Notícias há muitas, mas nem todas dizem as mesmas coisas, até quando tratam de assuntos equivalentes. Ultimamente há bastantes a alertarem para os riscos do uso excessivo de telemóveis por parte de crianças e jovens. Todavia, surgiram agora outras, que em sentido divergente ao das primeiras, nos dizem que talvez o verdadeiro perigo não tenha origem nos telemóveis, mas sim na rua. Ou melhor, na falta dela.
Alguma coisa começou a acontecer após o ano 2010, pois por todo o mundo ocidental e não só, foi nessa data que os números das taxas de depressão e ansiedade entre adolescentes e jovens dispararam, tendo vindo continuamente a aumentar até ao atual momento. Nunca como agora, houve uma geração com tão elevada percentagem de gente nova com transtornos mentais, calculando-se que sejam ao dia de hoje 293 milhões por todo o globo.
Em 2010 foi quando se começou a generalizar o uso de smartphones, consequentemente, são muitas as notícias que associam uma coisa à outra. De tal modo, que é uma ideia comumente aceite, que a razão pela qual crianças e jovens sofrem agora de tantos problemas psico-emocionais, é por estarem constantemente agarrados aos telemóveis. Uma coisa é certa, bem de certeza que não lhes faz, contudo, a raiz do problema parece não ser essa, mas sim outra.
Candice L. Odgers, investigadora e professora de psicologia da Universidade da California, publicou recentemente um artigo em que põe em causa a culpabilidade dos telemóveis e coloca em dúvida que sejam eles a causa dos atuais problemas mentais de crianças e jovens. Mais, diz também que essa ideia não é suportada por nenhuma evidência científica e que a recente histeria contra a tecnologia desvia as atenções das reais causas dos transtornos mentais da juventude.
Um estudo realizado pela Universidade de Dragvoll na Noruega vai no mesmo sentido, ou seja, confirmou cientificamente que não há uma relação direta entre o aumento da ansiedade e da depressão entre os mais jovens e os telemóveis. Se porventura alguém o quiser ler, aqui fica o link:
Mas se a raiz do problema não são os telemóveis, o que será? A resposta pelos vistos é simples, a raiz do problema não são efetivamente os telemóveis, mas sim o facto destes terem substituído as brincadeiras e os jogos ao ar livre como entretém. Na verdade, a raiz do problema está no facto da miudagem já não andar na rua como antigamente e estar permanentemente em espaços fechados. O uso excessivo de telemóveis é portanto uma consequência secundária e não a causa primeira.
Segundo um recente estudo, tão-somente 27% dos miúdos brincam agora na rua. Nessa mesma investigação, apurou-se que nas décadas de 70 e 80 do século XX, a percentagem de rapaziada que andava à solta era de 71%, sendo essa uma das principais razões, por que todos tinham muito menos problemas psico-emocionais quer enquanto jovens, quer depois, já em adultos.
Em síntese, provou-se cientificamente que andando a meninagem na rua, se diminui consideravelmente as percentagens das taxas de ansiedade e depressão. Abaixo o link do dito estudo:
Mas dito isto, por que razão os putos não andam atualmente pelas ruas? Mais uma vez, a resposta é simples, porque os seus pais não os deixam, têm receio que algum mal lhes possa acontecer.
A espanhola Imma Marin, uma outra estudiosa destes temas, diz-nos acerca disso o seguinte: “Na atualidade há uma sensação de perigo que, mesmo que este não seja real, faz com que as crianças usem pouco a rua. Retirámos as crianças das cidades para as metermos dentro de casas ou em urbanizações fechadas.”
Imma Marin é autora do livro “Jugar”, sendo que a esse propósito um jornal espanhol explicava que as ruas do país vizinho são agora muito mais seguras do que há trinta ou quarenta anos. Em Espanha os homicídios nas ruas diminuíram cerca de 30% desde esses tempos para cá, a mortalidade na via pública baixou uns 80% e os sequestros de menores é uma coisa raríssima. Mas mesmo assim sendo, a percepção é diferente, por consequência, as ruas esvaziaram-se de crianças. Se assim o é em Espanha, em Portugal e em muitos outros países é exatamente o mesmo, a rua mete medo, sem que se perceba exatamente porquê.
Pior do que isso, as urbanizações que se vão construindo, já são projetadas no pressuposto de que crianças e jovens não vão andar a brincar e a jogar na rua, mas sim em espaços encerrados, controlados e vigiados.
Mas não é só isso, o que se verifica é que a partir de finais da década de 90, praticamente todas as crianças estão envolvidas em atividades extracurriculares, sejam estas desportivas, de aprendizagem de línguas, de dança ou de música. Entre os mais novos, não há atualmente praticamente ninguém que não tenha os dias todos ocupados com, seja lá o que for, o importante para os pais é que nunca fiquem sozinhos e na rua muito menos.
Todas essas atividades de tempos livres, que de livres nada têm, não trazem grande coisa à criançada e à juventude. A rua é um mundo onde a qualquer momento pode aparecer gente diferente de nós que nos alarga horizontes e nos faz ver mais longe. Em casa, nas “atividades de tempos livres” e nas extracurriculares, o mais certo é que crianças e jovens só encontrem gente muito semelhante a si próprios, e que sejam todos muitos homogéneos, sendo a possibilidade de fazer amizades distintas mínima.
Em 2015, um instituto de pesquisa social dos Estados Unidos constatou que os pais americanos acreditavam que as crianças deviam ter pelo menos 10 anos de idade, para poderem brincar sozinhas na rua à beira das suas próprias casas. Para brincarem num parque público sem estarem acompanhadas por um adulto, só depois de fazerem 14 anos ou mais. Aqui fica a pesquisa:
Silvia Sánchez Serrano, professora da Universidade Complutense de Madrid é uma outra senhora preocupada com estes assuntos, diz-nos assim numa entrevista: “Somos muito medrosos com a rua, mas não tanto no espaço digital, que é onde os menores necessitam de maior acompanhamento. Dá a sensação de que a criança está tranquila diante de um écran e parece que está tudo controlado, mas há aí muito mais estímulos do que no mundo real.”
O ponto é que apesar dos perigos vindos do on-line serem muito mais reais do que os vindos da rua, é desta que os pais têm medo. As empresas digitais sabem-no e por isso proporcionam a crianças e jovens cada vez mais emocionantes e excitantes atividades virtuais, uns tempos depois começam os problemas mentais.
Não crescer na rua tem as suas consequências, havendo cada vez mais estudos que o demonstram para além daqueles que aqui já referimos. Todos demonstram nestas novas gerações que crianças e jovens são mais tímidos e têm maior aversão ao risco, do que tinham os seus pais ou avós. São também mais sérios e menos divertidos. Ao contrário dos seus antecessores são pouco dados a andar a noite inteira na borga, a bebedeiras e a promiscuidades, assim sendo, é quase inevitável que se sintam mal consigo mesmos, fiquem ansiosos e deprimidos.
Em resumo e para terminar, é fácil culpar os telemóveis pela pandemia psico-emocional da juventude e lançar um anátema ao pessoal que está lá longe em Silicon Valley, mas na realidade, isso é só uma parte do problema, pois a raiz próxima e primeira da situação está em casa, e a solução também está perto, ou seja, na rua.
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