Dia do Trabalhador, por consequência, decidimos que hoje, por uma vez, nada vamos fazer. Há quem costume neste dia ir manifestar-se para a rua, connosco não contem, pois como já afirmámos, queremos efetivamente aproveitar a presente data para, por um dia que seja, não fazermos absolutamente nada.
A nós parece-nos uma questão de coerência e simetria, se o dia é do trabalhador, o lógico é não se trabalhar, ou seja, não se fazer mesmo nada. É por obedecermos a esta mesma exata lógica, e por razões de coerência e simetria, que no Carnaval não nos mascaramos, na Páscoa não comemos amêndoas, no 25 de Abril não desfilamos, no Dia da Árvore não as regamos e no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades só lemos escritores de língua estrangeira e falamos unicamente com gente de fora.
Só para dar um tom artístico e cultural ao nosso tema de hoje, e também para que todos entendam a profunda lógica e consequentes coerência e simetria entre trabalhar e nada fazer, atente-se no quadro mais abaixo.
Nele dois trabalhadores estão a trabalhar, mas estão simultaneamente sem fazer nada, permanecendo tão-somente a ver o tempo passar. Com efeito, parecem estar simplesmente a olhar, à espera do que vai acontecer e a aguardar que, por um qualquer milagre, o trabalho apareça feito.
Em termos pictóricos, é também possível verificar como a figura que se encontra no solo é quase simétrica à que se encontra no cimo do escadote, seja nas vestes, na postura corporal ou na imensa diligência e iniciativa que ambos parecem ter.
É uma cena passada em Paris no século XIX, mas cuja atualidade é possível de verificar diariamente no nosso país, pelo menos para todos aqueles que tenham um olhar aguçado e alguma sensibilidade estética e artística. É percorrer as ruas, os escritórios e as repartições, que certamente encontraremos por esse Portugal afora cenas de semelhante delicadeza e de tão tocante beleza.
Estabelecido o contexto, o problema com que nos deparamos, é que para nós, não fazer nada, é uma coisa particularmente difícil de se fazer. É simples ter-se tempo livre e pormo-nos a ler, a ver TV ou a navegar na internet. Aparecer no café de esquina para dois dedos de conversa ou então ir passear, também não é complexo, agora ficar-se mesmo sem se fazer nenhum, só a olhar para o ar, isso sim é que não é um fim assim tão fácil de se atingir, como à partida se poderia crer ser.
Colhamos inspiração, força e coragem para esta nossa missão numa estrofe de um poema de Fernando Pessoa:
Ai que prazer
Não cumprir um dever
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Mesmo inspirados pelo poema, a nós parece-nos muito complicado não fazer nada, certamente porque não estamos habituados, mas uma coisa é certa, hoje vamos mesmo tentar. Pois se há tanta gente por aí que não faz nada com tanta facilidade, com certeza que nós não somos menos de que os outros e também haveremos de o conseguir.
Não queremos pormo-nos a dormir, não é essa a nossa a intenção. Mas não sendo isso, que outra solução existirá para nada se fazer?
Há quem não faça nada e se ponha a matutar e a refletir sobre a vida, o que desde já nós vos dizemos não ser uma boa prática. Se porventura nos pusermos a pensar na vida e nas suas múltiplas vicissitudes, é certo que o nosso intento não irá resultar, será mesmo um clamoroso desastre.
Pensar na vida é uma estafa imensa, uma autêntica canseira, ou seja, é tudo aquilo que hoje não queremos ter. Se fosse para isso, valia mais que neste dia 1 de Maio nem sequer fosse feriado que ficávamos menos cansados.
Abandonemos portanto, a hipótese de nos pormos a fazer considerandos sobre a nossa existência, que isso é uma atestada chatice. Temos uma ideia melhor, uma outra hipótese. Que tal pormo-nos antes a olhar para as paredes?
É certo que tal prática é uma atividade que não desfruta de grande prestígio nem tem qualquer tipo de glamour, no entanto, e ainda assim, é capaz de ter o seu interesse e de ser uma boa forma de nada se fazer. É uma questão de experimentarmos.
Em boa verdade, bastaram-nos os derradeiros cinco minutos a olhar para as paredes, para constatarmos as razões pelas quais tal atividade não tem qualquer prestígio nem glamour nenhum.
