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Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo e não ausência de medo (Mark Twain)

 


Todos gostamos muito de ensinar aos meninos nas escolas, que o Homem é um animal racional. Claro que nessa frase se acentua sempre o lado racional em detrimento do lado animal. Mas que tal concentrarmo-nos hoje na parte “O Homem é um animal”? Não só o Homem é um animal, mas um animal com medo.

 

Há algo de comum a todos os seres humanos, algo que não é propriamente uma reação racional, mas mais animal, ou seja, o medo. O medo é uma das principais emoções humanas, sendo certamente a mais comum. Até os psicopatas, que são incapazes de sentir a maior parte das emoções, sabem perfeitamente o que é estar assustado e com medo.

 

Não compartilhamos o medo apenas com todos os restantes seres humanos, também os animais têm medo. O caracol recolhe-se, a gazela foge e até o imponente leão tem medo. Aliás, pesquisas recentes descobriram que grande parte dos leões da savana africana vivem com medo constante, o que os assusta são os humanos, mas também os rinocerontes e as manadas de búfalos.

O medo é um importante recurso defensivo, um aliado que nos salva literalmente a vida. Põe-nos alerta diante de um perigo e faz com que o nosso corpo produza torrentes de hormonas que nos preparam para correr, lutar, agir com cautela ou fazer seja lá o que for para podermos sobreviver.

 

Se porventura vivêssemos numa qualquer povoação durante a época medieval, o medo punha-nos asas nos pés e fugiríamos o mais rápido possível, mal avistássemos no horizonte hordas de bárbaros a vir em nossa direção. Correr velozmente para um sítio seguro era coisa, que com sorte nos salvaria a vida.

 

Correu-se ao longo de toda a história da humanidade e continua-se a correr neste exato momento nos países em guerra. Ter medo e correr o mais rápido que conseguirmos para um abrigo, agora como sempre, pode ser a diferença entre a vida e a morte.

 

Abaixo uma imagem captada pelo lendário fotógrafo Robert Capa, em 1937, em Bilbao, durante a Guerra Civil de Espanha.

No entanto, se não vivermos em países em guerra e sim em lugares em paz, os nossos principais medos são basicamente iguais: o medo de perder o trabalho, de não ter emprego, de ficar sem dinheiro, de ficar sem casa, de adoecer gravemente, de que os que nos são próximos adoeçam ou de perder para sempre os que mais queremos.

 

Em resumo é isto, são esses os nossos principais medos em paz. Mas diante desses medos, para que raio nos serve que as nossas veias se encham de frenéticos rios de adrenalina, que o cortisol nos inunde o sangue e nos azucrine a cabeça e fiquemos em tumulto com vontade de fugir e correr apressadamente?

Não nos serve para nada, pois não há nenhum lugar para onde escaparmos, nem sítio em que nos escondamos, esses medos acompanham-nos para onde quer que vamos e com eles temos de viver.

 

Saber viver com esses medos, é na verdade aceitar o nosso lado animal, ou seja, que vai haver nas nossas vidas momentos em que não há nada de racional que possamos fazer.

 

Se perdermos um emprego podemos procurar um outro, se não tivermos dinheiro podemos tentar ganhá-lo, quando doentes podemos procurar curar-nos, em síntese, podemos reagir racionalmente perante um qualquer infortúnio, mas diante do medo que esses infortúnios nos causa, aí é que há pouco a fazer, que não seja aceitar.

 

Por mais racionais que sejamos, quando o medo nos toma, agimos como um outro qualquer animal, agitamo-nos, lutamos, fugimos e corremos, mesmo que isso não nos sirva absolutamente para nada e seja completamente irracional. É assim a condição humana.

Podemos ou não dormir sós, ter um sono tranquilo ou tormentoso, mas seja em que caso for, o certo é que temos sempre uma discreta (ou não tão discreta) companhia: o medo.

 

Amália cantou um dia um fado em quem dizia assim:

Quem dorme à noite comigo

É meu segredo, é meu segredo

Mas se insistirem, lhes digo

O medo mora comigo

Mas só o medo, mas só o medo



Amália sabia que o medo morava consigo, reconhecia-o e lidava com ele, cantava-o. No entanto, nos tempos que correm, mais do que nunca, há por aí um agudo sentimento de medo que anda à solta e com o qual ninguém lida. Não é o normal medo da guerra, da pobreza, da doença ou da morte, é uma outra coisa.

 

É um medo incerto, propagado por forças que prosperam com o seu crescimento. Propaga-se o medo e o corpo das gentes reage como o de qualquer outro animal, cheio de adrenalina e cortisol agita-se, corre e quer combater.

O problema é que em lugares em paz, nada há de que fugir, nem nada há para combater, mas se não há inventa-se. Identifica-se um qualquer grupo social, diz-se que são um perigo e a partir daí já há de quem fugir e a quem combater.

 

Gentes cheias de adrenalina e envenenadas com cortisol, que recorde-se é tóxico, tornam-se ferozes e como animais descarregam o seu medo invadindo o Capitólio, Brasília ou fomentando o ódio aos que, por alguma razão, são simplesmente diferentes.

Nós não gostamos dessas bárbaras gentes, sabemos que existe um outro modo de lidar com o medo. Com efeito, se faz parte da condição humana ter medo, e se isso é algo de animal que há em nós, também faz parte da condição humana, criar.

Amália cantou o medo, mas há quem o escreva num poema, quem o pinte ou quem o esculpa.

 

Qualquer dessas formas, ajuda-nos a lidar e a conviver com o medo que nos constitui. Imaginemos uma rua escura e deserta. Há quem opte por propagar o medo e dizer para que não se saia de casa, que é necessário mais policiamento ou até câmaras de vigilância. Há quem nessa mesma rua vislumbre uma paisagem surrealista e crie uma obra de arte.

 

Os primeiros aproveitam o escuro citadino para propagar medos incertos e envenenarem os outros, os segundos aproveitam o escuro citadino para fazer arte. É neste segundo grupo que se encontra Paul Delvaux, artista belga que criou “O viaduto”, obra de 1963.

Há crianças a quem o escuro aterroriza e que o povoam de monstros. Entre essas, há as que crescem e dão face aos seus infantis medos. Segundo a historiadora de arte Leonor de Oliveira, é esse o caso da pintora Paula Rego, sobre a qual escreveu um artigo intitulado “To Give Fear a Face’: Memory and Fear in Paula Rego’s Early Work”.

Dar ao medo uma face, é qualquer coisa que está presente desde sempre na condição humana. Mais do que sermos racionais, talvez o que verdadeiramente nos distinga dos outros animais, seja a capacidade de criarmos arte, o mesmo é dizer, de darmos ao medo uma face.

 

Foi isso que fizeram os homens nas escuras cavernas de Altamira, logo nos primórdios da humanidade. Também eles sentiram medo e a correr-lhes nas veias a adrenalina e o cortisol, razão pela qual se puseram a pintar.

Criar arte é desde sempre o modo humano de lidar com o medo, tudo o resto são barbaridades. E pronto, terminamos.

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