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A minha educação prejudicou-me em vários aspetos.

 


A frase que dá título a este texto é de Kakfa, que é certamente um dos mais conhecidos escritores de sempre. Mesmo quem dele nunca tenha lido uma única linha, já usou ou ouviu usar o adjetivo kafkiano.

Não faltará gente para nos assegurar, que a sua voz representa o nosso tempo, esse que nasceu algures no início do século XX e se prolonga até ao presente. Provavelmente , os que assim pensam, terão toda a razão.

 

Em 2024 assinala-se o centenário da morte de Kafka e por todo mundo, sobretudo na cidade de Praga, haverão milhares de eventos dedicados ao autor, até em Portugal, vejam lá:

 

https://www.goethe.de/ins/pt/pt/kul/sup/kaf.html

 

Mas que voz é essa, a de Kafka, e o que nos diz? A frase “A minha educação prejudicou-me em vários aspetos”, dá-nos pistas imediatas para tais questões. Com efeito, a educação de Kafka foi um eficaz processo para o metamorfosear em alguém sem voz, ou seja, em alguém que cumpre, é obediente e faz o que tem de ser feito. Em síntese, a educação de Kafka foi igual à de tantos outros.

 

O problema era que Kafka não era igual a tantos outros, não ter voz significava para ele não poder falar nem responder aos anseios e desejos que sentia em si. Tinha sido educado para levar uma vida séria: em jovem estudar para se ser alguém, em adulto arranjar um emprego decente, depois constituir família e pagar as contas, e lá mais para frente, se tudo correr bem, reformar-se com louvor e falecer.

 

O que poderia Kafka fazer no seio da comunidade em que cresceu, se não cumprir as suas obrigações, o que dele esperavam? Nada. Consequentemente, seguiu os passos que tinha a seguir, estudou direito, fez-se doutor e, após concluir o curso, começou a trabalhar numa companhia de seguros num emprego bem pago e para a vida, apesar disso, andava insatisfeito.



Quanto a constituir a família, fez muitas tentativas, mas nunca chegou a acontecer. Os seus amores e noivados acabaram sempre em bruscos rompimentos. Reiner Stach, autor de uma colossal biografia de Kafka em três longos volumes, afirma que o escritor fazia uma distinção radical entre as mulheres, dividia-as em dois grupos: as sexualmente atraentes e as dignas de afeto. Segundo o biógrafo, Kafka nas mulheres ou via a mãe ou a prostituta.

 

Tendo Reiner Stach razão, a imagem da “mulher-mãe” correspondia à que se dedicava, que cumpria os seus deveres, que era leal e trabalhadora, no fundo, era a mulher ideal para constituir família e cuidar do lar. Já a imagem da “mulher-prostituta” correspondia aos anseios e desejos que Kafka tinha em si, simbolizava essa voz que, segundo o próprio, a sua educação tentou que se calasse.

 

Felice Bauer foi um dos grandes amores da sua vida, uma relação à distância mantida através da correspondência trocada entre ambos. Digamos que correspondia à imagem da “mulher-mãe”, e assim sendo, nunca Felice poderia corresponder aos anseios e desejos que Kafka tinha em si, propôs-lhe casamento, mas este nunca se viria a concretizar.

 

Numa carta datada do ano de 1913, Kafka confessa a Felice: "O meu receio mais profundo, e não há nada pior que se possa dizer a alguém, é que nunca seja capaz de possuir-te”.

 


Um outro grande amor de Kafka foi Milena, que era em tudo o oposto de Felice. Conheceram-se num café em Praga, no outono de 1919. Milena era uma mulher muito atraente, tinha dificuldades, gastava dinheiro sem critério, aparecia grávida e abortava uma vez atrás da outra.

 

Milena era casada. O seu casamento era uma inesgotável fonte de situações infelizes, mas não estava acabado. Kafka conhecia o marido e havia mil amigos em comum por todos os lados. Em síntese, não era uma mulher que a sua rígida educação lhe permitisse desposar.

