Ontem descobrimos um professor, que escreveu um artigo
intitulado “O lado B do aluno”, no qual nos conta alguns ternurentos incidentes
da sua vida de jovem estudante: “Como aluno, nos anos oitenta, confesso que
chamei bêbado a um professor devido a uma injustiça, rasguei folhas de trabalho
em frente da cara de outro por causa do seu perfeccionismo, atirei giz àquela
professora impaciente que só sabia gritar e dar aulas desinteressantes, ajudei
a atirar tomates e ovos podres a um colega falso e aldrabão...”
Quem quiser ler o artigo completo, aqui o tem. O nome do seu autor é Miguel Gameiro Silva e é docente em Ponta Delgada, nos Açores:
https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=179&doc=12820&mid=2
Tendo nós sido estudantes na mesma década, a de
oitenta, pusemo-nos a recordar esses tempos. O que pensaríamos nós da vida e
que anseios e desejos teríamos? Chegámos à conclusão que é impossível responder
agora sobre o que então queríamos. Era uma outra época e tínhamos todo um outro
modo de pensar e agir, por conseguinte, é uma tarefa praticamente irrealizável,
a de tentar reconstituir o que à data sentíamos.
Dito isto, o irrealizável a nós não nos assusta,
connosco é tal e qual como naquele velho dito francês, “Soyons réalistes,
demandons l'impossible”.
Dado o contexto, questionámo-nos sobre como
poderíamos nós resgatar o “Zeitgeist” de um jovem aluno dos Anos 80. Para quem
eventualmente não saiba, “Zeitgeist” é como as gentes com formação académica de
qualidade se referem ao espírito do tempo. Em alemão Zeit significa tempo,
Geist significa espírito.
O conceito “espirito do tempo” foi inventado por
Johann Gottfried Herder, sendo depois divulgado pelos poetas românticos
alemães. Tornou-se mundialmente conhecido através da obra de Georg Wilhelm
Friedrich Hegel.
Já agora, para que tudo fique mais claro, aqui fica a
definição oficial: “Zeitgeist ist die Denk und Fühlweise (Mentalität) eines
Zeittalters. Er bezeichnet die Eigenart
einer bestimmten Epoche beziehungsweise den Versuch, diese zu
vergegenwärtigen.”
Agora que já está esclarecido o que é o Zeitgeist,
voltemos aos Anos 80, para tentarmos recuperar o que pensaria e sentiria um
jovem aluno desse período. Para tal, nada melhor do que ir ver o que estava em
voga. Mais concretamente, que músicas se ouviam à época.
Não há dúvida nenhuma, que mais do que em qualquer
outro lugar, é numa melodia que melhor se reflete o Zeitgeist, ou seja, o
espírito do tempo.
Escolhemos então uns quantos temas musicais dos Anos
80, que tendo tido algum sucesso comercial nessa época, não serão certamente
dos mais conhecidos, mas no entanto, poderão revelar-nos o Zeitgeist de um
jovem aluno desse tempo.
Decidimos escolher três temas, pois que três é a conta
que Deus fez. Restringimos a nossa seleção ao chamado Rock português, mais
concretamente àquele que nasceu há aproximadamente quarenta anos, precisamente
no início da década de oitenta.
O primeiro tema escolhido fazia parte do álbum inaugural do Rock português, “Ar de Rock” de Rui Veloso. Claro que não vos vamos falar do “Chico Fininho”, que esse tema não há quem não o conheça, vamos sim falar-vos de uma outra música muito menos conhecida, “Donzela Diesel”.
A canção inicia-se com seguinte verso:
Andas aí no ataque nas boates da moda
A dançar o disco como ninguém
Longe vai o tempo do uísque com soda
És coisa de luxo, gastas bem aos cem
Com este verso inicial, somos imediatamente colocados
no centro da trama. Com efeito, percebemos claramente que se fala de uma
donzela daquelas destinadas a uma carreira de sucesso. Mais à frente
compreendemos também, que se trata de um donzela muito dada ao convívio com as
gerações mais velhas: “Paga-te a renda um cavalheiro idoso. Outros
cavalheiros compram-te vestidos”.
Ora bem, só por aqui já percebemos que nos anos oitenta, as donzelas com carreiras de sucesso não ligavam patavina aos jovens alunos, preferindo antes o convivo com gente de idade mais avançada. Compreende-se portanto, que nos moços desses tempos houvesse uma certa revolta contra os mais velhos. Não admirando por isso, que o agora docente Miguel dos Açores, tivesse chamado bêbado a um professor devido a uma injustiça.
Aqui fica a canção, “Donzela Diesel”:
Uma outra banda musical desse tempo era os Jafumega.
