Avançar para o conteúdo principal

Em Portugal é um lixo, em França é um luxo.


 Olhamos para as nossas TV’s em canal aberto às horas nobres e vemos o quê? Concursos mais ou menos bacocos, telenovelas sem particular interesse e, aos fins-de-semana, longas horas de transmissão das festas, feiras e arraiais que há por todo este país. Em resumo é isto.

 

Vem tal a propósito de ter falecido um francês de 89 anos. Chamava-se Bernard Pivot e durante décadas apresentou na televisão pública francesa, em horário nobre, programas dedicados à mais alta cultura. “Apostrophes” entre 1975 e 1990, e “Bouillon de culture” entre 1991 e 2001.

Estranhamente, ou talvez não, foram programas que tiveram sempre grandes audiências. Os números nunca ficaram abaixo dos 2 milhões e meio de espectadores por emissão, sendo que, em certos momentos chegaram a atingir os 6 milhões.

 


Praticamente todos os grandes das artes e letras foram convidados por Bernard Pivot para os seus programas de TV. Por lá passaram escritores míticos como Vladímir Nabokov, Alexander Solzhenitsin, Marguerite Yourcenar, Umberto Eco ou Charles Bukowsky, músicos como Serge Gainsborough, gente do cinema como Jane Fonda, Woody Allen e Brigitte Bardot, e até políticos como François Mitterrand e Lech Walesa.

 

Em 1998 Bernard Pivot dedicou um programa inteiro à cultura portuguesa, que foi feito a partir do Palácio de Fronteira em Lisboa, e para a qual convidou a escritora Lídia Jorge, o cineasta Manoel de Oliveira, os atores Leonor Silveira e Diogo Dória, e também o então ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho.

 

Em certa ocasião, Bernard Pivot resumiu em que se baseava o seu êxito: “Parto para cada emissão sempre com a seguinte premissa: o público não sabe nada, eu tão-pouco o sei, os intelectuais e escritores sabem muitas coisas. Todavia, tendo eu lido os seus livros, sei o suficiente para ser mediador entre a ignorância de uns, que não desejam outra coisa que não seja aprender, e o conhecimento de outros, que não pedem outra coisa que não seja a oportunidade de transmitir o seu saber.”

 

Nestas poucas frases está toda uma visão benigna do mundo em que há quem sinta o desejo de aprender e saber, e há também quem peça para transmitir e ensinar o que sabe.

Conceber programas partindo do pressuposto que há espectadores cujo desejo é aprender e de que há gente que pede para ir à TV para ensinar, é uma forma de acreditar no mundo e nas pessoas. Mas onde é que vemos isto nos nossos canais em sinal aberto?

Em lado nenhum, pois claro. O que se observa é mesmo o oposto, os programas são concebidos como se os espectadores fossem todos parvos e nada desejassem aprender, e quem é convidado para aparecer nas TV’s pouco ou nada tem a ensinar seja a quem for, na maior parte dos casos o que quer é promover-se.

 

Tudo isto é um modo de descrer no mundo e nas pessoas, e pensar-se que a televisão para mais não serve do que para distrair e entreter quem pouco sabe ou quer saber, e nada mais tem que fazer.

 


Em 11 de abril de 1975, num grande momento de televisão, Bernard Pivot recebeu um homem cujas palavras eram raras e preciosas, o dissidente russo Alexandre Soljenítsin. Expulso da União Soviética um ano antes, o autor de “O Arquipélago do Gulag” conta na TV em direto a génese da sua grande obra.

 

Logo na década de 50, Soljenítsin foi condenado a oito anos num campo de trabalhos forçados, ou seja, num gulag. A condenação determinou igualmente que a esses anos se seguiriam uma pena perpétua de exílio numa região longínqua da Rússia. Passou todos esses longos anos a escrever em segredo e, ainda que a muito custo, conseguiu publicar alguns dos seus escritos.

 

Para escrever esse extraordinário livro que é “O Arquipélago do Gulag”, Soljenítsin contou não apenas com a sua experiência, mas também com o testemunho de centenas de sobreviventes dos campos de trabalhos forçados. Escreveu-o clandestinamente de 1958 a 1967, mas o manuscrito foi descoberto pelo KGB em 1973.

