Nós não acreditamos minimamente na distribuição
artificial de abraços, beijos e sorrisos. Coisas como o Dia do Abraço (21 de
janeiro), o Dia do Sorriso (4 de outubro) ou o Dia do Beijo (13 de abril)
parecem-nos tolas. Por consequência, também não cremos em iniciativas como o
Dia da Felicidade (20 de março).
Em dias tais, nem sequer saímos à rua, evitamos ao máximo, não vá porventura um qualquer desconhecido querer vir abraçar-nos, beijar-nos ou pôr-se a sorrir para nós apatetadamente, assim sem mais nem porquê, cruz-credo.
Nisto, estávamos nós muito tranquilos e sossegados,
quando subitamente vimos a seguinte notícia: “Felicidade é a prioridade de 99%
dos diretores das escolas portuguesas”. Acreditem que não estávamos mesmo nada
à espera de uma notícia deste calibre, a surpresa foi tanta, que ainda estamos
literalmente com o coração aos saltos.
Ficámos tão alarmados, porque nos ocorreu a ideia de
que a prioridade dos diretores escolares seria agora começarem a distribuir
abraços, beijos e sorrisos, mas afinal, graças a Deus, não era nada disso.
O que sucedeu, foi que saiu na semana passada o relatório das Nações Unidas "Why the World Needs Happy Schools". Sendo que, a surpreendente conclusão que nele consta, é a de que em Portugal, a felicidade é a prioridade de 99% dos diretores de escolas e agrupamentos. Tal conclusão foi divulgada pelos órgãos de comunicação social, e entre estes, pelo jornal Observador:
Uma vez tendo nós percebido que os diretores escolares
não iriam começar a abraçar, a beijar e a sorrir indiscriminadamente seja para
quem for, ficámos mais descansados. Todavia, o relaxo durou só um instante.
O que nos deixou novamente inquietos diante da
conclusão do relatório, é que a definição de felicidade não é algo de consensual.
Em certo sentido, poder-se-ia mesmo dizer, que cada um é feliz à sua maneira.
Poder-se-ia dizer até mais, a saber: o que nos fez felizes no passado pode já
não nos fazer felizes no presente, e o que agora nos faz felizes, poder-nos-á
não o fazer no futuro.
Em resumo, estando 99% dos diretores escolares
prioritariamente atentos à felicidade, surge-nos então a importante questão,
sobre qual o tipo de felicidade de que estaremos a falar?
Pense-se tão-somente no seguinte, num agrupamento
escolar, a felicidade de um departamento curricular será possivelmente
diferente de a um de outro, um ciclo de ensino é feliz de uma forma, outro
sê-lo-á doutra divergente e, havendo várias escolas, o que faz cada uma delas
contente é certamente descoincidente.
Mais a mais, tudo pode mudar de repente de um momento
para o outro, sendo que quem andava feliz deixa de o estar e quem antes estava
pelas ruas da amargura fica agora exultante. Em resumo, isto da felicidade é
muito incerto.
Porém, se acrescentarmos a tudo isso, todas as múltiplas especificidades individuais de cada um dos elementos da comunidade escolar, estamos em crer que, para fazer toda essa gente feliz, 99% dos diretores escolares iria ter que dedicar todo o seu tempo ao tema e ter os olhos exclusivamente postos neste assunto.
Dados os tantos jeitos de se ser feliz e as inúmeras
formas de se definir a felicidade, causar-nos-ia enorme espanto, se 99% dos
diretores conseguisse dar conta de todas essas imensas nuances, idiossincrasias
e subtilezas.
No entanto, nada temam, pois nós estamos aqui e
decidimos dar a nossa contribuição para este tema. Para tal, nada melhor do que
divagarmos e tergiversarmos sobre o que é a felicidade. Mas não vamos divagar
nem tergiversar à toa, não julguem, recorreremos a um autor que dedicou fartas
páginas a este tópico, o escritor checo Milan Kundera (1929-2023).
Kundera é o autor de romances tão decisivos como “A
Insustentável Leveza do Ser”, “O Livro dos Amores Risíveis”, “A Ignorância”, “A
Festa da Insignificância” ou “A Identidade”. Em todos eles, ele nos diz algo
sobre o que é e o que não é a felicidade. 99% dos diretores ganhariam muito se
o lessem, mas como provavelmente não terão tempo, nós faremos um resumo das
principais ideias.
Num dado momento, Kundera assevera-nos que “Um homem
possuído pela paz está sempre a sorrir.” Esta frase diz-nos desde logo que quem
anda habitualmente sorridente, não é porque seja tonto, pateta ou inconsciente,
mas sim porque se sente contente e em paz.
Sentirmo-nos em paz é condição “sine qua non” para
sermos felizes, acerca disso cremos que podemos ter um consenso. Assim sendo, o
importante agora é identificar o que nos pode retirar a paz e o sorriso. A
resposta é fácil, os outros, claro está. Os outros são sempre quem nos azucrina
o juízo.
Apesar de Jean-Paul Sartre ter afirmado que o inferno
são os outros, a verdade é que o nosso destino é vivermos sob o olhar dos
outros. Desde o momento em que nascemos até que morramos, sendo humanos, temos
absoluta necessidade que os outros nos olhem.
Há quem creia, que pode viver em paz a sorrir longe do
olhar dos outros, totalmente desacompanhado como um ermita. Talvez isso seja
possível num convento no meio de um deserto ou noutro qualquer ermitério, mesmo
nós não acreditando nisso, ainda assim, damos o benefício da dúvida.
