Iniciamos hoje a nossa habitual série de verão que, como em anos transatos, se prolongará até ao primeiro dia de setembro. Neste ano da Graça do Senhor de 2024, o nosso tema é “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”.
Em cada um dos textos que durante as próximas semanas aqui publicaremos, aconselharemos a quem nos lê um livro, um autor, um filme, uma música, uma viagem ou outras coisas mais, desde que estas sejam realmente tristes e depressivas.
Não é que sejamos desmancha-prazeres, sádicos ou masoquistas, nada disso, é tão-somente um procedimento que nos permite restabelecer um saudável equilíbrio, ou seja, assegurar uma espécie de concordância dos contrários.
Tal como ao dia se segue a noite, à invernia o estio, e tal como existem o céu e a terra, a água e o fogo, também nós traremos à boa-disposição e à alegria próprias das férias e do mês de agosto, os seus naturais complementos, a tristeza e a má-disposição.
Estando toda a gente de férias, contente e feliz, brilhando o sol nos céus e podendo-se descansar e folgar, é mais do que aconselhável para que a harmonia universal exista, que haja umas quantas nuvens escuras no horizonte, que mesmo sendo distantes, pintem o ambiente com um leve tom melancólico, pois só assim, através dessa conjugação de opostos, o Kharma e o Dharma e o Yin e o Yang estarão em simetria e os astros equilibrados e alinhados.
É este o serviço que desinteressadamente nos propomos fornecer a quem nos lê, um pouco de tristeza e de má-disposição. Ninguém necessita de nos agradecer, pois fazemo-lo com todo o gosto.
Para concretizarmos esse nosso intento, nada melhor do que iniciarmos esta nossa travessia estival com Arthur Schopenhauer (1788-1860), que é provavelmente o maior pessimista que alguma vez existiu, mas mesmo que não o seja, estará certamente no Top-Ten, para não dizer no Top-Five.
Logo em início de carreira, apenas com vinte seis anos, Schopenhauer publicou “Ueber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde”, e logo pelo título se percebeu que o homem não estava para brincadeiras.
Nem sequer vale a pena perdermos tempo a tentar compreender as teorias defendidas por Schopenhauer nessa sua obra de juventude, o que na verdade aqui nos importa, é termos uma ideia genérica das suas concepções acerca da vida e do mundo.
Aqui fica uma citação, para que se perceba imediatamente qual era a cena dele, e que nós, pobres mortais, não andamos aqui a fazer nada. É uma passagem, que se pensarmos bem nela, deixa qualquer um tristonho e mal-disposto, vejamos: “…nenhum homem é feliz; luta a sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando a alcança, é apenas para sua desilusão.”
Ora bem, o que a este propósito nos ocorre dizer, é que Schopenhauer é capaz de ter uma certa razão. Ponhamos um exemplo atual e comum, há muito quem passe o ano inteiro ansiosamente à espera dos dias de felicidade proporcionados pelas férias de verão, todavia, uma vez estes chegados, nada corre como o previsto: o hotel não presta, as filas no aeroporto não acabam, os atrasos são grandes, está muito calor, a comida é intragável, é tudo caríssimo, os miúdos não se calam, há tanta gente na praia, não há lugar para se pôr a toalha, perde-se o passaporte, o serviço de bar é horrível, os miúdos não se calam, não há um táxi, que filas são estas, está tudo pela hora da morte, a comida nunca mais vem, que ventania, a água está fria, há sempre tanta gente por todo o lado, que maçada, que férias de inferno, que desilusão, quando é que voltamos para casa?
Em síntese, a descrição acima, poderia muito bem ser a exemplificação da citação de Schopenhauer que antes fizemos, mas segundo o filósofo, as desilusões não se dão tão-somente em momentos pontuais, como as férias de verão, e com certas pessoas em específico, muito pelo contrário, são uma condição inerente à vida de todo e qualquer ser humano, e isto qualquer que seja o tempo ou o lugar.
Cremos que se os nossos leitores perderem umas quantas horas a pensar nisto, e se o relacionarem com as suas próprias vidas, são bem capazes de começar a pressentir em si uma certa agonia e alguma melancolia.