 

Diante de tal, Soljenítsin, que tinha sido galardoado com o Prémio Nobel em 1970, decide publicar o livro no estrangeiro. A primeira edição em russo é publicada em Paris em 1973 e um ano depois sai uma edição em francês. Soljenítsin é preso e acusado de traição, é-lhe retirada a nacionalidade e mandado para o exílio. Só regressará à Rússia muitas décadas depois.

 

Para os russos e não só, Soljenítsin era o equivalente a um santo, ainda assim, Bernard Pivot consegui trazê-lo a uma emissão de TV. Aqui fica um interessante excerto desse momento, para quem compreender a língua russa:

 


A literatura norte-americana está intimamente relacionada com a bebida. Os clássicos “O Som e a Fúria” e “Luz de Agosto”, do Prémio Nobel William Faulkner, nunca teriam sido escritos sem o whisky. O mesmo se pode dizer de livros fundamentais como “Adeus às Armas” ou “Por quem os sinos dobram” de um outro Nobel, Ernest Hemingway. Neste caso, a escrita alimentava-se sobretudo de Martinis. Isto já para não falar dos célebres romances “Terna é a Noite” e “O Grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald, pois que este enorme autor, fosse de noite ou de dia, bebia tudo o que lhe aparecia.


Sendo o álcool uma grande tradição da literatura norte-americana, ninguém a terá levado tão à letra como o romancista e poeta Charles Bukowski. Ele próprio descreveu o seu processo criativo: I do all my writing when I’m drunk. All the time I type I’m drunk.”

 

São inúmeras as citações de Charles Bukowsky a propósito da bebida, talvez a mais famosa seja esta: That's the problem with drinking, I thought, as I poured myself a drink. If something bad happens you drink in an attempt to forget; if something good happens you drink in order to celebrate; and if nothing happens you drink to make something happen.”

Sendo o grande escritor que era, um dia Bernard Pivot convidou Bukowsky para ir ao seu programa. Lá esteve sentado, calado e acompanhado por uma garrafa. A determinado momento fartou-se da conversa, levantou-se e foi-se embora. Estava completamente ébrio.

Ao que se sabe, Charles Bukowsky odiava falar sobre literatura, e foi isso mesmo que fez quando foi à TV. Nada disse, mas deu um claro exemplo a todos os espectadores daquilo de que é feita a grande tradição literária norte-americana. Aqui ficam as imagens: 


A poesia de Bukowsky era a dos “losers” e a dos “outsiders", brilhar na televisão, ser uma celebridade e ser considerado um grande escritor eram coisas que não lhe interessavam para nada. Aqui fica um seu poema:

 


E com este poema terminamos esta nossa homenagem a Bernard Pivot e a um tempo em que ainda se acreditava que se podia aprender algo a ver TV, e quem lá ia, não o fazia só para se exibir, ou seja, pedia humildemente para ensinar o que sabia e não simplesmente para passear a sua vaidade.

Um grande amigo de Pivot disse dele que “Não frequenta escritores, prefere o futebol e o vinho”, ainda assim, quando noutros países o questionavam sobre a razão pela qual não tinham programas de TV como os seus, ele respondia sempre “Porque não querem!” .

Agora sim, é que é mesmo para terminarmos. Deixamos-vos um link de um canal de televisão franco-alemão, o Arte TV. É um canal público, simultaneamente financiado pelo estado alemão e pelo estado francês, mas cuja vocação é europeia, razão pela qual também tem emissões em espanhol, e em polaco, e passa em países como a Bélgica, a Itália e por aí fora. Em Portugal só dá por cabo, mas não faz mal, por cá temos sempre o Preço Certo, o Big Brother, o Festa é Festa e por aí fora...

https://www.arte.tv/fr/

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os professores vão fazer greve em 2023? Mas porquê? Pois se levam uma vida de bilionários e gozam à grande

  Aproxima-se a Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. A esse propósito, lembrámo-nos que serão pouquíssimos, os que, como os professores, gozam do privilégio de festejarem mais do que uma vez num mesmo ano civil, o Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. Com efeito, a larguíssima maioria da população, comemora o Fim de Ano exclusivamente a 31 de dezembro e o Ano Novo unicamente a 1 de janeiro. Contudo, a classe docente, goza também de um fim de ano algures no final do mês de julho, e de um Ano Novo para aí nos princípios de setembro.   Para os nossos leitores cuja agilidade mental eventualmente esteja toldada pelos tantos comes e bebes ingeridos na época natalícia, explicitamos que o fim do ano letivo é em julho e o início em setembro. É disso que aqui falamos, esclarecemos nós, para o caso dessa subtil alusão ter escapado a alguém.   Para além da classe docente, são poucos os que têm esta oportunidade, ou seja, a de ter múltiplas passagens de ano num só e mesmo ano...

