Todos gostamos
muito de ensinar aos meninos nas escolas, que o Homem é um animal racional.
Claro que nessa frase se acentua sempre o lado racional em detrimento do lado
animal. Mas que tal concentrarmo-nos hoje na parte “O Homem é um animal”? Não
só o Homem é um animal, mas um animal com medo.
Há algo de
comum a todos os seres humanos, algo que não é propriamente uma reação
racional, mas mais animal, ou seja, o medo. O medo é uma das principais emoções
humanas, sendo certamente a mais comum. Até os psicopatas, que são incapazes de
sentir a maior parte das emoções, sabem perfeitamente o que é estar assustado e
com medo.
Não compartilhamos o medo apenas com todos os restantes seres humanos, também os animais têm medo. O caracol recolhe-se, a gazela foge e até o imponente leão tem medo. Aliás, pesquisas recentes descobriram que grande parte dos leões da savana africana vivem com medo constante, o que os assusta são os humanos, mas também os rinocerontes e as manadas de búfalos.
O medo é um
importante recurso defensivo, um aliado que nos salva literalmente a vida.
Põe-nos alerta diante de um perigo e faz com que o nosso corpo produza
torrentes de hormonas que nos preparam para correr, lutar, agir com cautela ou
fazer seja lá o que for para podermos sobreviver.
Se porventura
vivêssemos numa qualquer povoação durante a época medieval, o medo punha-nos
asas nos pés e fugiríamos o mais rápido possível, mal avistássemos no horizonte
hordas de bárbaros a vir em nossa direção. Correr velozmente para um sítio
seguro era coisa, que com sorte nos salvaria a vida.
Correu-se ao
longo de toda a história da humanidade e continua-se a correr neste exato momento
nos países em guerra. Ter medo e correr o mais rápido que conseguirmos para um
abrigo, agora como sempre, pode ser a diferença entre a vida e a morte.
Abaixo uma imagem captada pelo lendário fotógrafo Robert Capa, em 1937, em Bilbao, durante a Guerra Civil de Espanha.
No entanto, se
não vivermos em países em guerra e sim em lugares em paz, os nossos principais
medos são basicamente iguais: o medo de perder o trabalho, de não ter emprego,
de ficar sem dinheiro, de ficar sem casa, de adoecer gravemente, de que os que
nos são próximos adoeçam ou de perder para sempre os que mais queremos.
Em resumo é
isto, são esses os nossos principais medos em paz. Mas diante desses medos,
para que raio nos serve que as nossas veias se encham de frenéticos rios de
adrenalina, que o cortisol nos inunde o sangue e nos azucrine a cabeça e
fiquemos em tumulto com vontade de fugir e correr apressadamente?
Não nos serve
para nada, pois não há nenhum lugar para onde escaparmos, nem sítio em que nos
escondamos, esses medos acompanham-nos para onde quer que vamos e com eles
temos de viver.
Saber viver
com esses medos, é na verdade aceitar o nosso lado animal, ou seja, que vai
haver nas nossas vidas momentos em que não há nada de racional que possamos
fazer.
Se perdermos
um emprego podemos procurar um outro, se não tivermos dinheiro podemos tentar
ganhá-lo, quando doentes podemos procurar curar-nos, em síntese, podemos reagir
racionalmente perante um qualquer infortúnio, mas diante do medo que esses
infortúnios nos causa, aí é que há pouco a fazer, que não seja aceitar.
Por mais racionais que sejamos, quando o medo nos toma, agimos como um outro qualquer animal, agitamo-nos, lutamos, fugimos e corremos, mesmo que isso não nos sirva absolutamente para nada e seja completamente irracional. É assim a condição humana.
Podemos ou não
dormir sós, ter um sono tranquilo ou tormentoso, mas seja em que caso for, o
certo é que temos sempre uma discreta (ou não tão discreta) companhia: o medo.
Amália cantou um dia um fado em quem dizia assim:
Quem dorme à
noite comigo
É meu segredo,
é meu segredo
Mas se
insistirem, lhes digo
O medo mora
comigo
Mas só o medo,
mas só o medo
Amália sabia
que o medo morava consigo, reconhecia-o e lidava com ele, cantava-o. No
entanto, nos tempos que correm, mais do que nunca, há por aí um agudo
sentimento de medo que anda à solta e com o qual ninguém lida. Não é o normal
medo da guerra, da pobreza, da doença ou da morte, é uma outra coisa.
É um medo
incerto, propagado por forças que prosperam com o seu crescimento. Propaga-se o
medo e o corpo das gentes reage como o de qualquer outro animal, cheio de
adrenalina e cortisol agita-se, corre e quer combater.
O problema é
que em lugares em paz, nada há de que fugir, nem nada há para combater, mas se
não há inventa-se. Identifica-se um qualquer grupo social, diz-se que são um
perigo e a partir daí já há de quem fugir e a quem combater.
Gentes cheias de adrenalina e envenenadas com cortisol, que recorde-se é tóxico, tornam-se ferozes e como animais descarregam o seu medo invadindo o Capitólio, Brasília ou fomentando o ódio aos que, por alguma razão, são simplesmente diferentes.
Nós não
gostamos dessas bárbaras gentes, sabemos que existe um outro modo de lidar com
o medo. Com efeito, se faz parte da condição humana ter medo, e se isso é algo
de animal que há em nós, também faz parte da condição humana, criar.
Amália cantou
o medo, mas há quem o escreva num poema, quem o pinte ou quem o esculpa.
Qualquer
dessas formas, ajuda-nos a lidar e a conviver com o medo que nos constitui.
Imaginemos uma rua escura e deserta. Há quem opte por propagar o medo e dizer
para que não se saia de casa, que é necessário mais policiamento ou até câmaras
de vigilância. Há quem nessa mesma rua vislumbre uma paisagem surrealista e
crie uma obra de arte.
Os primeiros
aproveitam o escuro citadino para propagar medos incertos e envenenarem os
outros, os segundos aproveitam o escuro citadino para fazer arte. É neste
segundo grupo que se encontra Paul Delvaux, artista belga que criou “O
viaduto”, obra de 1963.
Há crianças a quem o escuro aterroriza e que o povoam de monstros. Entre essas, há as que crescem e dão face aos seus infantis medos. Segundo a historiadora de arte Leonor de Oliveira, é esse o caso da pintora Paula Rego, sobre a qual escreveu um artigo intitulado “To Give Fear a Face’: Memory and Fear in Paula Rego’s Early Work”.
Dar ao medo
uma face, é qualquer coisa que está presente desde sempre na condição humana.
Mais do que sermos racionais, talvez o que verdadeiramente nos distinga dos
outros animais, seja a capacidade de criarmos arte, o mesmo é dizer, de darmos
ao medo uma face.
Foi isso que
fizeram os homens nas escuras cavernas de Altamira, logo nos primórdios da
humanidade. Também eles sentiram medo e a correr-lhes nas veias a adrenalina e
o cortisol, razão pela qual se puseram a pintar.
Criar arte é
desde sempre o modo humano de lidar com o medo, tudo o resto são barbaridades.
E pronto, terminamos.
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