Guerras, pobreza, corrupção, criminalidade, ascensão
de grupos extremistas, greves, manifestações e conflitos sociais e políticos,
esqueçamos por um momento tudo isso, que nós não somos o telejornal e sim um
humilde blogue.
Quotidianamente olhamos para o mundo, vemos as gentes
e ouvimos as conversas, sendo que, em tudo se pressente um ambiente grave e um
certo desencantamento. Há muitas razões para assim o ser, todos as conhecemos
de sobra, mas, por uma vez que seja, vamos esquecê-las e delas não querer
saber. Façamos de conta que tudo é tão leve como uma melodia e que vivemos num
mundo encantado, o mesmo é dizer, cantado.
Imaginem alguém que gostava de canções. Um homem
altamente gentil, também muito inteligente e culto, mas simultaneamente
completamente infantil. Já o imaginaram?
Se sim, sabem que essa pessoa se chamava Jacques Demy.
Talvez não tenham a menor noção de quem foi esse tal Demy. Mas não tem mal, a
única coisa que necessitam de saber, é que é efetivamente ele, a pessoa que
imaginaram, e isto mesmo que não façam a mais leve ideia de quem ele era.
Quem foi, quem foi Jacques Demy? Contemos a sua história.
Era uma vez um francês que amava o mar, chamava-se
Jacques. Deixava-se encantar pelas marés que continuamente iam e vinham e,
sobretudo, pelo que elas lhe traziam.
Não era tanto em praias de largos areais tropicais ou
em idílicas enseadas desertas que ele com o mar convivia, era sim nas cidades
portuárias. Paragens onde aportavam navios carregados de histórias de encantar,
vindas de todas os lugares do mundo.
Não era o extenso e sereno horizonte para onde ele
mais olhava, preferia antes contemplar a agitação de certas cidades do norte de
França, localidades que têm o vasto Atlântico como pano de fundo.
Locais com muitos ventos e gentes, com barcos e
marinheiros, cidades às quais o mar oceânico serve de cenário constante à vida
que passa todos os dias. Em síntese, sítios como Nantes, Cherbourg ou
Rochefort.
Rochefort que foi onde um dia aportou Maxence, um
marinheiro triste.
Jacques Demy, o homem que gostava de canções, era
altamente gentil, muito inteligente e culto, mas simultaneamente completamente
infantil, estaria por Rochefort nesses tempos e pôs-se a ouvir atentamente a
melancólica história que o mar lhe trouxe. Maxence falou-lhe do imenso mundo e
de distantes cidades à beira-mar: Veneza, Java, Manila e Angkor.
Falou-lhe também da mulher ideal que o encanta e não
encontra em nenhum lugar, nem em Veneza, nem em Java, nem em Manila ou em
Angkor. Essa mulher ideal não a encontra sequer na Gioconda, na Vénus ou nos
requintados e delicados retratos renascentistas de um Botticelli. Não a vê por
lado algum e no entanto sabe de cor como são os seus cabelos, os seus olhos, as
suas mãos e todo o seu restante corpo.
Maxence para além de marinheiro, era também artista,
por isso sabia como desenhar essa mulher ideal que o encantava e não
encontrava. Já Jacques Demy sabia escutar, mas sabia também filmar, por isso
pôs Maxence a cantar o seu desesperado amor pela mulher que desejava numa cena
do filme “Les Demoiselles de Rochefort”.
Vale a pena ouvir a melodia da canção de encantar de
Maxence, o melancólico marinheiro. Nela ele diz que “Je l'ai cherchée partout
je ne l'ai pas trouvée”:
Em Rochefort viviam duas irmãs, duas demoiselles. Não
eram gémeas, mas tinham nascido sob o signo de Gémeos. Uma era a Delphine, a
outra a Solange. A primeiras delas há de vir a ser a tal ideal, pela qual
Maxence há muito suspirava.
Abaixo um retrato das duas tirado por Jacques Demy.
Uma veste de amarelo, a outra de cor-de-rosa, uma é loura e a outra é morena. É
fácil descobrir qual delas é a Delphine.
