Coelhos e ovos de Páscoa são ambos símbolos de
fertilidade e regeneração. Celebram o eterno retorno das flores, do calor, da
luz e da vida. A cada primavera tudo se reinventa e por todo lado surgem novas
cores, amores e fulgores.
O regresso do doce ar primaveril anuncia a cada ano
uma nova vitória da vida sobre a morte, da luz sobre a escuridão e do afável
tempo quente sobre o impiedoso frio. A Páscoa é época de ressurreição e
simultaneamente de recomeço e renovação.
Do que hoje vos vamos falar é precisamente disso, de
renovação. Mais concretamente do modo como o nosso olhar sobre o mundo, a vida,
o divino, o infinito, assim como os nossos anseios espirituais e o mistério que
pressentimos em tudo o que existe, continuamente se renovam e se expressam ao
erguer-se uma nova igreja.
Não vivemos em séculos anteriores, não sentimos o
divino do mesmo modo que os nossos antepassados sentiam, nem olhamos para o
mundo e para o infinito da mesma forma que os antigos olhavam, razões pelas
quais, faz todo o sentido que as igrejas atuais expressem coisas distintas do
que as precedentes expressavam.
Erguer agora uma igreja (ou qualquer outra coisa)
usando uma linguagem arquitetónica igual à do passado, é negar a primavera e a
renovação da vida. É não querer viver a espiritualidade do presente nem ter
esperança no mundo futuro. É apenas ser-se saudosista e/ou reacionário.
Iniciemos o nosso percurso pela espiritualidade do
presente com uma capela desenhada por Predrag Vujanovic.
Em plena paisagem rural da Sérvia, a capela ergue-se
como uma lâmina em direção ao céu. Rasga a tranquilidade da extensa planície e
ergue-se no ar como se viesse do nada. Vista ao longe como que parece um farol,
uma luz que nos orienta para um lugar onde possamos simplesmente estar e
meditar.
Não há dúvida que a capela é altamente contrastante
com o mundo atual no qual estamos constantemente assoberbados por sons,
imagens, ruídos e uma constante agitação. Esse absoluto contraste é
precisamente o que faz com que a capela expresse o modo possível de se viver
espiritualmente no presente.
No nosso tempo, o espiritual não se encontra nas
vastas multidões, no permanente desfilar de imagens e sons, mas sim num local
distante e recolhido, onde nos possamos reencontrar com nós mesmos.
A proposto desta igreja na Sérvia, ocorreu-nos uma
passagem do livro “Um sopro de vida” de Clarice Lispector:
“Fiquei sozinha um domingo inteiro. Não telefonei para
ninguém e ninguém me telefonou. Estava totalmente só. Fiquei sentada num sofá
com o pensamento livre. Mas no decorrer desse dia até a hora de dormir tive
umas três vezes um súbito reconhecimento de mim mesma e do mundo que me
assombrou e me fez mergulhar em profundezas obscuras de onde saí para uma luz
de ouro. Era o encontro do eu com o eu. A solidão é um luxo.”
Viajemos agora para um outro continente, até ao México
e mais especificamente para a pequena localidade de Lagunillas. É nesse local
que encontraremos a Capela La Gratitud.
Na árida e desértica paisagem mexicana de Lagunillas
ergue-se este lugar de oração, que foi concebido pela arquiteta Tatiana Bilbao.
É constituído por vários blocos de concreto, sendo que, o espaço não se chega a
encerrar. É um ponto de encontro muito usado por gente que anda em
peregrinação.
A espiritualidade do nosso tempo também deve ser
vivida de uma forma aberta e como um ponto de encontro. Dogmas, muros,
barreiras, fronteiras fechadas e certezas férreas são coisas de outros tempos.
Apesar de haver muito quem deseje voltar ao
antigamente, calcar bem os pés no chão e teimosamente daí não mais querer sair,
o certo é que a vida é uma viagem, toda feita de movimento, de deslocações e
peregrinações, é assim que ela se renova a cada primavera.
Octavio Paz, o maior de todos os poetas mexicanos,
disse de si mesmo que era um peregrino na sua própria pátria, descreveu-se como
um caminhante em “El laberinto de la soledad”.
A Capela La Gratitud poderia muito bem fazer parte do
percurso do poeta, podia ser o seu ponto primeiro, aquele em que só diante da
terra, do ar e do céu encontra as palavras iniciais de um verso e nelas escuta
algo de inaudível e sem idade. Será porventura a eternidade?
el comienzo
el cimiento.
la simiente
latente
la palabra en la punta de la lengua
inaudita inaudible
impar
grávida nula
sin edad
Ao longo dos séculos as igrejas situavam-se no centro
das cidades, vilas e aldeias, era à volta delas que a vida se fazia, contudo, o
século XX trouxe uma nova realidade, os subúrbios.
A vida nas periferias pouco tem a ver com a do centro
da cidade ou com a da vila ou aldeia, é uma coisa diferente. Em certo sentido
não tem magia nem encanto, os subúrbios são sítios simplesmente úteis com casas
a preços acessíveis, meros dormitórios para se repousar após contínuos dias de
labor.
Nos subúrbios o desenho das casas era massificado,
olhava-se e o que se observava era tão-somente enormes e cinzentos blocos de
apartamentos todos semelhantes uns aos outros.
Para falar do infinito, da vida e do divino a todas
essas populações suburbanas que viviam cansadas e desencantadas, em locais que
obrigavam a uma permanente e extenuante rotina casa-trabalho e trabalho-casa, a
igreja necessitava de uma linguagem arquitetónica completamente renovada.
O melhor recurso para essa renovação era construir o
mistério. Foi isso o que fez o arquiteto espanhol Miguel Fisac na Igreja de
Santa Ana em Moratalaz, um subúrbio perto de Madrid:
A igreja de Moratalaz não tem qualquer outro
revestimento para além do cimento, no entanto, a austeridade e humildade desse
material adequa-se perfeitamente à vida simples das gentes dos subúrbios.
Não faria qualquer sentido que pessoas com vidas
difíceis e com poucos recursos, frequentassem uma igreja que lhes desse a ver
esplendores barrocos, capelas forradas a ouro e altares magnificentes. O que
fazia e faz sentido, é que a igreja lhes dê a ver que mesmo com dificuldades e
escassez de meios, se pode erguer algo que represente os nossos anseios
espirituais, usando para tal uma linguagem renovada que se alimente da
imaginação, da ousadia, do risco, das sombras e da luz.
Para terminarmos este nosso percurso por uma
espiritualidade do presente, que se expresse numa renovada linguagem
arquitetónica dos edifícios religiosos, vamos a San Sebastián, no País Basco.
Foi para essa cidade, para um novo bairro, que o
prestigiado arquiteto Rafael Moneo projetou uma igreja que é também um
supermercado. Parece uma ideia esdrúxula, todavia, vejamos que funções
albergavam as catedrais e igrejas na Idade Média, no Renascimento e até à época
moderna: teatro e sala de concertos, mercado, prisão, tesouro público, albergue
para peregrinos, hospital, orfanato, escoa, universidade, galeria de arte…
Em síntese, uma igreja como um autêntico espaço polissémico, polivalente e transdisciplinar, características que são as essenciais do nosso presente, por muito que muitos digam não.
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