas:
Em 72 recebi
o prémio literário
dos pensos rápidos Band-Aid
o prémio foi uma bicicleta
às vezes penso
que me deram uma bicicleta
para eu cair
e ter de comprar pensos
rápidos
Band-Aid
é o que penso dos prémios literários
em geral
Mas se por acaso pensam, que o poema acima foi o único
que Adília escreveu acerca de prémios literários, desenganem-se, aqui fica um
outro:
A avó Zé e a tia Paulina
deram-me os parabéns
e disseram
agora já é uma senhora!
a Maria disse
parabéns por quê?
é uma porcaria!
quanto a comentários
a poesia e a menarca
são parecidas
Adília Lopes foi uma menina só, por isso gostava muito de ir à escola, da qual afirma guardar apenas boas recordações. A esse propósito, vejamos o que diz dos seus sucessos nas provas das principais disciplinas do antigo ensino primário. Comecemos pelo Português:
“Vou transcrever a seguir a minha redacção da Prova de Passagem da 1ª à 2ª classe (afinal é este o nome desse exercício escolar). O tema era O que queres ser quando fores grande. Eu quando for grande quero ser hospedeira do ar, para ver os passarinhos a voar de um lado para o outro, e para levar os passageiros e para voar sobre o mar e para ver os barcos de pesca, com as velas de todas as cores, etc. Nunca fui hospedeira, mas adoro andar de avião e adoro aeroportos. E, acima de tudo, gosto de cores, de todas as cores. Continuo a mesma.”
Vejamos agora, como era a sua relação com a matemática, na qual, na sua prova da escola primária, por coincidência, também se falava de bananas. Não é arte contemporânea, é poesia atual:
“Na prova de Aritmética tenho os problemas bem resolvidos: o raciocínio e os cálculos estão todos certos. Transcrevo um dos problemas: A mãe comprou um quarteirão de bananas. Os filhos comeram dúzia e meia. Quantas bananas ficaram? Não sei se hoje as crianças sabem o que é um quarteirão. Da prova de Aritmética faziam parte dois problemas e quatro contas. A última conta está mal. Em toda a prova não dei um único erro de ortografia nem de gramática nem de raciocínio e não há nada riscado. Mas não há bela sem senão. E eu transcrevo a bela e o senão. Transcrevo a conta errada: (5+5-2) + (3+4-3) = 3.”
Para terminarmos esta passagem pelas provas do ensino primário, vejamos então o que Adília fez a Desenho:
“O desenho a lápis de cor que fiz ao alto da folha do teste tem uma igreja e uma menina, uma ao lado da outra, com o centro do desenho ao meio, a igreja à esquerda, a menina à direita. Além de igreja e menina, tem: o Sol, um pássaro a voar, flores, árvores e, por cima de tudo, a barra azul do céu. A data da prova é 31 de Maio de 1967.”
Certos poemas de Adília Lopes, seja no estilo, seja no conteúdo, centram-se na infância, mas falam-nos ao mesmo tempo de coisas adultas, ou seja, de coisas sérias. Tão sérias como lágrimas, recordações e shampoos:
No more tears
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
Bom, cremos já termos feito o nosso ponto, a saber, que há poetas e poemas que falam de coisas importantes, ainda que simultaneamente infantis e tão pouco transcendentes como uma banana colada numa parede. Mesmo que as estrofes de Adília Lopes não espelhem sublimes sentimentos ou grandiosos pensamentos, falam-nos da vida contemporânea, ou seja, do que se sente no nosso tempo. Porém, não nos falam só do tempo que passa, falam-nos também do tempo que faz, ou seja, de meteorologia, e ainda de que, tal e qual como às ideias conceptuais, ninguém as come:
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
A vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
Ou: um dia
tão bonito
e eu
não fornico
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