Já agora, ficam a saber que no final da película
Delphine e Maxence acabam por ficar juntos, mas isso só após dez anos de outros que se lhes atravessaram pelo caminho, de equívocos vários e de encontros e
desencontros. São assim as histórias de encantar, tudo acaba bem, mas só quando
o filme chega ao fim.
Chegados então ao fim da história das demoiselles de
Rochefort, continuemos pelo norte de França e viajemos agora para uma outra
cidade junto ao mar, Cherbourg. Aqui não só há vento, há frio e
fundamentalmente chuva. Chove muito em Cherbourg.
Chovendo tanto em Cherbourg, os chapéus de chuva são
um ramo de negócio a ter em conta, sendo precisamente uma loja desse sector do
comércio, que Jacques Demy encontrou nesse sítio, ou seja, uma boutique de
chapéus de chuva, ou, como dizem em França, de parapluies.
Na boutique trabalha a jovem Geneviève, juntamente com
a sua mãe, uma viúva e também patroa da loja. Geneviève ama Guy, um mecânico de
automóveis. A mãe não aprova essa relação, tem mais altas ambições para a sua
filha. Mas por enquanto, nem Geneviève nem Guy querem saber do que a mãe pensa,
estão encantados um com o outro e vão-se passeando debaixo da chuva de
Cherbourg.
Em determinado momento Guy é recrutado para o
exército. Não há como escapar, no mínimo partirá pelo menos por dois longos
anos. Mais a mais, Guy foi destacado para muito longe de Cherbourg, para o
ultramar. Nessa época, as antigas colónias francesas travavam uma dura guerra
pela independência. Em síntese, tudo era incerto.
Chegado o dia fatal da partida, Guy e Geneviève
encontram-se por uma última vez no bar da Gare de Cherbourg. Jacques Demy
filma-os com uma delicadeza tal, que a cena parece dar-se num momento encantado
em que o tempo se suspende, mas apenas por um breve instante, pois a partida
está iminente.
Mais uma vez, é cantando que tudo se diz. Ouçamos a
lancinante canção de despedida de Guy e Geneviève:
Abandonemos Cherbourg, mas não as cidades costeiras do
norte de França, agora vamos para Nantes. Nesse local havia dantes vastos e
prósperos estaleiros navais, assim como uma poderosa indústria metalúrgica. No
entanto, o ambiente era tudo menos tranquilo. Foram anos de chumbo, as greves e
os conflitos sociais eram violentíssimos e as lutas entre a classe operária e a
burguesia não tinham fim.
Foi com esse contexto e ambiente, que Jacques Demy
decidiu contar uma história, na qual uma vez mais todos cantam. Não é nada
evidente, que se possa narrar confrontos de tal monta, num filme musical, no
entanto, foi assim que Jacques Demy o fez. Como já vos tínhamos dito, ele era um
homem que gostava de canções, altamente gentil, muito inteligente e culto, mas
simultaneamente completamente infantil. O filme intitulava-se “Une chambre en
ville”.
Questionado sobre as razões pelas quais fazia filmes
sobre assuntos pesados e sérios com leves e suaves cantigas, respondeu assim:
“Un film léger parlant de choses graves vaut mieux qu’un film grave parlant de
choses légères”.
Mas como dissemos no início deste texto, queremos
esquecer por um momento as guerras, a pobreza, a corrupção, a criminalidade, a
ascensão de grupos extremistas, as greves, as manifestações e os conflitos
sociais e políticos, queremos fazer de conta que tudo é tão leve como uma
melodia e que vivemos num mundo encantado.
Assim sendo, vamos terminar com um outro filme de
Jacques Demy, “A Princesa com pele de burro”, baseado num conto infantil de
Charles Perrault.
Neste caso não há dúvidas nenhumas, a história é mesmo
de encantar, há príncipes, princesas, fadas e castelos e viveram felizes para
sempre. Despedimos-nos com uma cena desse filme na qual Catherine Deneuve, que
interpreta a princesa com pele de burro, prepara uma receita, “Le cake
d’amour”. É verem para aprenderem como se cozinha um mundo doce e encantado:
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