Avançar para o conteúdo principal

Para acabar de vez com a cultura.

 

Nem sempre é fácil estar-se seguro sobre o que se percebe e o que não se percebe. Há muito quem fique inseguro diante a arte atual e diga que os artistas contemporâneos é tudo uma cambada, que não se percebe nada daquilo que fazem.

 

Esses mesmos inseguros que assim o dizem, dizem com toda a segurança que no passado é que havia artistas de categoria, daqueles que se percebia o que eles faziam.

 

Nós na verdade não acreditamos em tais percepções, cremos que quem não percebe nada de arte contemporânea e fica inseguro, também nada percebe de arte antiga, só aparenta uma segurança que de facto não tem.

Se não sabe apreciar uma, também não saberá também apreciar a outra. Quem diz com segurança perceber a arte antiga, mas não a moderna e a contemporânea, está só a fazer-se, a armar-se em culto. É esta a nossa opinião.

 

Imaginemos uma típica família feliz, como é natural e fica bem, num dado momento da sua existência decide cultivar-se. Cultivar-se à séria, tipo assim ir a Itália, à pátria das artes, e passear por exemplo por Veneza, Roma, Florença e isso. É o passeio clássico para quem se quer cultivar desde há séculos e portanto não há porque hesitar, é uma aposta segura, andiamo.

 

A bem do nosso exemplo, imaginemos que a dita família feliz está neste momento em plena Florença, o berço da Renascença, a cidade de Leonardo da Vinci, de Dante, de Miguel Ângelo e de tantos outros. Melhor do que tal para se cultivar, não há.

 

Florença foi durante séculos governada por uma única família, os Medici, que por acaso não eram particularmente felizes, mas sim ricos e poderosos. A cidade era sua e encheram-na de obras de arte, de magníficas igrejas e de esplendorosos palácios.



Durante o seu passeio cultural, a família feliz decide ir visitar o Palazzo Medici Riccardi, que em tempos foi propriedade da família Medici e é agora um popular ponto de turismo cultural. Entra pelo palácio adentro e nisto vê-se num opulento salão, cujo enorme tecto está todo ele pintado com o fresco de Luca Giordano intitulado “A Alegoria da Divina Sabedoria”.

 

A família perde-se em exclamações de espanto, desde os mais petizes aos maiores todos dizem “Oh!”. Isto sim é arte, isto sim é cultura, isto sim é uma coisa linda e que se percebe, não é como essas parvoíces contemporâneas que agora se fazem e que ninguém percebe nada do que para ali vai.

 

Nesse preciso momento, entramos nós, estes que vos escrevem, nesse mesmo vasto salão. Apontamos para o extenso tecto e com toda a segurança dizemos assim: “Nenhum de vós percebe nada do que ali está”. Dito isto, vamos-nos embora deixando a família feliz perplexa e a sentir-se insegura relativamente à sua cultura.

 

Abaixo, uma imagem com a representação do que se pode ver no tecto do Palazzo Medici Riccard em Florença.

 


Não explicámos à família feliz a razão pela qual não percebia nada do que estava a ver, mas temos todo o prazer em ilustrar e dar segurança cultural quem nos lê. “A Alegoria da Divina Sabedoria” pintada em 1685 Luca Giordano pode ser interpretada como uma lição sobre aquilo que é importante saber.

 

Ao alto da composição vemos a Sabedoria, que como uma rainha, segura numa mão uma orbe e na outra um ceptro. Da sua flamejante fronte, irradia uma luz que ilumina todo o quadro. Abaixo da Sabedoria vemos um jovem guerreiro, que representa o intelecto humano.

Encorajam-no a ascender aos céus e juntar-se à Sabedoria três figuras. Uma delas, a da direita, oferece-lhe asas para que ele possa voar, é a matemática. Uma outra coloca-lhe um espelho pela frente, simbolizando assim a verdade, essa segunda figura é a filosofia. Um pouco acima uma mulher alada, desce e agarra no braço do guerreiro, dirigindo o olhar para o alto, para a Sabedoria, essa terceira figura personifica a teologia.