Com efeito, olhar para as paredes é coisa que na realidade não possui interesse algum. Creiam em nós que já experimentámos, não é uma lenda, nem é um mito urbano, é mesmo verdade, olhar para as paredes é algo que não adianta nem atrasa a ninguém.
Experimentemos antes algo diferente, uma nova hipótese, por exemplo, ir espreitar à janela. A bem dizer, assim à priori, aparenta ser uma forma engraçada de passarmos o tempo sem nada fazer.
Lá vai a vizinha de baixo, aonde irá ela? Ai que giro, foi despejar o lixo. Olha o senhor lá de cima, vem carregado. Com certeza que deve ter ido aviar-se ao supermercado. Eh lá, o que é aquilo? Um funcionário da EMEL? Mas se hoje é feriado! Deve andar enganado. E ali vai um gato, não tem ar de estar abandonado, deve ser um bicho vadio, pobre coitado!
Bom, aqui chegados, já todos os que nos leem devem ter compreendido, que estar à janela a ver quem passa, também não é lá essas coisas. Deverá com certeza haver melhores formas de se passar o dia sem nada se fazer.
Bem vos tínhamos dito logo ao início, que isto de se estar sem fazer nada, não é coisa fácil de fazer. Nisto, ocorreu-nos agora uma outra ideia, e se fizéssemos antes qualquer coisa? Assim algo de singelo e que não implicasse qualquer esforço. Às tantas era capaz de ser melhor. Mas dito isto, fazer o quê?
Trabalhar não podemos, pois que é o Dia do Trabalhador e laborar está proibido por lei. Ler não nos apetece que temos a vista cansada. Ver TV ou navegar na internet muito menos, pois o que por lá vemos é maçador e aborrece. As conversas de café são as recorrentes e frequentemente entediantes. Para passear está vento e frio, sendo portanto um tanto ou quanto inóspito fazê-lo e também nada aconchegante. Em resumo, feitas as contas, a questão é a mesma de há pouco, mas fazer o quê?
E se nos dedicássemos à música? Com efeito, parece ser uma boa solução. De facto, e pensando bem, é mesmo uma excelente deliberação. Não implica esforço algum e parece ser mais interessante do que olhar para as paredes ou ir espreitar pela janela. Assim sendo, está decidido, é isso mesmo que vamos fazer.
Mas dito isto, não nos vamos dedicar a umas músicas quaisquer. Já que é o Dia do Trabalhador, escolhemos querer ser embalados por temas musicais que nos falem de trabalho. Digam lá, é ou não bem pensado da nossa parte?
Tal escolha revela uma intencionalidade lógica, uma clara vontade de coerência temática e também um manifesto desejo de simetria na seleção dos tópicos a abordar, certo? Sim? Concordam? A sério? Pois então vamos em frente e não se fala mais nisso, está resolvido.
Calma, ainda antes de irmos à música, uma informação cultural e uma precisão. Todas as imagens até este momento aqui apresentadas são do pintor impressionista francês Gustave Caillebotte (1848-1894).
Mais uma vez, fica assim perfeitamente patente que há uma intencionalidade lógica no que apresentamos, e por conseguinte, uma coerência temática e uma profunda relação simétrica entre todos os assuntos desta nossa publicação. É só para verem que não fazemos as coisas nem à balda nem à toa.
“Vai trabalhar vagabundo, vai trabalhar criatura”. É este o início de uma célebre canção de Chico Buarque que nos fala de um trabalhador. Ao personagem do tema é-lhe dito que “pode esquecer a mulata” e, como se isso não fosse bastante, que também “pode esquecer o bilhar”.
Para cúmulo, é ainda incentivado a “apertar a gravata” para se “enforcar, entregar e estragar”. Fora as metáforas, o que na verdade lhe sucedeu, foi que o homem deixou de poder andar na boa vai ela e teve de se fazer à vida e arranjar um emprego para sustentar a família.
Postas as coisas nestes termos, ou seja, ficando o homem sem mulata nem bilhar e de gravata apertada, era previsível que não aguentasse a pressão e que mais tarde ou mais cedo sucumbisse ao cansaço.
E foi precisamente isso o que aconteceu, agora “descansa na paz de Deus”, mas antes de ir, responsavelmente deixou “casa e pensão” à família. Como é normal as crianças choraram a sua partida, já a mulher, ao que nos diz o Chico, “vai suar, pra botar outro malandro no seu lugar”.
