A nós pessoa nenhuma se lembrará de nos acusar de
sermos burocratas, mas isto apenas se nos limitarmos ao habitual significado do
termo. A verdade é que temos uma alma de burocrata, só que não nos compreendem.
Sonhamos com burocracias e temos desejos
inconfessáveis com papeladas, com documentos bem arquivados, e com pastas e
dossiers catalogados e arrumados nos seus respetivos lugares, mas quando
confidenciamos estes nossos anseios a alguém, ninguém nos leva a sério.
Por vezes temos tremendos pesadelos, até sentimos
calafrios e tremores ao imaginarmos uma repartição de finanças ou uma
secretaria em que os papéis estivessem todos mal arrumados e ninguém os
encontrasse logo à primeira.
Entrávamos e não nos davam imediatamente nem um
impresso nem um requerimento para preencher, que terror! Que mundo desolado
seria esse, em que não se obtivesse de forma eficiente o modelo A-323, para
complementar com os anexos b, c e h, dos quais há que completar também as
alíneas 1.2.4 e 1.1.2.5 para depois ir entregar ao guichet?
Para nós, um mundo extremamente organizado e em que
tudo está planeado, assim tipo aquele descrito por Kafka em “O Processo”, é um
sonho lindo. O problema é que, quando despertos e acordados, na nossa vida
real, tudo se passa de um modo distinto daquele com que sonhámos.
Na vida de todos os dias, há muito quem nos acuse de
sermos desarrumados, desorganizados e de pouco ou nada planearmos. Logo a nós,
que sonhamos com repartições e pastas de arquivo e adoramos andar de guichet em
guichet a entregar impressos.
Com efeito, apesar de termos toda esta fantasiosa
lascívia relativamente à organização, ao planeamento e à burocracia, o facto é
que na prática aparentamos ser o exato oposto dos nossos sonhos.
Significa isto, que sonhamos ser organizados e tudo
planearmos exatamente ao milímetro, mesmo ao rigor, só que todavia, no nosso
dia a dia, parecemos não ser bem assim, sendo por isso que os outros não nos
entendem.
O problema é que apesar de, no mais fundo interior do
nosso ser, sermos fanáticos da organização e do planeamento, quem nos olha do
exterior só vê improvisação e desarrumação.
No entanto, a verdade é que quem nos vê do exterior
não compreende que os nossos trâmites, procedimentos e métodos para lidarmos
com o expediente diário são bastante diferentes dos da restante população,
obedecem a uma melodia íntima que só nós escutamos.
É essa a razão pela qual, há quem faça confusão e
pense que somos desorganizados, desarrumados e que atuamos espontaneamente,
como se fôssemos ao sabor do vento. É um grande erro de apreciação, pois o que
nós verdadeiramente somos é burocratas contraditórios.
“Burocratas contraditórios”, mas que raio vem a ser
isso, perguntará quem nos lê. Escusam de ir pesquisar ao dicionário, porque
acabámos de inventar a expressão. Falta-nos agora criar também uma definição
para “burocratas contraditórios”, mas podemos deixar isso para mais logo, que
por ora não há pressa.
Ainda assim, só para vos darmos um lamiré, digamos que
um burocrata contraditório é alguém que tem tudo muito arrumado e perfeitamente
planeado, mas tudo segundo uma lógica que escapa completamente aos demais
mortais: é a tal melodia íntima de que acima falámos.
Um burocrata contraditório é alguém que sonha com
organização, arrumação e planeamento, contudo, deparando-se com os agrestes
constrangimentos do mundo real e tendo falta de tempo e paciência para
minudências, inventa uma burocracia alternativa, cria uma organização bizarra,
concebe uma arrumação insólita e constrói planos muito peculiares, tudo de
acordo com uma sinfonia interior que só ele escuta.
Dito isto, e voltamos ao mesmo, o grande problema é
que quem vê do exterior, não entende os incomuns métodos de um burocrata
contraditório e só consegue vislumbrar desarrumação, falta de organização e de
planeamento, não ouve a melodia. É triste, é uma pena, mas é assim.
Uma vez estabelecido o ponto anterior, ou seja, que o
que efetivamente somos é burocratas contraditórios, e que portanto criamos e
inventamos espécies de burocracias, de arrumações e de organizações que são
todas elas alternativas e feitas de música, sonho e poesia, há um segundo ponto
importante acerca do qual temos de falar.
No fundo, esse segundo ponto é uma derivação do
primeiro. Há quem dê muito valor a quem é espontâneo, improvisa e é
intempestivo, e por isso mesmo, a esses se lhes perdoe serem igualmente
desarrumados e desorganizados.
É precisamente contra isto que nós nos revoltamos, o
nosso segundo ponto é que não queremos ser confundidos com gente espontânea,
improvisadora e intempestiva.
Como já amplamente demonstrámos, nós somos sim
burocratas contraditórios, não espontâneos. Planeamos, arrumamos e organizamos,
só que de modos diferentes dos mais comuns e habituais, ou seja, mais
sonhadores, poéticos e musicais.