 

Em resumo, o esplendoroso tecto só pode ser verdadeiramente percebido por quem souber o que lá está representado, caso contrário, fica-se apenas a olhar como um burro para um palácio e a dizer-se “Oh”.

Claro está que o nosso objetivo com esta conversa, não é darmos mostras da nossa sabedoria, é sim argumentarmos que quer na arte antiga, quer na moderna e contemporânea há sempre muito mais para se perceber, do aquilo que se vê. Para além do que seguramente se observa, há sempre mais para se saber e descobrir. 

O momento fundador da arte contemporânea deu-se em 1917, quando Marcel Duchamp decidiu colocar um vulgar urinol num museu e chamar-lhe arte, deu-lhe como título “A Fonte”.

Duchamp inventou nesse instante um conceito artístico que viria a ter largo sucesso e que dura até aos dias de hoje: o Ready-Made.

 

Desta vez, ao contrario do que fizemos com “A Alegoria da Divina Sabedoria” não vamos explicar-vos o significado da obra de Marcel Duchamp, seguramente que neste caso toda a gente a percebe.

 


Dois anos mais tarde, Marcel Duchamp haveria de realizar uma outra obra célebre, “L.H.O.O.Q.”. Neste caso, a obra consiste tão-somente numa cópia da famosa Mona Lisa de Leonardo da Vinci, à qual Duchamp acrescentou um bigode e uma barbicha no queixo.

 


Marcel Duchamp pretendia que as suas obras não fossem apenas vistas, mas que a ideia que transmitiam fosse também percebida. A obra “L.H.O.O.Q.”, além de ser uma releitura da história da arte, tem igualmente a intenção de tirar a Mona Lisa dos seguros eixos da academia e da tradição, criticando assim o modo como se vê e se consome arte.

 

Para que se perceba completamente toda a amplitude de “L.H.O.O.Q.”, é importante saber-se que a sigla, lida em francês, parece dizer "Elle a chaud au cul", o que traduzido para português seria "Ela tem o rabo quente”.

 

Imaginamos que uma vez sabedora de tal informação e percebendo toda a dimensão da obra de Marcel Duchamp, a nossa típica família feliz exclamaria em uníssono “Oh, isto é arte, isto sim é cultura, isto sim é uma coisa linda e que se percebe.”

 

Leonardo da Vinci nasceu perto de Florença e foi nessa cidade que se tornou um artista de reputação internacional. Segundo se sabe, a Mona Lisa, a senhora retratada, era também florentina.

 

Façamos um outro exercício de imaginação. Imaginemos desta vez uma viagem no tempo, em vez de uma viagem a Florença. Imaginemos então que Leonardo da Vinci viaja até à nossa época e entra num museu de arte moderna contemporânea.

Subitamente depara-se com a obra de Marcel Duchamp “L.H.O.O.Q.”, reconhece a sua Mona Lisa e fica perplexo, saí-lhe da boca um “Oh” aflito.

 

Andando pelo museu, Leonardo da Vinci dá de caras com uma outra obra de Marcel Duchamp, mais concretamente com “A Fonte”. Seguramente que neste caso o velho Leonardo saberá exatamente o que fazer:

 


E pronto, finalizamos assim este nosso passeio dominical dedicado a acabar de vez com a cultura.

Deixamos-vos um guião de aprendizagem que trabalhámos com os nossos alunos. Um guião que pretende,  ele também, acabar de vez com a cultura...

Guião de aprendizagem "Uma cambada ou camadas?"

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os professores vão fazer greve em 2023? Mas porquê? Pois se levam uma vida de bilionários e gozam à grande

  Aproxima-se a Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. A esse propósito, lembrámo-nos que serão pouquíssimos, os que, como os professores, gozam do privilégio de festejarem mais do que uma vez num mesmo ano civil, o Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. Com efeito, a larguíssima maioria da população, comemora o Fim de Ano exclusivamente a 31 de dezembro e o Ano Novo unicamente a 1 de janeiro. Contudo, a classe docente, goza também de um fim de ano algures no final do mês de julho, e de um Ano Novo para aí nos princípios de setembro.   Para os nossos leitores cuja agilidade mental eventualmente esteja toldada pelos tantos comes e bebes ingeridos na época natalícia, explicitamos que o fim do ano letivo é em julho e o início em setembro. É disso que aqui falamos, esclarecemos nós, para o caso dessa subtil alusão ter escapado a alguém.   Para além da classe docente, são poucos os que têm esta oportunidade, ou seja, a de ter múltiplas passagens de ano num só e mesmo ano...