Que bela vida a de professor

  Quem sendo professor já não ouviu a frase “Os professores estão sempre de férias”. É uma expressão recorrente e todos a dizem, seja o marido, o filho, a vizinha, o merceeiro ou a modista. Um professor inexperiente e em início de carreira, dar-se-á ao trabalho de explicar pacientemente aos seus interlocutores a diferença conceptual entre “férias” e “interrupção letiva”. Explicará que nas interrupções letivas há todo um outro trabalho, para além de dar aulas, que tem de ser feito: exames para vigiar e corrigir, elaborar relatórios, planear o ano seguinte, reuniões, avaliações e por aí afora. Se o professor for mais experiente, já sabe que toda e qualquer argumentação sobre este tema é inútil, pois que inevitavelmente o seu interlocutor tirará a seguinte conclusão : “Interrupção letiva?! Chamem-lhe o quiserem, são férias”. Não nos vamos agora dedicar a essa infrutífera polémica, o que queremos afirmar é o seguinte: os professores não necessitam de mais tempo desocupado, necessitam s...

Se a escola não mostrar imagens reais aos alunos, quem lhas mostrará?

  Que imagem é esta? O que nos diz? Num mundo em que incessantemente nos deparamos com milhares de imagens desnecessárias e irrelevantes, sejam as selfies da vizinha do segundo direito, sejam as da promoção do Black Friday de um espetacular berbequim, sejam as do Ronaldo a tirar uma pastilha elástica dos calções, o que podem ainda imagens como esta dizer-nos de relevante? Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no pré-escolar a idade média dos docentes é de 54 anos, no 1.º ciclo de 49 anos, no 2.º ciclo de 52 anos e no 3.º ciclo e secundário situa-se nos 51 anos. Feitas as contas, é quase tudo gente da mesma criação, vinda ao mundo ali entre os finais da década de 60 e os princípios da de 70. Por assim ser, é tudo gente que viveu a juventude entre os anos 80 e os 90 e assistiu a uma revolução no mundo da música. Foi precisamente nessa época que surgiu a MTV, acrónimo de Music Television. Com o aparecimento da MTV, a música deixou de ser apenas ouvida e pa...

Avaliação de Desempenho Docente: serão os professores uns eternos adolescentes?

  Há já algum tempo que os professores são uma das classes profissionais que mais recorre aos serviços de psicólogos e psiquiatras. Parece que agora, os adolescentes lhes fazem companhia. Aparentemente, uns por umas razões, outros por outras completamente diferentes, tanto os professores como os adolescentes, são atualmente dos melhores e mais assíduos clientes de psicólogos e psiquiatras.   Se quiserem saber o que pensam os técnicos e especialistas sobre o que se passa com os adolescentes, abaixo deixamos-vos dois links, um do jornal Público e outro do Expresso. Ambos nos parecem ser um bom ponto de partida para aprofundar o conhecimento sobre esse tema.   Quem porventura quiser antes saber o que pensamos nós, que não somos técnicos nem especialistas, nem nada que vagamente se assemelhe, pode ignorar os links e continuar a ler-nos. Não irão certamente aprender nada que se aproveite, mas pronto, a escolha é vossa. https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/est...

A propósito de “rankings”, lembram-se dos ABBA? Estavam sempre no Top One.