 

Dada a contradição que Kafka tinha em si, que se manifestava num elevado sentido de dever contraposto a uma voz que lhe falava de desejos e anseios, e que se manifestava igualmente na oposição entre as imagens de “mulher-mãe” e “mulher-prostituta”, o mais certo era que nunca tivesse um casamento feliz. Feitas as contas, acabou por ser melhor assim.

 


A conclusão a retirar de todos estes imbróglios emocionais, é que com quem Kafka conseguiu verdadeiramente dar expressão à voz que tinha em si, foi com a literatura. Não podemos dizer que a literatura foi a sua legítima esposa, porque não foi, mas podemos perfeitamente dizer que foi a sua amante.

 

Durante o dia Kafka cumpria todas regras, era um empregado exemplar e muito competente, saindo do trabalho frequentava os círculos literários e políticos de Praga por onde circulavam ideias e atitudes críticas e inconformistas, com as quais ele se identificava.

 

Se pensarmos na mais célebre obra de Kafka, “A metamorfose”, vemos que esta conta a história de um caixeiro viajante, Gregor Samsa, que abandona os seus anseios e desejos para sustentar a família e pagar uma dívida dos pais. Numa certa manhã, Gregor acorda metamorfoseado num inseto monstruoso. Kafka descreve este inseto como sendo parecido a uma barata gigante.

 

Não é difícil de perceber, que entre as muitas interpretações possíveis para “A Metamorfose” pode-se muito bem considerar que a barata gigante é uma metáfora para alguém cuja voz que tem em si foi eliminada.

Alguém a quem a sua educação obrigou a obedecer, a cumprir e a fazer que há para fazer, mesmo que isso signifique o sacrifício total de quem se é. Não sendo quem somos, não atendendo à voz que há em nós, é perfeitamente possível que soframos uma metamorfose e que um dia acordemos e constatemos que mais não somos que uma barata.

 


A educação de Kafka há de ter sido tão castradora, tão igual à de tantos outros, que o autor pôs-se inclusivamente a fazer considerações teóricas sobre o assunto:

“Toda a educação assenta nestes dois princípios: primeiro repelir o assalto fogoso das crianças ignorantes à verdade e depois iniciar as crianças humilhadas na mentira, de modo insensível e progressivo.”

 

A outra obra fundamental de Kafka é “O Processo”. É um clássico absoluto e não  há estudioso algum que não tenha falado abundantemente dela. Digamos, e a afirmação não é exagerada, que “O Processo” mudou a história, há um antes e um depois.

 

A narrativa é simples, na manhã de seu trigésimo aniversário, Josef K., o chefe de escritório de um banco, é inesperadamente preso por dois agentes não identificados de uma agência não especificada, por um crime não especificado.

Josef K. tenta por todos os meios provar a sua inocência, mas nem sequer consegue saber daquilo que é acusado. Há toda uma burocracia absurda e claustrofóbica que funciona de um modo mecânico e impiedoso. De tal modo que, tendo todos os funcionários judiciais seguido os procedimentos estabelecidos, K. acaba por ser julgado e condenado sem perceber porquê.

 

Quando declara a sua inocência, a Josef K. é lhe sempre feita uma pergunta em tom acusatório: "mas inocente de quê?".

 


Houve quem interpretasse “O Processo” como uma metáfora dos regimes totalitários em que há quem seja julgado e condenado sem nada ter feito. Houve também quem o interpretasse como uma metáfora religiosa, pois perante Deus, que se mantém em permanente silêncio, todos os homens carregam uma culpa em si desde o momento que nasceram.

 

Houve ainda quem interpretasse “O Processo” com uma metáfora da escola. Hoje não, mas no nosso próximo texto neste blog, desenvolveremos a ideia subjacente a esta terceira metáfora.

 

Hoje terminaremos com uma outra enigmática frase de Kafka: “As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que o seu canto: o seu silêncio.”

 

Poderemos interpretar esta frase em múltiplos e diversos sentidos, no entanto, nós escolhemos a seguinte interpretação, pior do que nos terem educado para irmos caminhando pela vida apenas cumprindo deveres, fazendo o que temos de fazer e vivendo como funcionários da nossa própria existência, pior do que isso, é já não escutarmos a voz que vem de dentro, é irmos avançando só ouvindo silêncio.

 

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