Que bela vida a de professor

  Quem sendo professor já não ouviu a frase “Os professores estão sempre de férias”. É uma expressão recorrente e todos a dizem, seja o marido, o filho, a vizinha, o merceeiro ou a modista. Um professor inexperiente e em início de carreira, dar-se-á ao trabalho de explicar pacientemente aos seus interlocutores a diferença conceptual entre “férias” e “interrupção letiva”. Explicará que nas interrupções letivas há todo um outro trabalho, para além de dar aulas, que tem de ser feito: exames para vigiar e corrigir, elaborar relatórios, planear o ano seguinte, reuniões, avaliações e por aí afora. Se o professor for mais experiente, já sabe que toda e qualquer argumentação sobre este tema é inútil, pois que inevitavelmente o seu interlocutor tirará a seguinte conclusão : “Interrupção letiva?! Chamem-lhe o quiserem, são férias”. Não nos vamos agora dedicar a essa infrutífera polémica, o que queremos afirmar é o seguinte: os professores não necessitam de mais tempo desocupado, necessitam s...

Se a escola não mostrar imagens reais aos alunos, quem lhas mostrará?

  Que imagem é esta? O que nos diz? Num mundo em que incessantemente nos deparamos com milhares de imagens desnecessárias e irrelevantes, sejam as selfies da vizinha do segundo direito, sejam as da promoção do Black Friday de um espetacular berbequim, sejam as do Ronaldo a tirar uma pastilha elástica dos calções, o que podem ainda imagens como esta dizer-nos de relevante? Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no pré-escolar a idade média dos docentes é de 54 anos, no 1.º ciclo de 49 anos, no 2.º ciclo de 52 anos e no 3.º ciclo e secundário situa-se nos 51 anos. Feitas as contas, é quase tudo gente da mesma criação, vinda ao mundo ali entre os finais da década de 60 e os princípios da de 70. Por assim ser, é tudo gente que viveu a juventude entre os anos 80 e os 90 e assistiu a uma revolução no mundo da música. Foi precisamente nessa época que surgiu a MTV, acrónimo de Music Television. Com o aparecimento da MTV, a música deixou de ser apenas ouvida e pa...

Avaliação de Desempenho Docente: serão os professores uns eternos adolescentes?

  Há já algum tempo que os professores são uma das classes profissionais que mais recorre aos serviços de psicólogos e psiquiatras. Parece que agora, os adolescentes lhes fazem companhia. Aparentemente, uns por umas razões, outros por outras completamente diferentes, tanto os professores como os adolescentes, são atualmente dos melhores e mais assíduos clientes de psicólogos e psiquiatras.   Se quiserem saber o que pensam os técnicos e especialistas sobre o que se passa com os adolescentes, abaixo deixamos-vos dois links, um do jornal Público e outro do Expresso. Ambos nos parecem ser um bom ponto de partida para aprofundar o conhecimento sobre esse tema.   Quem porventura quiser antes saber o que pensamos nós, que não somos técnicos nem especialistas, nem nada que vagamente se assemelhe, pode ignorar os links e continuar a ler-nos. Não irão certamente aprender nada que se aproveite, mas pronto, a escolha é vossa. https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/est...

A propósito de “rankings”, lembram-se dos ABBA? Estavam sempre no Top One.