“La Dolce Vita” não foi o seu título de maior sucesso, mas ainda assim
serve-nos bem para caracterizar o Zeitgeist dos Anos 80.
Nessa época já havia meninos ricos, daqueles que estudavam em colégios privados e vestiam roupas de boas marcas. Ainda eram poucos, que os tempos eram de crise, mas já se faziam notar. Hoje em dia, já muito mais crescidos, continuam a fazer-se notar, andam por aí a falar no rigor, na exigência, no esforço, no mérito e em elevadores sociais, são uns queridos.
Na década 80 eram tal e qual os Jafumega os descreveram:
Uhh, sábado à noite
E com ele a febre das emoções
É o balanceiro do Disco
E o automóvel do papá e os peões
É o olhar comilão, gin tónico pela frente
Aquela pose ao balcão a controlar o ambiente
A gravata que o incomoda, mas é moda
As patilhas aparadas, o fato branco a rigor
As biqueiras azeitadas e andar à matador, à matador
E se havia meninos ricos, também havia meninas. Como
todos sabemos, há muitas meninas ricas ou não, que gostam de acasalar com
rapazes de bem e com um futuro garantido. Como todos também sabemos, ter
nascido numa família capaz de proporcionar aos seus infantes uma educação
rigorosa, de qualidade e exigente numa boa instituição privada, é mais do que
meio caminho para se ter uma boa colocação e um emprego decente. Mesmo que se
seja um pouco ataleimado, não se fica desempregado.
Ora bem, um pobre e normal adolescente dos anos 80 que
saísse ao sábado à noite e visse um rapaz da sua idade, que mesmo sendo um
tanto ou quanto mentecapto, teria muito boas perspectivas pela frente e tinha
no presente as raparigas todas à sua volta, concluía que isto era tudo uma
grande fita. Sendo pois natural, que tal e qual como o agora docente Miguel dos
Açores, se pusesse atirar tomates e ovos podres a um colega falso e aldrabão.
Aqui fica a canção, “La Dolce Vita”:
Uma grande diferença na vida de um aluno de hoje, para
a vida de um aluno daquele tempo, é a de que agora há psicólogos, apoios,
terapias e tutorias, sendo que naqueles dias nada disso havia. Ou se havia, era
só para quem já não batia bem de todo em todo. Para quem lá ia andando sem se
fazer notar muito, para esses de certeza absoluta que não havia.
Significa isto que se um jovem aluno daquele período
se sentisse deprimido, estivesse desmotivado ou andasse macambúzio, de nada lhe
valia ficar à espera de ajuda da escola, em boa verdade, nem tal questão se
punha.
Não havia cá quem nos puxasse pela auto-estima, se
tínhamos dúvidas existenciais relativamente ao que éramos e ao que queríamos, o
melhor que tínhamos a fazer era ir dar uma volta para apanhar ar e irmos pisar
calçada.
Uma canção dos Táxi, “É-me igual”, retrata perfeitamente esses passeios em que íamos pelas ruas indiferentes ao caminho que seguíamos:
Andei às voltas pela cidade
Sem achar a identidade
Muita coisa já eu sei
Mas não me encontrei
Quando se está num estado de espírito em que tanto
nos faz como nos fez, é normal que não tenhamos pachorra para que nos gritem ou
façam grandes exigências. Hoje em dia qualquer professor sabe que um dos seus
alunos ou passou mal a noite, ou está agoniado, ou está a passar por uma má
fase ou por uma crise de identidade. Na década de oitenta, quem era o professor
que queria saber disso? Nenhum, está claro. Por assim ter sido, não espanta que o agora docente Miguel dos Açores, um dia enquanto aluno rasgasse as folhas de um
trabalho em frente da cara de um professor por causa do seu perfeccionismo, e
atirasse giz a uma professora impaciente que só sabia gritar.
Parece que estamos a ver o jovem Miguel a ir pelas ruas à trautear a música dos Táxi:
É-me igual que me vejam um louco
É-me igual se não me dão troco
É-me igual se eu não fizer pouco
É-me igual, só eu me faço mal
E pronto, com estes três temas cremos ter resgatado o
espírito daqueles tempos, tão diferentes dos de hoje em que já não há donzelas
à procura do apoio de senhores mais idosos e interessam-se somente por rapazes
da sua idade, assim como também não há meninos ricos educados em colégios
privados que mesmo sendo um poucochinho aparvalhados consigam os melhores
empregos, como não há igualmente rapazes desorientados sem que ninguém os
auxilie. São muito melhores estes novos tempos, quem nos dera ser alunos agora.
Comentários
Enviar um comentário