Pelo título, talvez haja quem ache, que vamos dedicar-nos a discorrer sobre o próximo desafio da seleção portuguesa de futebol e também acerca da equipa adversária, a seleção francesa, mas não, vamos antes falar de teatro.
Toda a gente fala do Ronaldo, mas quase ninguém fala do Tiago. No entanto, ele é um dos mais importantes portugueses do momento. Aquele a quem nos referimos, é ao Tiago Rodrigues, autor e encenador teatral, e atual diretor do Festival de Avignon.
É natural que haja muito quem em Portugal não saiba o que é o Festival de Avignon e muito menos quem é o Tiago Rodrigues. Como haveriam de o saber, se nos noticiários, os nossos principais órgãos de comunicação social, ou seja, os jornais e as televisões, se entretém todos os santos dias do ano ou a replicar as notícias da imprensa internacional, ou então, a contar-nos as pobres e repetidas tricas e intrigas da política caseira?
Fora isso, nos noticiários de cá, o que mais há é futebol, comentários a qualquer hora, e agora, por altura do verão, extensas reportagens sobre os muitos e diversos festivais musicais existentes por todo o território nacional.
Para os noticiários das TV’s e de uns quantos jornais de Portugal, cultura é sinónimo de Rock in Rio, Nos Alive, Super Bock Super Rock, Meo Arena, Vodafone Paredes de Coura e por aí afora. Lamentamos, mas não.
Mesmo que em todos esses eventos haja música, o que esses festivais de verão principalmente são não é cultura, mas sim grandes e bem sucedidas ações promocionais e publicitárias e, por conseguinte, um negócio bastante lucrativo.
Não estamos sozinhos nesta nossa consideração, precisamente ao dia de hoje, no jornal espanhol El Pais, há um importante músico galego, Iván Ferreiro, que se lamenta do mesmo e nos diz assim: “Los que organizan los festivales son los mismos que los de los pisos turísticos, se quedan con todo poco a poco”.
O que Iván na verdade nos quer dizer, é precisamente aquilo que nós já dissemos, que de aquilo que falamos quando falamos de festivais é de dinheiro, não de cultura. Ainda assim, aqui vos deixamos a entrevista completa do homem, só para o caso de quererem ir averiguar as suas opiniões:
Se querem que vos digamos, nós, quem aqui vos escreve, jamais na vida até ao dia de hoje tínhamos ouvido falar deste rapaz, o tal Iván, que aliás já tem 54 anos de idade, assim sendo, por mera curiosidade, fomos ver qual era a cena dele.
Na realidade não achámos que as suas canções fossem lá essas coisas, no entanto, e apesar disso, a mensagem pareceu-nos válida e sincera. Em qualquer dos casos, aqui fica uma cantilena do dito Iván Ferreiro. Quem quiser que a ouça e julgue por si mesmo do seu valor:
Deixemos então o Iván e voltemos ao nosso assunto. Na verdade, nada temos contra os festivais de verão, pois todos temos de ganhar a vida e ter uns tostões para as nossas precisões. Uns ganham-nos a organizar os ditos festivais, outros a neles ir tocar umas melodias, e outros ainda a promoverem os seus produtos, até aí tudo muito bem. Na realidade, a única coisa que nos incomoda, é que os noticiários das TV’s e uns tantos jornais nacionais se limitem a divulgar e a apoiar imensamente tais eventos, e relativamente a todas as outras atividades culturais, pouco ou mesmo nada digam.
Como nós não somos um canal de TV nem um jornal, podemos bem informar-vos, que há umas quantas décadas, que no sul de França, e mais concretamente em Avignon, todos os anos há um festival de teatro, que é certamente o mais importante do mundo inteiro.
É lá que anualmente são apresentadas as mais relevantes produções teatrais de todos os continentes. Foi igualmente lá, que desde meados do século XX, aconteceram alguns dos momentos mais significativos do teatro mundial dos últimos setenta e tal anos. Enfim, Avignon é uma já muito longa história…
O Festival de Avignon é a meca internacional do teatro, o “nec plus ultra”, em síntese, não há outro igual. Consequentemente, por nos anos mais recentes ser um português quem está à frente dos seus destinos, ou seja, o Tiago Rodrigues, tal deveria constituir um motivo para que os noticiários nacionais das TV’s e uns jornais lhe dessem alguma atenção, contudo não, quase nada.