Atentemos numa outra passagem do autor: “Se olharmos a vida nos seus pequenos detalhes, tudo parece imensamente ridículo. É como uma gota de água vista ao microscópio, uma só gota cheia de protozoários. Achamos muita graça ver como eles se agitam e lutam tanto entre si. Aqui, no curto período da vida humana, essa atividade febril produz um efeito cómico.”
O que Schopenhauer nos quer dizer, é que nós, seres humanos, somos equivalentes a uns meros protozoários, muita agitação, muita correria e muitos afazeres, como se realmente caminhássemos numa direção certa e tivéssemos um destino a cumprir, mas, bem vistas as coisas, face à imensidão da eternidade e ao universo infinito, tudo isso que fazemos é minúsculo e um tanto ou quanto ridículo.
Apesar de aparentemente a ideia Schopenhauer ser bastante pessimista, não deixa de ter o seu quê de relaxante e de despreocupante, pensarmos que façamos o que fizermos, “à la longue”, vai dar tudo ao mesmo. A conclusão é que não vale pena uma pessoa andar a maçar-se e com arrelias, pois feitas as contas, para o cosmos pouco mais somos do que uns reles protozoários.
Para quê estarmo-nos a estafar com idas de férias, quando o que temos pela frente é a desconhecida imensidão do firmamento infinito e a interminável amplidão de um futuro acerca do qual nada saberemos?
Apostamos que nenhum agente de viagens alguma vez vos fez esta pergunta, certo? Mas é mesmo para isto que este blog existe, ou seja, para pôr em cima da mesa as questões que verdadeiramente interessam.
Talvez o sermos como meros protozoários, possa à primeira vista ser uma ideia chocante, contudo, bem vistas as coisas, também tem algo de risível. Digamos que provoca uma espécie de riso cósmico e metafísico, equivalente ao sorriso que esboçamos quando lemos uma célebre frase de Woody Allen: “Se queres fazer rir Deus, conta-lhe os teus planos”.
Como já todos terão compreendido, Schopenhauer não tem grande fé nos desejos, vontades, anseios, aspirações e ambições de cada indivíduo em particular, nem que alguém possa encontrar a felicidade ou sequer fazer qualquer coisa de válido. Com efeito, o que são os grandes feitos humanos, quando o pano de fundo é a eternidade imensa e o espaço sideral? Não são nada, pois claro, são equivalentes aos dos protozoários.
Schopenhauer não acredita nos indivíduos, mas não crê igualmente no esforço coletivo, ou seja, não se fia nos desígnios das sociedades, ou até da humanidade como um todo.
Em certo sentido, poderia até dizer-se que a sua descrença e pessimismo relativamente à sociedade e à humanidade no geral, é ainda maior do que a que concerne aos indivíduos em específico. Nesse contexto, e segundo o que ele afirma, quem é mentalmente mais expedito, até evita misturas e prefere andar sozinho: “Um alto grau de inteligência tende a tornar um homem não social".
Tal frase, entre muitas outras que poderíamos citar do mesmo autor, é reveladora da profunda desconfiança que Schopenhauer tinha em relação à ação conjunta dos homens, e também ao que eventualmente poderia ganhar ou aprender através do convívio com os seus semelhantes. No seu entender, com os outros não se ganha nem se aprende nada.
Na verdade, no que ele cria era que as gentes não eram particularmente inteligentes, e que não valia grandemente a pena perder muito tempo a ouvi-las. Mesmo tendo sido um homem que escreveu abundantemente e que obteve um razoável sucesso entre os seus contemporâneos, ainda assim, não se eximiu de dizer o seguinte: “A pessoa que escreve para os tolos está certa de ter uma grande audiência.”
O certo é que atualmente Schopenhauer tem uma larga audiência e vende bem, se não livros, pelo menos bugigangas. Muitos dos seus ditos estão inscritos em t-shirts, em canecas, em pins, em pratos e até em tapetes para ratos de computador. Este mais abaixo está em inglês, mas não deixa por isso de ter o tom rígido e ríspido, que é tão próprio da língua alemã e de Schopenhauer em particular.
