Não sabemos se quem nos lê, alguma vez nestes últimos
anos teve a experiência de sair de casa e ir a um sítio muito frequentado. Nós,
já há quantos anos que não o fazíamos. Nestes últimos tempos ganhámos uma tal
alergia a multidões, que já nem à bola nem a hipermercados vamos.
Com certeza que isto há de ser da idade, porque
noutros tempos, não tínhamos este tipo de problemas. Mas atualmente não há nada a fazer, mal vamos a sítios com muito gente, começamos imediatamente a suar e a
espirrar, e minutos depois estamos cheios de borbulhas. É de tal modo, que
ficamos mesmo à beira de uma apoplexia.
Ontem, por exemplo, arriscámos e entrámos num
conhecido centro comercial. Não fomos lá fazer nada de especial, era só uma
simples compra e pronto. Contudo, deparámo-nos com uma livraria, e não com uma qualquer, mas sim com a Bertrand.
Não com a original, claro está, que fica na Rua
Garrett ao Chiado, em Lisboa, e não num qualquer centro comercial. Mas dito
isto, o certo é que o estabelecimento em questão ostentava o nome Bertrand e
estava cheio de gente.
Ostentar tal nome não faria mal, caso na montra da
dita livraria, não estivesse um largo cartaz em que se anunciava o livro
sensação do ano. O título do dito já olvidámos, mas o autor não, é Cláudio
Ramos, um apresentador de televisão.
Nada temos contra nem a favor do dito senhor, a única coisa que nos incomodou e provocou uma semi-apoplexia, foi a consideração que constava do cartaz, ou seja, de que essa publicação seria o livro sensação do ano.
Fomos pesquisar na internet, e afinal já sabemos o
nome da obra, é “O Rapaz”.
Aos que como nós já têm uma certa idade,
perguntamos-lhes se em tempos mais antigos, alguma vez vos ocorreria ler um
livro escrito pelo Fialho Gouveia, pelo Adriano Cerqueira, pelo Raul Durão ou
pelo Eládio Clímaco? Tudo apresentadores de televisão de outros tempos.
E relativamente a senhoras apresentadoras de TV de
antigamente, a questão é exatamente a mesma. Alguém alguma vez imaginou ter à
mesa de cabeceira uma obra literária da Manuela Moura Guedes, da Maria Elisa ou
da Alice Cruz? Não, claro que não. Se porventura houver quem diga que sim, isso
a nós só nos causa espanto, no entanto, cremos que praticamente todos dirão que
não.
Abaixo uma foto de Eládio para quem dele já não se recorda.
O nosso ponto é que numa vida inteira, jamais teremos
tempo suficiente para lermos tudo o que de importante há para ler, sendo esse o
contexto, porquê dedicarmos parte da nossa escassa existência ao que Cláudio
Ramos escreve?
O senhor pode até ser muito boa pessoa, ter uma vida
muito interessante e isso tudo, não fazemos a menor ideia. Porém, o que
certamente sabemos é que Thomas Mann, Kafka, Homero, Shakespeare ou Fernando
Pessoa, só para nomear uns poucos de tantos outros, serão escritores muito
melhores e terão coisas muito mais importantes para nos dizer do que
Cláudio Ramos.
Uma coisa que nos maça quando nos tempos que correm
entramos numa livraria, é a enorme quantidade de inanidades às quais se dá
grande destaque. Mas a que propósito agora, qualquer pessoa que seja
minimamente famosa por isto ou por aquilo, redige um livro?
Pior do que isso, qual será a razão por que as
livrarias promovem como obras sensacionais, biografias ou meras considerações
gerais feitas por um qualquer indivíduo conhecido?
Claro que sabemos a resposta para a questão acima,
promovem esses livros de gente conhecida, porque acreditam que vão vender
muitos exemplares e ganhar bom dinheiro. Está certo, pensará quem nos lê, uma
livraria é um negócio como um outro qualquer, só que não, uma livraria não é um
negócio como outro qualquer.
Uma livraria deveria ter regras, tal e qual como uma
farmácia as tem sobre os medicamentos que vende e a quem os vende. Assim como
uma loja de armas não pode vender de tudo a todos, uma livraria haveria de ter
uns quantos critérios que enquadrasse o tipo de comércio que faz. Nada disto
tem a ver com censura ou com uma política de gosto, tem sim a ver com bom
senso.
Já agora, para quem eventualmente não o saiba, a
expressão “política de gosto” aplica-se às situações em que uma instituição
estatal decide definir o que é bom e é mau relativamente a uma qualquer forma
de expressão artística ou cultural.
Por exemplo, nos antigos países socialistas do bloco de leste, existiam instituições que determinavam que canções, livros, filmes e
obras de arte eram educativas e didáticas, e quais outras eram prejudiciais ao
povo.
Abaixo uma linda imagem de Estaline, pessoa responsável por aproximadamente cerca de 17 milhões de mortos e mais uns tantos milhões de deportados, a receber candidamente rosas de inocentes crianças. Assim em resumo muito resumido, a política de gosto é isto.
Mas cá está, não é de política de gosto nem de censura
que falamos. Os livros não são produtos iguais a sapatos ou a abacates. Por
causa de um livro, a Bíblia (nome que vem do grego biblos, ou seja, livro), o
mundo mudou. Impérios caíram, cruzadas foram feitas, batalhas travadas e
enormes igrejas erguidas. Por causa de um livro, “O Capital” de Karl Marx,
revoluções imensas abalaram o mundo, e isto desde a gigantesca Rússia até à
distante China. Por causa de um livro, “Os Lusíadas”, há um povo que se vê a si
mesmo como a gente que deu novos mundos ao mundo indo por mares nunca dantes
navegados.
Por causa de livros ficámos todos a saber, mesmo quem
nunca os leu, que havia quem se aventurasse em tarefas quixotescas, quem
vivesse situações dantescas e quem se enredasse em imbróglios kafkianos.
Perante tudo isto e muito mais, o que dizer de Cláudio Ramos?
Não é que não se possam vender escritos de quem não é
escritor, mas sim simplesmente conhecido. Se alguém só famoso quer partilhar
connosco o que lhe aconteceu na vida, umas quantas ideias que lhe terão
ocorrido acerca do mundo ou que lhe vai na alma, porque não?
Mal não faz, o que mal faz, é que as livrarias, e para
a mais a Bertrand, que se anuncia como uma das mais antigas que existem no
mundo, lhe dê tanto destaque em detrimento dos grandes autores. Isso sim, é que
não nos parece bem.
Para castigarmos a Bertrand, hoje vamos deixar-vos o nome de algumas livrarias independentes de Lisboa, dessas onde não há muita gente e não promovem como sendo altamente importantes, livros de pessoas que só são famosas. Fica a promessa de no nosso próximo texto, falarmos de todos as restantes notáveis livrarias que há no resto do país, essas que não são só um negócio.
Em Lisboa gostamos muito das seguintes cinco:
- Em Santos, a livraria Tinta nos Nervos https://tintanosnervos.com
- À Estrela, a livraria de poemas, Poesia Incompleta http://poesia-incompleta.blogspot.com
- Em Arroios a livraria de livros de fotografia STET https://stet-livros-fotografias.com
- Na Almirante Reis, a livraria de banda desenhada Kingpin Books https://kbportugal.pt
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