Quem olhe para uma qualquer secretária toda
desarrumada, antes de emitir um eventual juízo negativo, deve deter-se e ver
bem se aquela secretária pertence a alguém que é pura simplesmente
desorganizado, ou se porventura dela faz uso um burocrata contraditório.
À vista desarmada poderá parecer o mesmo, mas há
pequenas subtilezas que fazem toda a diferença, nomeadamente o facto de da
secretária do burocrata contraditório se desprender uma espécie de mundo de
música, sonho e poesia, tudo coisas que na secretária do meramente desarrumado
jamais existirão.
Como todos nós sabemos, a espontaneidade e o improviso
são imediatamente associados à liberdade, à criatividade e à sinceridade, já o
planeamento relaciona-se com organização, com método, com reflexão e com
burocracia. Por assim ser, quem é espontâneo e improvisa goza de uma certa
tolerância e fica com fama de ter características de artista. Tolerância essa
que quem planeia e organiza nunca terá. A única fama que terá, é a de ter um ar
cinzento e pardacento, como é próprio dos burocratas.
A nosso ver, tudo isto é muito injusto, pois a
espontaneidade está demasiado sobrevalorizada. E é por isso que vamos fazer a
defesa dos que planeiam, têm um método e organizam, e desdenhar dos que se
apresentam como espontâneos.
Como já dissemos, nós não somos triviais burocratas,
somos sim, e insistimos, poéticos burocratas contraditórios, contudo,
sentimo-nos solidários com os vulgares burocratas e temos aversão à
condescendência de que gozam os espontâneos.
Como se o que dissemos não bastasse, os espontâneos
têm ainda a aura de serem emotivos, entusiastas, fogosos e apaixonados. Por
contraste, diz-se dos meros burocratas, dos que planeiam, que são calculistas,
que agem estrategicamente, que medem as palavras e são frios e contidos. Como
antes afirmámos, a nós tudo isto nos parece enormemente injusto.
Meros burocratas, nós, os que aqui estamos, os
burocratas contraditórios, estamos convosco. Apoiamos o vosso recato, a vossa
contenção, o refletirem no que dizem e fazem, e o calcularem os efeitos que
isso terá em quem vos escuta.
Mas que história vem a ser essa de valorizar esses
espontâneos que falam e agem sem refletir e dizem ter o coração ao pé da boca.
Há lá coisa mais irritante do que aquela gente que ainda mal chegou e avisa
logo os presentes, dizendo de si mesmo “Eu sou muito sincero”. O mais certo é que de seguida larguem uma enorme atoarda, fazendo com que uma pessoa até fique zonza.
Abaixo a sinceridade espontânea, viva a organização
prévia do que se diz. Então não é bem melhor que alguém antes de abrir a boca,
arrume as suas ideias, faça um requerimento ao cérebro, administre a
inteligência, calcule friamente, e só depois, e se for mesmo caso disso, diga
então o que tem para dizer? A nós, toda esta burocracia interior faz-nos
sentido.
Já agora, porque não falar-vos do autor de “Die Kritik
der reinen Vernunft”. Com efeito, vem mesmo a propósito. Mais a mais, que se
comemora agora o tricentenário do nascimento de Kant, que se deu a 22 de abril
de 1724 em Königsberg.
Uma das características que mais se destacam na
personalidade do filósofo de Königsberg era sua capacidade de organização,
nomeadamente o modo como planeava o seu quotidiano. O seu zelo pela
pontualidade era tanto, que segundo se conta, vê-lo passar servia para que os
vizinhos pudessem acertar os seus relógios.
Todos os dias ele saía às três e meia em ponto para
passear por Königsberg, fizesse o tempo que fizesse. O regresso dava-se também
a uma hora certa. Kant tinha toda a sua vida diária cronometrada ao segundo, as
horas das refeições, de dormir, de ir visitar os amigos e de tudo o mais.
Cumpriu metodicamente as suas próprias prescrições durante décadas, nunca as
alterando por uma vez que fosse. Em síntese, Kant não era como aqueles
espontâneos que nos fazem esperar uma hora e aparecem como se nada fosse, nem como outros que aparecem a desoras e sem aviso prévio.
Uma coisa é certa, Kant espontâneo não era. Seria um
mero burocrata? A resposta é clara: não. Seria então um burocrata
contraditório? Talvez sim. Kant escreveu uma das mais profundas obras de sempre
sobre sentimentos, a arte, a beleza e o sublime. Uma obra que desarrumou por
completo todas as ideias e concepções que até então existiam. Desde esse
momento nunca mais nada ficou no lugar no que diz respeito a teorias estéticas.
Tanto assim é, que hoje em dia ainda há muito quem vá
a um museu de arte contemporânea e espere espontaneamente compreender o que lá
vê. Não compreende nada como é evidente. Para perceber, antes de ir tinha de
cumprir uma pequena burocracia, a saber, ler Kant.
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