Se bem que estejamos conscientes que quem nos lê domina o inglês, ainda assim aqui fica a citação no original, pois talvez desse modo seja mais compreensível o seu profundo significado: “Was die Menschen gemeinhin als Schicksal bezeichnen, ist meistens ihre eigene Dulmheit”.
O mais que podemos dizer, é que quem fala assim não é gago. Na verdade, se calhar não é isso o mais que podemos dizer, temos de nos corrigir, pois atualmente a formulação correta e inclusiva é que “quem fala assim não tem uma desordem de fluência na fala”.
O pessimismo com que Schopenhauer encara o resto da humanidade é tão vasto, que não tem grande confiança em que haja assim tanta gente, que consiga distinguir alguém meramente talentoso, seja lá em que área for, de um verdadeiro génio. Razão pela qual, deixou bem explícita tal distinção: “Talento é quando um atirador atinge o alvo que os outros não conseguem. Génio é quando um atirador atinge o alvo que os outros não veem.”
Este tipo de distinções eram características do filósofo, que gostava de deixar bem claro quem era quem. Aqui vai mais uma: “Nem todos os loucos ou burros são fanáticos, mas todos os fanáticos são loucos ou burros.”
Schopenhauer acreditava que seguindo um certo método era possível ter-se sempre razão e convencer-se os outros disso mesmo, fossem quais fossem as circunstâncias. Todavia, reconhecia que existia um limite para a retórica e para as técnicas argumentativas.
Com efeito, aquele com quem se argumenta, mesmo não tendo razão, pode ser mais inteligente ou mais hábil com as palavras. Nesse caso, só há uma coisa a fazer, ser-se ofensivo e grosseiro. Em síntese, segundo Schopenhauer, quando não conseguimos provar a alguém que temos razão, o melhor é começarmos a insultar aquele com quem se discute ou conversa. É uma teoria.
Refira-se a esse propósito, que Schopenhauer escreveu dois livros que vale sempre a pena ler, um intitula-se “A Arte de ter sempre razão”, o segundo chama-se “A Arte de insultar”.
Pessimisticamente, o filósofo estabelece como sua doutrina a tese de que “Um insulto supera qualquer argumento”.
Como nós somos optimistas, temos como pressuposto o oposto, ou seja, que vale sempre a pena falar com outros, demonstrar-lhes porque estão errados, ou pelo menos equivocados, e expor-lhes as evidentes razões pelas quais nós é que estamos certos.
Apesar disso, e por via das dúvidas, temos sempre à mão “A Arte de insultar”, para o caso de apanharmos alguém mais teimoso, casmurro, atoleimado, apalermado ou que sofra de um Transtorno Desafiador Opositivo e nos contrarie.
Na verdade, com estes últimos, com os que sofrem de um Transtorno Desafiador Opositivo, não necessitamos da obra de Schopenhauer para nada, pois dizemos-lhes sempre que sim, que têm razão. Foi um conselho que o médico nos deu para não entrarmos em stress nem termos problemas nervosos, sobretudo nos períodos de férias, que tão necessários são para que nos restabeleçamos e encontremos o indispensável equilíbrio para enfrentarmos mais um ano de trabalho.
A propósito disso, não sabemos se já repararam nisso, mas faltam só umas poucas semanas e agosto termina e regressa tudo à dura labuta. Schopenhauer falava muito da brevidade do tempo, como era um pessimista, referia-se à curtíssima duração da vida humana, como nós somos otimistas e gostamos de ter pensamentos positivos, só chamamos a atenção para o facto de que setembro está já a chegar.
Enquanto esperam, podem dedicar-se à leitura de “A Arte de insultar”.
Enfim, se é bem verdade que para Schopenhauer "A vida balança como um pêndulo para trás e para a frente entre a dor e o tédio", não é menos certo que o homem acreditava piamente que “O senso de humor é a única qualidade divina do homem".
Feitas as contas, apesar de ser um pessimista de primeira e crer que qualquer um de nós, seja em agosto, seja no resto do ano, só tem razões para andar tristonho e mal-disposto, ainda assim, o filósofo acreditava no poder redentor do riso, valha-nos isso.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o segundo capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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