Há uma moda
que se alastra por todo o lado, as exposições imersivas. Só neste momento, há
em Lisboa umas quantas, no Porto outras tantas e, por esse mundo afora, muitas
mais. Mas o que significa realmente essa tendência, de querermos ver ondas de
imagens virtuais de obras de arte para nelas nos afundarmos?
A
experiência que esse modo de ver imagens de obras de arte supostamente nos proporciona,
é a de um momento único em que todo o nosso olhar é totalmente invadido por
visões imensas, que nos deixam completamente submergidos.
No entanto,
isso que sucede nessas ditas experiências imersivas com imagens virtuais, é
muito diferente daquilo que acontece ao contemplarmos uma obra de arte real,
pois a contemplação de algo de físico e concreto exige recolhimento, reflexão e
interioridade.
Com efeito,
uma exposição imersiva em nada apela à intimidade e à reclusão, muito pelo
contrário, nesse caso, tudo o que vemos em nosso redor como que nos arrasta
para o exterior.
Tudo nos
pede que nos concentremos nas intensas imagens que nos circundam e envolvem, e
coisa alguma nos dirige para o nosso interior, para esse reservado reduto que é
a essência de quem somos.
As imagens movimentam-se, as luzes agitam-se, as cores vibram, o espaço cerca-nos e rodopia e nada, mas mesmo nada, nos indica um caminho de reflexão e contemplação que nos conduza para um lugar de meditação que se situe lá bem dentro de nós próprios, ou seja, no nosso exato âmago ou centro.
Para que
serve a arte? Há muitas respostas possíveis para esta questão, mas talvez a
mais certa é a de que nos serve como um espelho. Ao contemplarmos uma obra de
arte, se a olharmos com atenção, vamos verificar que nela há um reflexo de quem
e daquilo que somos. Se em frente de um espelho de vidro vemos um reflexo do
nosso exterior, frente a uma obra de arte vemos um reflexo do nosso interior.
Quem saberia
que no interior do nosso espírito albergamos um ideal de perfeição, proporção e
harmonia, se não o tivéssemos visto refletido nas olímpicas esculturas de puro
mármore branco da antiga Grécia?
Sem esse
reflexo, ninguém frequentaria hoje em dia um ginásio e Hollywood seria habitada
por gente muito distinta daquela que lá vive. Se por acaso há dois milénios não
houvesse quem, obedecendo a uma visão vinda de dentro, passasse para a pedra
marmórea o reflexo disso que nitidamente via no seu interior, certamente que
atualmente pouco saberíamos do que é a perfeição, a proporção e a harmonia.
Esse ideal
helénico de beleza, simetria e elegância não se manifestou tão-somente nos
corpos esculpidos de divindades como Apolo, Diana, Zeus ou Afrodite, revelou-se
igualmente em teatros, templos e em outros edifícios que são autênticas obras
de arte, nítidos reflexos.
Pensemos por
exemplo no Templo de Poseidon junto ao Mar Egeu (imagem abaixo). Ainda hoje o
podemos contemplar, como se o tempo ali o tivesse fixado para sempre. Nada nele
se move, não há outra agitação que não seja a de uma qualquer brisa marítima.
Tudo nos convida a um meditativo recolhimento, à contemplação e à constatação
de que o que vemos no nosso exterior, ou seja, à afinidade entre céu, terra e
mar que o templo parece simbolizar, é afinal também um reflexo de um anseio que
há bem no fundo de nós, o desejo de eternidade. Em síntese, o templo é um
espelho.
Uma obra de
arte é inclusivamente um espelho daquilo que, até ao instante em que a
contemplamos, nem sequer sabíamos que existia em nós. Ao olharmos para uma
pintura de Vieira da Silva, vemos um entrelaçado de linhas em que o fundo da
tela e a sua superfície se confundem, revelando-nos de cada vez que a voltamos
a olhar, coisas que reconhecemos e simultaneamente não reconhecemos.
Ao vermos a
arte de Vieira da Silva, apercebemo-nos de figuras que parecem dizer-nos algo e
cujas formas quase sabemos dizer o que são, contudo, quando logo em seguida as voltamos
a olhar, a essas mesmas exatas formas, elas transformam-se e metamorfoseiam-se
noutras que aparentam ser vindas de um lugar distante, ou seja, de um sítio que
se situa para lá das entranhas do enleado da tinta, das linhas e dos traços.
Neste ir e
vir do nosso olhar entre o fundo e a superfície da tela, entre o reconhecível e
o irreconhecível, acabamos por descobrir algo que antes não sabíamos de nós
próprios, algo que se aninha no nosso interior e que se espelha ali mesmo à
nossa frente.
Descobrimos
quem somos e o que somos, ainda que não o saibamos nomear, todavia, a arte
serve para isso mesmo, para nos dar a ver, ou seja, para reflectir, o que há
nos locais mais recônditos da nossa alma, mesmo que porventura não o consigamos
pôr em palavras.
Voltemos
então às chamadas exposições imersivas, para dizer que nessas situações, essa
viagem rumo ao nosso interior, esse ir e vir, não existe. O problema de todas
essas intensas imagens virtuais, é que lhes falta alma, patine e a aura e empatia
existente na obra original.
Em resumo, carecem
da mão de quem que as criou e apesar de todo o espectáculo que dão, o mais que exibem
é uma frialdade que não convida a viajar.
O escritor
alemão Ernst Jünger (1895-1998), questionado por altura de cumprir os seus 100
anos sobre quais seriam as suas previsões para o século XXI, respondeu que este
seria o século dos titãs, ou seja, do domínio da tecnologia, que não é o mesmo
que dizer da ciência. Acrescentou ainda, que passado esse primeiro período de
fascínio pela tecnologia, logo a seguir voltaria o tempo dos deuses.
O certo é
que assistimos agora a uma realidade equivalente à de uma muito antiga história
bíblica, pois tal como os nossos antepassados desse tempo, a atual sociedade
presta um culto cego a um bezerro de ouro, que no presente caso é a tecnologia.
Bezerro de ouro é o ídolo
que, de acordo com a tradição judaico-cristã, foi criado por Arão
quando Moisés
subiu ao Monte Sinai para receber os mandamentos de Deus.
Na linguagem corrente, a expressão "bezerro de ouro" tornou-se
sinónimo de algo de falso, mas cuja aparência brilhante, vistosa e reluzente
atrai e alicia. A expressão é também usada para designar um falso
"deus".
Para
compreendermos uma obra de arte, não é despiciendo que nela possamos ver que
quem a concebeu, também a criou, ou seja, que a tocou e sentiu com as suas
próprias mãos, o que evidentemente não é visível nem se pode sentir numa
experiência imersiva, por muito espetacular que ela seja. Uma coisa é o circo, outra coisa é a arte, excepto
quando são uma e a mesma coisa…
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