Os ABBA eram suecos e hoje vamos falar-vos da Suécia. Apetecia-nos tanto falar de “rankings” e de como e para quê a comunicação social os inventou há uma boa dúzia de anos. Apetecia-nos tanto comentar comentadores cujos títulos dos seus comentários são “Ranking das escolas reflete o fracasso total no ensino público”. Apetecia-nos tanto, mas mesmo tanto, dizer o quão tendenciosos são e a quem servem tais comentários e o tão equivocados que estão quem os faz. Apetecia-nos tanto, tanto, mas no entanto, não. Os “rankings” são um jogo a que não queremos jogar. É um jogo cujo resultado já está decidido à partida, muito antes sequer da primeira jogada. Os dados estão viciados e sabemos bem o quanto não vale a pena dizer nada sobre esse assunto, uma vez que desde há muito, que está tudo dito: “Les jeux sont faits”.   Na época em que a Inglaterra era repetidamente derrotada pela Alemanha, numa entrevista, pediram ao antigo jogador inglês Gary Lineker que desse uma definição de futebol...

Aos professores, exige-se o impossível: que tomem conta do elevador

Independentemente de todas as outras razões, estamos em crer que muito do mal-estar que presentemente assola a classe docente tem origem numa falácia. Uma falácia é como se designa um conjunto de argumentos e raciocínios que parecem válidos, mas que não o são.   De há uns anos para cá, instalou-se neste país uma falácia que tarda em desfazer-se. Esse nefasto equivoco nasceu quando alguém falaciosamente quis que se confundisse a escola pública com um elevador, mais concretamente, com um “elevador social”.   Aos professores da escola pública exige-se-lhes que sejam ascensoristas, quando não é essa a sua vocação, nem a sua missão. Eventualmente, os docentes podem até conseguir que alguns alunos levantem voo e se elevem até às altas esferas do conhecimento, mas fazê-los voar é uma coisa, fazê-los subir de elevador é outra.   É muito natural, que sinta um grande mal-estar, quem foi chamado a ensinar a voar e constate agora que se lhe pede outra coisa, ou seja, que faça...

Luzes, câmara, ação!

  Aqui vos deixamos algumas atividades desenvolvidas com alunos de 2° ano no sentido de promover uma educação cinematográfica. Queremos que aprendam a ver imagens e não tão-somente as consumam. https://padlet.com/asofiacvieira/q8unvcd74lsmbaag

Pode um saco de plástico ser belo?

  PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.   Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo” .  Assim, sem ...

Dar a matéria é fácil, o difícil é não a dar

  “We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard."   Completaram-se, no passado dia 12 de setembro, seis décadas desde que o Presidente John F. Kennedy proferiu estas históricas palavras perante uma multidão em Houston.  À época, para o homem comum, ir à Lua parecia uma coisa fantasiosa e destinada a fracassar. Com tantas coisas úteis e prementes que havia para se fazer na Terra, a que propósito se iria gastar tempo e recursos para se ir à Lua? Ainda para mais, sem sequer se ter qualquer certeza que efetivamente se conseguiria lá chegar. Todavia, em 1969, a Apolo 11 aterrou na superfície lunar e toda a humanidade aclamou entusiasticamente esse enorme feito. O que antes parecia uma excentricidade, ou seja, ir à Lua, é o que hoje nos permite comunicar quase instantaneamente com alguém que está do outro lado do mundo. Como seriam as comunicações neste nosso século XXI, se há décadas atrás ninguém tive...

És docente? Queres excelente? Não há quota? Não leves a mal, é o estilo minimal.

  Todos sabemos que nem toda a gente é um excelente docente, mas também todos sabemos, que há quem o seja e não tenha quota para  como tal  ser avaliado. Da chamada Avaliação de Desempenho Docente resultam frequentemente coisas abstrusas e isso acontece independentemente da boa vontade e seriedade de todos os envolvidos no processo.  O processo é a palavra exata para descrever todo esse procedimento. Quem quiser ter uma noção aproximada de toda a situação deverá dedicar-se a ler Franz Kafka, e mais concretamente, uma das suas melhores e mais célebres obras: " Der Prozeß" (O Processo) Para quem for preguiçoso e não quiser ler, aqui fica o resumo animado da Ted Ed (Lessons Worth Sharing):   Tanto quanto sabemos, num agrupamento de escolas há quota apenas para dois a cinco docentes terem a menção de excelente, isto dependendo da dimensão do dito agrupamento. Aparentemente, quem concebeu e desenhou todo este sistema de avaliação optou por seguir uma de...