Mas mesmo que seja viável ser-se feliz sozinho e
apartado, em qualquer dos casos, tal não se aplica à escola. A felicidade (ou a
falta dela) numa escola é completamente indissociável dos outros, sejam eles
quem forem.
Ser feliz em ambiente escolar é inseparável do modo
como os outros nos olham, de como nos sentimos olhados pelos outros, de como os
olhamos a eles e da forma como eles se sentem por nós olhados. Tudo isto é
indesligável da felicidade.
Uma escola é um lugar onde há sempre outros a olhar e
para olhar, sejam alunos, professores, diretores, assistentes ou encarregados
de educação, por consequência, a solidão não é neste caso de modo algum uma
opção.
Em resumo, num ambiente escolar, independentemente da
posição que ocupemos, estamos sempre em exibição. Por assim ser, a felicidade
decide-se nas relações que estabelecemos com os outros e vice-versa. O mesmo é
dizer, como os outros nos olham e como nós os olhamos.
É precisamente a este propósito, que Milan Kundera
poderá ser de grande valia para este assunto. Segundo o autor, a humanidade
pode ser classificada em quatro categorias distintas, isto de acordo com o tipo
de olhar sob o qual cada um quer viver e o faz feliz. Aqui ficam as ditas
categorias, à atenção de 99% dos diretores escolares de Portugal cuja
prioridade é a felicidade.
A primeira categoria é a de quem procura o olhar do
maior número de olhos possível. Noutras palavras, é a de quem busca o olhar de
um público para se sentir feliz. Numa escola, todos conhecemos gente assim, são
os que aproveitam as reuniões para longamente falarem, divagarem e dizerem tudo
o que lhes vai na alma.
Que frequentemente o que dizem pouco ou nada tenha a
ver com o assunto em debate, isso tanto lhes faz, pois a sua felicidade
consiste somente em serem olhados por tantos olhos quantos possíveis.
Assim sendo, a um diretor escolar cuja prioridade seja
a felicidade, compete-lhe dar uma plateia a essa gente para que sejam felizes,
mas fazendo-o com a devida parcimónia, de modo a que todos os outros que terão
de os ouvir, não sucumbam de infelicidade. É um equilíbrio difícil, mas
possível.
Na segunda categoria, estão aqueles que não podem
viver sem o olhar de olhos familiares. São os incansáveis organizadores de
convívios, de festas, de chás e de jantares de “família” e tudo mais que
fortaleça o sentido de pertença a um grupo.
São mais felizes que os da primeira categoria, que,
quando perdem o seu público, imaginam que a luz se apagou na sala das suas
vidas. É o que lhes acontece, mais dia, menos dia. Já as pessoas da segunda
categoria, pelo contrário, conseguem sempre encontrar alguém, nem que seja
apenas um único, que as olhe familiarmente e assim as ponha felizes.
Nas escolas, os que não podem viver sem o olhar de
olhos familiares, ou seja, sem uma “família” a que chamem sua, organizam
rapidamente em torno de si um pequeno grupo que lhes diz que sim. Estabelece-se
assim uma espécie de solidariedade, que com o tempo se torna inabalável.
Assim sendo, a um diretor escolar cuja prioridade seja
a felicidade, compete-lhe acarinhar a “família” e os seus interesses,
distribuindo-lhe eventuais benesses de forma a fazer-lhe sentir o quão
importante é.
Deve também enaltecer o espírito de equipa e
camaradagem dos seus membros e dizer-lhes como são fundamentais para toda a
instituição, mesmo que não o sejam, pois caso contrário, está o caldo entornado
e lá se vai o clima de felicidade.
A terceira categoria, é a dos que têm necessidade de
viver sob o olhar do ser amado. A situação deles é tão frágil quanto a do
primeiro grupo. Basta que os olhos do ser amado se desviem ou desapareçam para
que mergulhem na escuridão e infelicidade.
Nas escolas, também há os que não podem ser felizes
sem sentirem olhares que os amem. Há quem tudo invista em ser amado por
colegas, alunos ou encarregados de educação e dê o litro para que assim seja.
São pessoas absolutamente disponíveis para ajudar no que seja preciso e até no
que não seja preciso, desde momento que se sintam olhadas com amor, estão
felizes.
Assim sendo, a um diretor escolar cuja prioridade seja
a felicidade, compete-lhe fazer que essas pessoas se sintam especiais e únicas,
se porventura não o fizer, pode ter como certo que se irão sentir desdenhadas e
abandonadas, e que abundantes lágrimas vão jorrar por todos os cantos da
escola, assim como frequentes lamentos de infelicidade.
Por fim, existe a quarta categoria, a mais rara, a dos
que vivem sob os olhares imaginários ou ausentes. São os sonhadores. Numa
escola também os há, mas na maior parte das vezes passam despercebidos. O que
fazem não necessita de ser visto pelos que os rodeiam, não necessitam de o
olhar de um público, nem de olhares familiares e muito menos do olhar de quem
os ame. Sentem-se felizes a fazer o que fazem e quanto menos os olharem melhor.
Os olhos sob os quais se sentem estão ausentes, ou melhor, estão presentes
tão-somente no que sonham e imaginam.
Assim sendo, a um diretor escolar cuja prioridade seja a felicidade, compete-lhe deixar essas pessoas em paz, se assim o fizer, irá verificar que estão sempre a sorrir, como se a vida lhes fosse tão leve como uma simples “joke”.
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