É para homenagear pobres trabalhadores como este da canção de Chico Buarque, que nasceu o 1 de Maio. Escutemos a música “Vai trabalhar vagabundo” em sinal de respeito por todas as vítimas do trabalho que tombaram por ficarem sem mulata, sem bilhar e ainda terem de andar de gravata apertada:
Pensemos agora num outro simpático tema, cujo título é “Sympathique”. Como já perceberam é francês, havendo também quem o conheça por um outro nome, a saber, “Je ne veux pas travailler”, o que em português seria “Não quero trabalhar”.
A canção baseia-se num poema do célebre Apollinaire (1880-1918). O dito poema reza assim:
“Je ne veux pas travailler
Je ne veux pas déjeuner
Je veux seulement oublier
Et puis je fume.”
Como se verifica, o poeta Apollinaire não queria trabalhar, não tomava o pequeno-almoço, que como é sabido é a refeição mais importante do dia, e para além disso, fumava. Em síntese, era uma pessoa sem hábitos de vida saudáveis e pouco produtiva, não admirando portanto que tivesse morrido jovem, apenas com trinta e oito anos.
Foi vítima não dos seus desregrados hábitos e da sua pouca produtividade, mas sim da pandemia de gripe espanhola que assolou o mundo no início do século XX. Foi enterrado no cemitério de Père-Lachaise em Paris, tendo no seu túmulo uma escultura feita por Picasso, que era seu grande amigo e admirador, apesar dele não querer trabalhar, não tomar o pequeno-almoço e fumar. Ao que se diz, também bebia e frequentava lugares de má fama.
Em 1914, o artista surrealista italiano Giorgio de Chirico pintou o seu retrato, que é este que abaixo fica. Não está nada parecido, mas isso que importa?
Muitos anos mais tarde, em 1997, a banda norte-americana Pink Martini pegou no poema de Apollinaire e musicou-o. Abaixo fica a canção com um vídeo a acompanhar. A avaliar pelas imagens, a atriz que interpreta o vídeo também não leva uma vida lá muito regrada. Pelo que se vê anda demasiada à fresca e não se preocupa nada com as constipações.
É preciso ser-se inconsciente para se andar em tais preparos pelo meio da rua em Paris, sítio onde mesmo no verão faz com cada ventania que até arrepia. E mesmo dentro de casa, há que ter cuidado, não vá haver alguma corrente de ar.
Vê-se bem que a menina do vídeo “ne veux pas travailler”, pois se tivesse de pegar ao serviço no dia seguinte, não andava por aí toda desagasalhada.
Como esta nossa conversa já vai longa, vamos apenas falar-vos de mais um tema, “A Hard Day’s Night” dos Beatles. A história que se conta nesta canção é bastante conhecida, dir-se-ia até que é bastante comum.
Um rapaz arranja uma rapariga linda, é amor à primeira vista. Contudo, ela não se contenta com pouco. Vai daí o rapaz tem de se esforçar bastante. Como ele próprio diz, “I work all day, to get you money to buy you things”.
Como se depreende da letra da canção, o rapaz não se sente explorado pelos seus patrões nem anda cá com contestações, aparentemente o que aufere fá-lo feliz, pois chega para que a rapariga lhe dê o que ele quer: “And it's worth it just to hear you say, You're gonna give me everything”.
Enfim, a década de 60 era um tempo em que as relações laborais não eram muito complicadas.
“A Hard Day’s Night” é também um filme, para além de uma canção. A película contou com a participação dos Beatles como personagens principais, sendo o argumento um tanto ou quanto surrealista.
Na cena inicial, que abaixo vos deixamos, os Beatles fogem de uma horda de fãs, sobretudo raparigas, que os perseguem em histeria pelas ruas de Londres. Parece uma imensa manifestação, talvez fosse uma do 1 de Maio:
E pronto, por aqui terminamos. Nós não temos nada que fazer e portanto podíamos continuar por aí afora a escrever, no entanto, talvez quem até este momento nos acompanhou, tenha mais que fazer do que estar a ler-nos. Caso assim seja, toca a irem trabalhar, a irem fazer qualquer coisa.
Olhem que a vida não é só estar a ler blogues, tem de haver alguma lógica, coerência e simetria nisto tudo. Não é uns estarem sem fazer nada só a ler e outros a fazerem um esforço imenso para nada fazer. Vamos lá embora que alguém tem de levar este país para a frente.
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