Só para vos darmos um exemplo do que é Avignon, contamos-vos que em 1985 foi encenada uma peça cuja duração completa era de onze horas (com intervalo). A peça baseava-se no clássico indiano Mahabharata, um texto equivalente ao da Bíblia, isto no sentido em que nos conta a origem do universo e a história de todos os deuses que existem desde a criação do mundo. Mahabharata é o texto fundador da religião e da cultura hindu, tem 74 000 versos e terá sido escrito entre os séculos IV e III a.C.
Já agora, e só por curiosidade, calcula-se que na religião haja cerca 330 milhões de divindades (não é engano, é mesmo esse o número). Abaixo uma imagem de um detalhe de um templo na Índia, só para terem uma leve ideia daquilo de que vos falamos.
Como já calcularão, levar a palco uma encenação de Mahabharata, aparenta ser um projeto completamente louco, no entanto, foi isso mesmo o que sucedeu no Festival de Avignon.
Como todos adivinharão, o sucesso foi estrondoso, e durante anos essa produção de Mahabharata percorreu os palcos, tendo inclusivamente vindo a Portugal. É certo que houve sempre quem não aguentasse tantas horas seguidas e se deixasse dormir, mas isso nada retira à audácia e à qualidade do projeto.
Seja como for, foi feito o filme que regista todo esse imenso épico, cuja extensão é tão-somente de nove horas. Aqui vos deixamos uma pequeno excerto, de apenas seis minutos, com o mais significativo episódio de toda a cultura e civilização hindu. Alguém, Yudisthiira, responde às mais profundas questões que uma divindade lhe põe. O mesmo seria dizer, que nesta passagem, estão as respostas a todos os grandes enigmas da vida:
Falámos de Mahabharata, o livro sagrado do hinduísmo, só para que se entenda o tipo de desafios teatrais, a que o Festival de Avignon sempre se propôs. Outros exemplos haveria, no entanto, nós gostamos bastante deste. Mas dito isto, concentremo-nos agora, no Português Tiago Rodrigues.
Antes de vencer em França e ocupar o cargo de diretor do Festival de Avignon. Tiago Rodrigues andou por cá. Ocupou o cargo de diretor do Teatro Nacional D. Maria II, mas isso foi só após percorrer o país inteiro com as suas peças, que foram encenadas nos mais modestas salas que existem por este país. Uma coisa é certa, nunca teve as multidões do Rock in Rio, do Nos Alive, do Super Bock Super Rock, do Meo Arena ou do Vodafone Paredes de Coura.
Todavia, que importa isso? O que teve sempre foi gente, que independentemente da sua condição social ou grau de escolaridade, adoraram os seus textos e encenações. O melhor exemplo disso mesmo, é By Heart.
Nessa peça, Tiago Rodrigues, que está em palco, ensina um poema a dez pessoas escolhidas ao calhas do público. Essas dez pessoas não fariam ideia que poema iam aprender de cor. Enquanto os ensina, Tiago Rodrigues vai relatando histórias sobre a sua avó quase cega e analfabeta, de seu nome Cândida.
A isso juntam-se histórias sobre escritores e personagens, que também eles tiveram de decorar poemas e textos, porque estes estavam proibidos nos seus países. Tal aconteceu, por exemplo, com o russo Boris Pasternak, prémio Nobel da literatura de 1958, que na época da União Soviética, outro remédio não teve, do que decorar os seus textos e poemas, pois se os passasse ao papel, tudo poderia correr mal.
Como um dia disse o falecido professor de literatura George Steiner, “Assim que dez pessoas sabem um poema de cor, não há nada que o KGB, a CIA ou a Gestapo possam fazer. Esse poema vai sobreviver”.
Em certo sentido, “By Heart”, é uma peça de resistência. Resistir é o que Tiago Rodrigues está agora a fazer em França. Como atual diretor do Festival de Avignon, anunciou ao mundo que iria fazer frente ao populismo gaulês. Notícia essa que vimos nos melhores jornais do mundo, como por exemplo, no Le Figaro…
…e também no El Pais:
E pronto, o ponto está feito, Tiago é um português que se bate contra uma certa França. A ver vamos, qual será o resultado final.
Comentários
Enviar um comentário