Compreendemos neste momento os docentes que se queixam dos alunos de agora, por eles já não serem como os de dantes, ou seja, atentos, estudiosos e respeitadores. Repentinamente, percebemos com brutal clareza, que o tempo presente pode ser chocante e o único porto seguro que temos é o passado.
Ontem, sensivelmente umas três décadas desde a última vez que tal tínhamos feito, pusemo-nos a ver um pouco do Festival da Eurovisão.
Não estávamos minimamente preparados para o que vimos, afinal de contas, três décadas é bastante tempo, e talvez por isso, ficámos absolutamente espantados com o que observámos.
Não estávamos mesmo nada à espera de uma coisa daquelas, não tínhamos sequer a menor consciência que o mundo da Eurovisão mudara assim tanto em trinta anos. Ainda estamos um tanto ou quanto abalados com o choque.
Perguntamo-nos a nós próprios, como é que um certame televisivo que durante décadas era um espetáculo de variedades ligeiro e tradicional, com cançonetas leves, sentimentais e conformistas, se transformou naquilo a que ontem assistimos.
É bem verdade que em todos esses anos, fomos vendo assim “en passant” um excerto ou outro, de quinze a trinta segundos, que por vezes passava no telejornal com a canção vencedora. Mas ver durante um bom bocado o festival, é uma experiência radicalmente diferente da de ver só uma notícia rápida, que apresenta um ou outro momento solto.
Como quem habitualmente nos lê saberá, nós não gostamos de ficar perplexos sem perceber o porquê das coisas, vai daí, decidimos que iríamos filosofar sobre o assunto. Queremos ter uma perspectiva histórica e cultural sobre o que aconteceu, e que metamorfose foi esta que de se deu no Festival da Eurovisão desde o tempo em que éramos jovens.
Fomos à Wikipédia verificar como eram as coisas nos anos iniciais do festival, ou seja, durante o final da década de 50 e os agitados anos 60. Nesse período, bandas como os Beatles ou os Rolling Stones andavam a reinventar completamente a música Pop e também o Rock.
Ao mesmo tempo, Bob Dylan trazia para as canções populares letras de uma grande densidade revolucionária e poética. Depois de tudo isso e muito mais, nada ficou como dantes no mundo da música.
No entanto, ao Festival Eurovisão da Canção não chegou nenhumas dessas revoluções musicais. As canções eram as mesmas de sempre, e era assim que era suposto ser. Temas simples e aprazíveis para toda a família, desde o mais pequenito até à avozinha.
Os títulos vencedores do Festival da Eurovisão nesses anos eram tão simpáticos, amenos e inocentes como por exemplo, “Dors, Mon Amour”, “Un Premier Amour”, “Nous Les Amoureux”, “Merci Chérie”, “Vivo Cantando”, “Boom Bang-a-Bang” ou “La La La”.
A década de 60 foi uma época particularmente conturbada na Europa e no mundo, os Estados Unidos envolveram-se numa longa guerra no Vietname, os hippies revoltaram-se contra a sociedade, em França houve a enorme crise de Maio de 68, surgiram graves confrontos raciais por todo lado, guerras coloniais decorriam por vários sítios, e deflagrou a Primavera de Praga, que obrigou a URSS a entrar com tanques por essa cidade adentro, adensando assim o clima da Guerra Fria que então opunha leste e oeste.
Houve também a chamada Guerra dos Seis Dias. Conflito em que a Síria, o Egito, a Jordânia e o Iraque se opuseram a Israel. Para surpresa geral, em menos de uma semana Israel venceu, triplicando assim o seu território. O Egito perdeu a Faixa de Gaza e a Península do Sinai, a Síria ficou sem os Montes Golã e à Jordânia foi retirado o domínio da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental.
Contudo, todas essas atribulações nada tinham que ver com o Festival da Eurovisão, que era pura e simplesmente um concurso televisivo, onde uns quantos cançonetistas iam interpretar uns temas ligeiros acerca dos quais pouco ou nada havia a dizer.
Vejamos um exemplo desse tipo de canções. A que escolhemos é de 1972, ano em que a vencedora foi Vicky Leandros com o tema “Après toi”. O drama de Vicky não era outro que o resultante do seu rapaz estar de partida. Ao que se percebe, arranjou uma outra, que não a dita Vicky. Ainda assim, ela sabe que ele não tem culpa, são daquelas coisas que volta não volta acontecem.
A Vicky está muito triste e diz-nos que depois dele nunca mais conseguirá ser a mesma e que vai recordá-lo para todo o sempre. E nós acreditamos nela e nos seus lamentos, sentimo-nos condoídos, solidários e chegamos até a verter uma lágrima pela pobre Vicky. Aqui fica então a canção, “Après toi”:
Ora bem, era este o tipo de dramas com que estávamos habituados a condoer-nos e solidarizarmos quando antigamente víamos o Festival da Eurovisão, para nosso pasmo, atualmente os dramas são de uma dimensão completamente diferente.
Então não é que agora, o festival é palco para manifestações políticas e protestos sociais de diversas índoles. A concorrente de Israel foi vaiada por ser israelita e a concorrente da Ucrânia foi aplaudida por ser ucraniana. Os sindicatos da televisão pública belga cortaram a transmissão durante a atuação da cantora israelita e projetaram uma mensagem de protesto contra a guerra em Gaza.
A televisão italiana RAI divulgou os resultados do tele voto italiano (é proibido revelar os números antes do final do concurso), segundo os quais a canção israelita teria tido uma vitória esmagadora, com quase 40% dos votos.
Mas isto não é tudo, a concorrente espanhola interpretou um tema dito feminista, “Zorra”, que em português significa vadia ou algo ainda mais explícito, que provocou tanta polémica em Espanha, que até o Primeiro-ministro do país vizinho se pronunciou sobre o assunto. Bambie Thug, a pessoa não-binária que concorre pela Irlanda, não foi ao ensaio geral em protesto contra algo que nós não conseguimos apurar. O concorrente francês parou a sua interpretação nesse mesmo ensaio para fazer um discurso a pedir paz e união. O concorrente dos Países Baixos foi expulso a umas escassas horas da sua atuação por comportamento considerado inadequado. Para cúmulo, havia snipers das forças de segurança suecas nas imediação do local onde decorreu o festival para alguma eventualidade.
Snipers no Festival da Eurovisão? Mas que mundo é este? O que terá José Cid a dizer sobre isto? E a Madalena Iglésias? Será que as Doce já sabem do que se passa? E não dizem nada?
Como vos dissemos no início deste nosso texto, depois de vermos e sabermos de tudo o que sucedeu no Festival da Eurovisão de 2024, compreendemos os docentes que se queixam dos alunos de agora, por eles já não serem como os de dantes.
E no fim de todo este imbróglio, venceu a pacífica Suíça, um país que não participa em qualquer conflito desde 1515 e tem inscrito na sua constituição a sua neutralidade. Mais a mais, a canção vencedora tem como intenção levar a todos uma mensagem de esperança e tolerância.
É impressão nossa, ou a vitória suíça é uma grande ironia? Fica a questão.
Para terminarmos, uma citação que nos enche de otimismo. O filme “O Terceiro Homem”, na Viena triste e arruinada do pós-guerra, um personagem interpretado por Orson Welles vira-se para um seu amigo e diz-lhe assim: “Não sejas tão pessimista. No fim de contas, isto não é assim tão mau. Como dizia o outro, em Itália durante trinta anos, sob os Bórgias, houve guerras, terror, assassínios e derramamento de sangue mas produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça houve amor fraternal – tiveram 500 anos de democracia e paz – e o que é que produziram? O relógio de cuco.”
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