Encerramos hoje, passado o Dia Mundial da Poesia, uma
série de textos que dedicámos a alguns poetas e aos seus poemas. φόβος (phóbos)
é uma palavra com origem no grego antigo, cuja tradução literal para português
é medo. O que tem o medo ou uma fobia a ver com poesia? Em certo sentido, nada,
noutro, tudo.
Existem centenas de vocábulos que assinalam medos. Por
exemplo, quem tem medo da chuva sofre de pluviofobia. Já quem tem medo do calor
sofre de termofobia. Se o medo for de narizes, o problema é a narigofobia. Ergofobia
é o medo do trabalho e catisofobia o medo de se sentar. Talassofobia é o medo
do mar, nudofobia o medo de ficar nu e xenofobia define-se como o medo daquilo
que se percepciona como sendo estrangeiro ou estranho.
Antes de continuarmos, aqui fica um cartaz com a
fobias mais vulgares.
Para quem tem medo, qualquer coisa ou pessoa pode ser
percepcionada como estrangeira ou estranha, significa isto, que a bem dizer, a
definição de xenofobia poderia servir para todos os medos ou fobias.
Há quem percepcione a chuva como estranha, são os
xenófobos da pluviosidade. Há quem seja estrangeiro ao trabalho, são os
xenófobos do labor. E há também quem percepcione outros humanos iguais a si,
como estrangeiros e estranhos, a estes poder-lhes-íamos chamar os xenófobos
“tout court”, assim em estrangeiro e tudo.
“Sou homem e nada do que é humano me é estranho" disse no seu tempo o poeta e
dramaturgo romano Terêncio (185 a.C.- 159 a.C.). É razoável pensar-se que
Terêncio não foi alguém que sofresse de fobias, e muito menos de xenofobia.
Ponhamos uma hipótese, será que não tinha medos por ser poeta? É a esta
questão, que tentaremos hoje responder.
Em boa verdade, não é bem essa a questão, mas uma
bastante mais vasta, a questão é se os poetas, qualquer um que efetivamente o
seja e não exclusivamente Terêncio, não têm medos nem fobias.
A nossa crença é a de que todos temos medo, pois este
é algo que faz de nós humanos, contudo, os poetas sabem verdadeiramente o que é
o medo, sentem-no como qualquer um, porém, sabem nomeá-lo, ou seja, conseguem
dizê-lo com exatidão através dos seus versos.
Será essa, a exatidão dos seus versos, a razão
pela qual os poetas não se equivocam acerca do medo, não desatando a ter
fobias de narizes, do calor, de agulhas, de palhaços, de aranhas ou de
estrangeiros e estranhos. Já agora, um acrescento ao catálogo de medos, a fobia
à poesia, que se designa por metrofobia.
A nossa tese é a de que os outros, os que não são
poetas, se equivocam e, por consequência, transferem o seu medo primordial,
aquele que nos constitui como humanos e que todos temos, para outras coisas,
gentes ou lugares. Vai daí, em maior ou menor grau, desatam a ter fobias disto
e daquilo, daquele ou daqueloutro.
Talvez o poeta português que mais e melhor tenha escrito acerca do que é o medo, tenho sido Al Berto. “O Medo” é uma antologia de todo o trabalho poético de Al Berto, desde 1974 a 1986. Foi editado pela primeira vez em 1987, tendo sido posteriormente adicionados, em novas edições, mais poemas do autor, mesmo depois deste morto.
“Dizem que a paixão o conheceu” é um poema de Al
Berto, no qual se traduz bem em versos onde, quando e como se revela o medo,
esse que está na raiz de se ser humano. O medo primordial mostra o seu rosto em
quem vive escondido, em quem sente a náusea da velhice, a solidão sem sono, a
ausência de qualquer ternura ou alegria e, fundamentalmente, o desaparecimento
ou absentismo de toda e qualquer paixão:
dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
Na verdade, aquilo de que todos temos fobia não é de
narizes, nem do mar, nem de cadeiras, nem de gente estranha, tudo isso são
tão-somente as máscaras que o medo primordial enverga.
Ainda que inconscientemente, equivocamo-nos e somos
enganados por essas máscaras. Gritamos de horror ao avistar um rato, levantamos
vozes indignadas contra os estrangeiros, afundamo-nos em fobias, mas ao fim do
dia, do que na realidade temos medo é de uma coisa mais funda, mais primordial,
isso que os poetas como Al Berto, sabem dizer com exatidão nos seus versos:
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao
passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
Para finalizar aqui fica um poema de Al Berto que também nos fala de coisas medonhas...
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