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Morreu um dos últimos grandes professores de uma arte perdida: a ironia do olhar.

 

É claro que a ironia é uma habilidade verbal, talvez a maior de todas elas, pois é a arte de se dizer exatamente o oposto daquilo que se quer dizer, e ainda assim, fazendo-se entender.

Numa ironia, as palavras querem dizer o contrário daquilo que dizem, e é precisamente isso que a torna irresistível, pois é um exercício que apela ao humor e à inteligência de quem a diz e escuta.

 

Não há que confundir a ironia com o sarcasmo. Este último tem o seu quê de azedume, enquanto a ironia é quase como um jogo, ou seja, um divertimento. A ironia exige a quem a faz uma certa leveza e elegância, virtudes de que um sarcasmo não necessita.

 

Mas dito isto, mais difícil ainda é ter um olhar irónico. Ser irónico com palavras já não é fácil, mas sê-lo com o que se vê, é algo só ao alcance de uns raros. Mais inaudito que tudo isso, é ter esse já de si singular olhar e conseguir também fixá-lo numa imagem, por exemplo, numa fotografia: foi esse o inusual caso de Rámon Masats.

 

A verdade é que podíamos nunca ter ido a Espanha, e mesmo assim saber tudo acerca de que Espanha “is all about”, e isto apenas pelas fotografias de Rámon Masats, que nasceu perto de Barcelona em 1934 e morreu em Madrid, faz agora uns dias, com 92 anos de idade.

 

Dizer que foi um dos grandes mestres da arte de ver, é dizer pouco. O seu olhar era irónico e certeiro. Num instante olhava e via, no outro sacava da máquina, disparava, e no momento seguinte tínhamos uma fotografia plena de ironia. Um segundo antes ou um segundo depois, e já nada seria igual.

 

Provavelmente, a sua foto mais conhecida é de 1960, na qual se retratam uns seminaristas de Madrid que se entretêm a jogar à bola. Já agora, ficam a saber, que apesar do voo do guarda-redes, foi golo.

 

Rámon Masats construiu um álbum fotográfico que haveria de fazer história e cujo título era “Visit Spain”. Neste caso, a ironia começa logo pelo título. Na década 60 do século XX, Espanha era ainda uma ditadura e um sítio muito pouco moderno, contudo, foi nessa época que começaram a chegar ao país vizinho milhares de turistas vindos do norte da Europa. Vinham em busca de “Sol y playa”.

 

Os turistas tinham hábitos e vestes muito mais liberais do que a conservadora sociedade espanhola de então, e as gentes olhavam para eles com um misto de reprovação e espanto. Por um lado, os seus costumes pareciam-lhes demasiado soltos e quiçá imorais, por outro, eram portadores de divisas e convinha tratá-los bem. Esse tempo em que a modernidade e a tradição estavam em silencioso confronto, foi perfeito para que Rámon Masats exercesse a sua arte, ou seja, para que captasse imagens plenas de uma suave ironia.


O seu olhar não nasceu do nada, apesar do seu grande talento, a verdade é que Rámon Masats se educou vendo os grandes mestres de sempre da arte de ver e representar. Nesse contexto, em poucos lugares do mundo poderia estar em melhor local do que em Madrid.

Com efeito, estando nessa cidade tinha oportunidade de percorrer os vastos corredores do Museu do Prado e lá encontrar pinturas dos maiores, como por exemplo, de Velásquez.

 

Assim como Rámon visitava o Prado, muitos outros o faziam. Entre esses contavam-se as gentes de bem. Ver arte é uma coisa fina e tem um certo requinte, por assim ser, as damas da alta sociedade também por lá passavam de quando em vez, nos intervalos dos seus afazeres e festas, isto de modo a adquirirem uma patine cultural. Como seria de esperar, tais senhoras não escaparam ao olhar irónico do fotógrafo. Aqui está uma dessas senhoras, a contemplar uma pintura de Velásquez.

Na verdade, o Museu do Prado era de visita obrigatória para qualquer turista estrangeiro ou espanhol que visitasse Madrid. Fazia parte do currículo dizer-se que se tinha ido ao Prado, era coisa semelhante a ver o mar para quem nunca o tivesse visto, ou a ir a Roma e ver o Papa.

 

Mesmo os magalas, quando tinham alguns momentos livres, não desperdiçavam tal ocasião. Nesses tempos era frequente vê-los pelos corredores do museu em marcha: direita, esquerda, volver. 

Aqui os vemos em frente a mais um quadro de Velásquez, intitulado "A rendição de Breda", quando as tropas holandesas se rendem aos exércitos espanhóis. 


Claro que Rámon Masats também andou à escola. Como seria de esperar, também aí pousou o seu irónico olhar. Na imagem abaixo, o que vemos é um conjunto de crianças. À direita meninas bem-comportadas, sérias, compostas e com um esgar levemente reprovador. O que observam é um rapaz. E agora como sempre, o esgar das meninas bem-comportadas desdenha dos rapazes chorões. Bem pode ele chorar, que dali não leva nada e nenhuma pena vai causar.

Mas quiçá mais tarde, quando crescer, quem sabe se o rapaz que chora não vai voltar a olhar as meninas bem-comportadas e descobrir então, como as ver de um modo irónico. Talvez tenha sido esse o caso de Rámon Masats, ou porventura não. 

Em qualquer dos casos, paz à sua alma…

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