Está
consagrado na lei portuguesa que hoje, véspera de eleições legislativas, é um
dia dedicado à reflexão. Contudo, nós já temos a certeza absoluta em quem vamos
votar, por consequência, não vamos neste momento refletir sobre isso.
Todavia, como
somos bons e obedientes cidadãos, cumpriremos a lei e mesmo já tendo a nossa
certeza, ainda assim, dedicar-nos-emos à reflexão. Uma vez que não refletiremos
sobre em quem votar, teremos que refletir sobre uma outra coisa
qualquer, mas o quê?
Na verdade
poderíamos fazer de conta que estávamos indecisos e que não tínhamos a certeza
em quem iríamos votar, e assim sendo, fingiríamos que iríamos refletir sobre
esse assunto.
Mas não, pois
tal fingimento mais não seria do que uma brincadeira inútil e um tanto ou
quanto tonta. No entanto, precisamente neste instante, enquanto pensávamos em
brincar a fingirmo-nos indecisos, ocorreu-nos uma estrofe de um poema de
Manuel Freitas, no qual se diz assim:
Pouco importa.
A vida mede-se
em lágrimas ou
sorrisos,
mais do que em
precárias certezas.
Ocorreu-nos
essa estrofe e ficámos súbita e verdadeiramente indecisos e não já apenas a
fingir. Se como insinua o poema de Manuel Freitas, as certezas no que concerne
às mais importantes e decisivas coisas da nossa vida são tão-somente precárias,
como poderemos ter nós uma certeza tão absoluta relativamente a sabermos em
quem vamos votar?
Refletindo,
concluímos então, que provavelmente não temos uma verdadeira certeza, pois é
bem possível, que no último momento, mesmo já no interior da cabine de voto,
mudemos a nossa decisão e acabemos por votar em quem antes tínhamos decidido não
votar e vice-versa.
Feitas as
contas, os dados desta nossa reflexão inverteram-se completamente, estávamos
nós perfeitamente convencidos que tínhamos uma firme certeza absoluta em quem
votar, e ao pensarmos melhor, chegámos à conclusão oposta, ou seja, que
andávamos apenas a fingir para nós mesmos de que a tínhamos.
Abaixo a imagem da obra de Giorgio De Chirico “L'Incertitude du poète”.
Se observarmos
a obra de Giorgio De Chirico, “L'Incertitude du poète” ou muitas outras do
mesmo autor, percebemos imediatamente o que ele nos quer dizer. Fala-nos de um
tempo que já passou: o tempo ido das certezas absolutas.
À direita no
quadro vemos um edifício num estilo arquitetónico clássico, que terá sido
projetado para ser uma imagem de sobriedade, firmeza e estabilidade. Porém, as
suas arcadas estão envoltas em sombras e no seu interior só se vislumbram
trevas, incerteza e escuridão.
O pintor
mostra-nos desse modo, que uma construção pensada para parecer sólida e assente
em inabaláveis pilares, não é na verdade nem absolutamente clara, nem
inteligível, ou seja, que tudo nela é obscuridade e incertitude.
É tal e qual
como as nossas certezas absolutas, parecem-nos permanentes, luminosas e
compreensíveis, mas na realidade são tão opacas como a escuridão no interior
das arcadas, tão fugidias como o comboio que ao fundo da tela parte
apressadamente para um qualquer destino que desconhecemos, e tão perecíveis como
um cacho de bananas.
Na frente do
quadro vemos uma escultura de mármore. Basta olhá-la para sabermos que é uma
ruína de uma época mítica. Em tempos de lenda, haverá de ter sido imponente.
Retrataria certamente uma qualquer divindade helénica, mas agora pouco mais é
de que um destroço.
O que essa
escultura também nos revela, é que o tempo das marmóreas certezas, que nos
apareciam pela frente como divindades, há muito findou. Provavelmente nunca
existiu, é apenas uma linda lenda, um belíssimo mito.
Na realidade,
vivemos agora como sempre, na incerteza e na indecisão. Vivemos de restos, de
ruínas, de sombras, de vestígios e de reminiscências desse tempo de lenda e
mito, em que havia certezas absolutas.
Vivemos de
pedaços e de retalhos de certezas. No entanto, e quase paradoxalmente,
albergamos em nós recordações sonhadas de uma sólida e transparente claridade,
ou seja, temos um indomável anseio por certezas permanentes e absolutas.
Em síntese, albergamos em nós, o absurdo desejo de ter a certeza absoluta, que tudo seja sempre assim como o é, e que isso nunca tenha um fim. Apesar de sabermos que os comboios partirão, que sombras virão e que as estátuas se quebrarão, há em nós uma nostalgia do infinito, de certezas que nunca mudam, absolutas.
Num poema de
Inês Lourenço intitulado “As coisas que cessam”, podemos igualmente encontrar o
mesmo tema que perpassa pelos quadros de Giorgio De Chirico, a saber, que as
certezas imutáveis e absolutas são mitos e lendas, mas que ainda assim as
desejamos:
Tanto desprezo
pelo que é
transitório e finito. Não servirei
senhor que
possa morrer. Mas passamos
a vida a amar
todas as fragilidades
das coisas que
cessam. Há
coisa mais
breve que um sorriso?
Coisa mais
curta que a alegria
de um
reencontro? Tudo que amamos
é passageiro e
frágil ou
as duas
coisas. Mas persegue-nos
a nostalgia do
infindável
como uma tara
hereditária.
O que o poema
de Inês Lourenço também nos diz, é que há beleza e amor no que é frágil,
indeciso e passageiro. Para verdadeiramente o compreendermos, basta que neste
dia dedicado à reflexão, levantemos os olhos para os céus e olhemos. Num imenso
cinzento, vemos nuvens a passar.
Não estão fixas num determinado ponto do firmamento. Nem tão-pouco se mantêm iguais a si mesmas ao longo do tempo. De sólido, decidido, certo e firme nada possuem. Relativamente a elas só temos incertezas. De onde vieram? Para onde irão? Que forma ainda agora tinham e já se desvaneceu? E amanhã, será que vai chover? Pouco importa, a vida mede-se em lágrimas ou sorrisos, mais do que em precárias certezas.
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