Os ABBA eram suecos e hoje vamos falar-vos da Suécia. Apetecia-nos tanto falar de “rankings” e de como e para quê a comunicação social os inventou há uma boa dúzia de anos. Apetecia-nos tanto comentar comentadores cujos títulos dos seus comentários são “Ranking das escolas reflete o fracasso total no ensino público”. Apetecia-nos tanto, mas mesmo tanto, dizer o quão tendenciosos são e a quem servem tais comentários e o tão equivocados que estão quem os faz. Apetecia-nos tanto, tanto, mas no entanto, não. Os “rankings” são um jogo a que não queremos jogar. É um jogo cujo resultado já está decidido à partida, muito antes sequer da primeira jogada. Os dados estão viciados e sabemos bem o quanto não vale a pena dizer nada sobre esse assunto, uma vez que desde há muito, que está tudo dito: “Les jeux sont faits”.   Na época em que a Inglaterra era repetidamente derrotada pela Alemanha, numa entrevista, pediram ao antigo jogador inglês Gary Lineker que desse uma definição de futebol...

Aos professores, exige-se o impossível: que tomem conta do elevador

Independentemente de todas as outras razões, estamos em crer que muito do mal-estar que presentemente assola a classe docente tem origem numa falácia. Uma falácia é como se designa um conjunto de argumentos e raciocínios que parecem válidos, mas que não o são.   De há uns anos para cá, instalou-se neste país uma falácia que tarda em desfazer-se. Esse nefasto equivoco nasceu quando alguém falaciosamente quis que se confundisse a escola pública com um elevador, mais concretamente, com um “elevador social”.   Aos professores da escola pública exige-se-lhes que sejam ascensoristas, quando não é essa a sua vocação, nem a sua missão. Eventualmente, os docentes podem até conseguir que alguns alunos levantem voo e se elevem até às altas esferas do conhecimento, mas fazê-los voar é uma coisa, fazê-los subir de elevador é outra.   É muito natural, que sinta um grande mal-estar, quem foi chamado a ensinar a voar e constate agora que se lhe pede outra coisa, ou seja, que faça...

Luzes, câmara, ação!

  Aqui vos deixamos algumas atividades desenvolvidas com alunos de 2° ano no sentido de promover uma educação cinematográfica. Queremos que aprendam a ver imagens e não tão-somente as consumam. https://padlet.com/asofiacvieira/q8unvcd74lsmbaag

Pode um saco de plástico ser belo?

  PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.   Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo” .  Assim, sem ...

Dar a matéria é fácil, o difícil é não a dar

  “We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard."   Completaram-se, no passado dia 12 de setembro, seis décadas desde que o Presidente John F. Kennedy proferiu estas históricas palavras perante uma multidão em Houston.  À época, para o homem comum, ir à Lua parecia uma coisa fantasiosa e destinada a fracassar. Com tantas coisas úteis e prementes que havia para se fazer na Terra, a que propósito se iria gastar tempo e recursos para se ir à Lua? Ainda para mais, sem sequer se ter qualquer certeza que efetivamente se conseguiria lá chegar. Todavia, em 1969, a Apolo 11 aterrou na superfície lunar e toda a humanidade aclamou entusiasticamente esse enorme feito. O que antes parecia uma excentricidade, ou seja, ir à Lua, é o que hoje nos permite comunicar quase instantaneamente com alguém que está do outro lado do mundo. Como seriam as comunicações neste nosso século XXI, se há décadas atrás ninguém tive...

És docente? Queres excelente? Não há quota? Não leves a mal, é o estilo minimal.

  Todos sabemos que nem toda a gente é um excelente docente, mas também todos sabemos, que há quem o seja e não tenha quota para  como tal  ser avaliado. Da chamada Avaliação de Desempenho Docente resultam frequentemente coisas abstrusas e isso acontece independentemente da boa vontade e seriedade de todos os envolvidos no processo.  O processo é a palavra exata para descrever todo esse procedimento. Quem quiser ter uma noção aproximada de toda a situação deverá dedicar-se a ler Franz Kafka, e mais concretamente, uma das suas melhores e mais célebres obras: " Der Prozeß" (O Processo) Para quem for preguiçoso e não quiser ler, aqui fica o resumo animado da Ted Ed (Lessons Worth Sharing):   Tanto quanto sabemos, num agrupamento de escolas há quota apenas para dois a cinco docentes terem a menção de excelente, isto dependendo da dimensão do dito agrupamento. Aparentemente, quem concebeu e desenhou todo este sistema de avaliação optou por seguir uma de...