Houve quem já tivesse usado a frase “Tenho sérios
poemas mentais”, ou seja, o nosso título não é propriamente original. Mas não
faz mal, nós não nos importamos de repetir a dita expressão, ainda que
colocando-a no plural: “Temos sérios poemas mentais”.
Na verdade, quem quer que a tenha inventado, à frase,
bem-entendido, esteve bem, e isso é o mínimo que se pode dizer. O máximo é que
esteve genial, parabéns ao autor.
Hoje apetece-nos não ser originais, vamos aproveitar
as palavras de outros, sobretudo as poéticas, e fazermos delas nossas. Em
síntese, não só temos poemas mentais, como somos ladrões de versos.
Na realidade, temos sérios poemas mentais porque
raramente conseguimos olhar para o mundo e para o que nele há sem nos
recordarmos de uma poesia que alguém, um outro que não nós, escreveu.
Basta olharmos para o céu e imediatamente nos ocorre o
que diz o Livro do Desassossego, que foi escrito por Fernando Pessoa ou então
por um outro ele, neste caso Bernardo Soares: “Nuvens... Existo sem que o saiba
e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou,
entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre
coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se
sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens...”
É impossível irmos pela baixa lisboeta, passarmos pela
Rua do Douradores e não nos lembrarmos de Bernardo Soares, pessoa que nunca
existiu, mas que ainda assim conseguiu escrever um livro.
Mesmo sendo apenas um heterónimo, o Bernardo Soares
passava todos os seus dias num escritório situado nessa rua e dizia de si para
consigo: “Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto
escrito, então, parece-me a eternidade.”
É provável que Bernardo Soares por vezes se entediasse
durante as longas horas de expediente que passava nesse pequeno escritório da
Rua dos Douradores. No entanto, havia uma janela. Onde há uma janela, há sempre
uma possibilidade de fuga, o olhar tem espaço para se estender, para ver o que
há lá no alto, no céu.
E era isso o que acontecia com Bernardo Soares, o seu
olhar dirigia-se para o céu e nele via o que ia dentro de si: “Nuvens...
Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de
justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar
confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações
intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim,
objetiva e subjetivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... “
Hão de ter reparado que até este momento não roubámos
um único verso, as palavras do Livro do Desassossego são de um poeta, ou do seu
heterónimo, mas não são em verso, mas seja lá como for, mesmo que sejam em
prosa, são certamente poéticas.
Abaixo uma foto de uma esquina da Rua dos Douradores, acima um céu azul, sem uma única nuvem.
Se querem saber, nós até tivemos uma infância feliz e
crescemos numa família perfeitamente normal, igual a tantas outras. No entanto,
há quem não tenha tido a mesma felicidade, e é de um desses de que agora vos
vamos falar, o seu nome é Philip Larkin, e era um poeta inglês.
Ao contrario de Bernardo Soares, Larkin viveu uma vida
agitada, muito embora fosse conhecido como o ermita de Hull, a cidade onde
habitava. Irritava-se bastante com a atenção pública, no entanto, no seu tempo
era um personagem célebre e esteve envolvido em múltiplas polémicas. Tinha um
carácter difícil e fazia gala em ser antipático.
Para além disso, dava-se com muitas mulheres ao mesmo
tempo, tendo até o jornal The Telegraph lhe dedicado um artigo intitulado
“Larkin the Lover”, a propósito de um filme da BBC sobre esse mesmo assunto.
Só para
perceberem daquilo que falamos, aqui fica o início do dito artigo: “Throughout
the last three decades of his life, Philip Larkin conducted parallel affairs
with two women: the flamboyant English lecturer Monica Jones and the gentle
Maeve Brennan, who worked with him at Hull University library. During this
period, he also had a shorter affair with Betty Mackereth, his longstanding
secretary.”
Ora bem, ao contrário de Philip Larkin, nem tivemos
uma infância difícil nem somos celebridades, não somos dados a irritações, nem
possuímos as suas artes sedutoras, razões pelas quais nos lembrámos dele. Com
efeito, ter sérios poemas mentais é também sermos o que não somos, sermos os
outros, os diferentes, os nossos heterónimos, os poetas. Se não fosse para
isso, para que serviria a poesia?
Como já terão adivinhado, agora sim, vamos roubar uns
versos, não em português e sim em inglês. O poema é de Philip Larkin e fala-nos
da família, da infância e de outra coisas mais:
They fuck
you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill
you with the faults they had
And add some extra, just for you.
But they
were fucked up in their turn
By fools in old-style hats and coats,
Who half
the time were soppy-stern
And half at one another’s throats.
Man hands
on misery to man.
It deepens like a coastal shelf.
Get out as
early as you can,
And don’t have any kids yourself.
Vamos findar este nosso texto roubando versos a um terceiro autor, ao poeta norte-americano T.S. Elliot, que é um dos que mais sérios poemas mentais nos causa. É com muita frequência que vamos por uma qualquer rua ou lugar e nos vem à cabeça as suas palavras:
“Let us go
then, you and I,
When the
evening is spread out against the sky”
É com igual frequência, que quando passamos por ruas esconsas e pouco movimentadas nos recordamos de:
“Let us go, through certain
half-deserted streets”
Gostamos também de passear com vagar, com tempo, sem
pressa de chegar nem ter um lugar específico para ir. Caminhamos e pensamos e
repensamos o que dizemos e não dizemos, olhando para o que vemos, talvez
parando algures pelo caminho para beber um chá acompanhado de torradas:
“Time for
you and time for me,
And time
yet for a hundred indecisions,
And for a
hundred visions and revisions,
Before the
taking of a toast and tea.”
Quando assim nos caminhos nada nos aflige, sentimos que
talvez possamos correr riscos, atrever-nos. Certamente que nada do que faremos
ou não faremos vai perturbar o curso do universo:
“Do I dare
Disturb the
universe?
In a minute
there is time
For
decisions and revisions which a minute will reverse.”
E por fim, no final do dia, ao pousarmos a cabeça na
almofada talvez nos recordemos dos nossos sérios poemas mentais e adormeçamos
sabendo que as palavras poéticas dizem sempre tudo e o seu contrário,
dependendo de quem as lê ou as rouba:
“If one,
settling a pillow by her head
Should
say: “That is not what I meant at all;
That is not it, at all.”
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