Se tivéssemos responsabilidades governativas no Ministério da Educação, uma coisa que imediatamente fazíamos, era criarmos uma disciplina para ensinar aos alunos desde a mais tenra idade, algumas regras básicas sobre como fazer humor.
Quando D. Manuel I assinou o édito de expulsão dos judeus de Portugal, não só a nossa nobre nação perdeu os seus mais cultos e inteligentes habitantes, como ficou também privada de quem soubesse fazer uma laracha, um chiste ou uma chalaça com alguma graça.
É um erro histórico que urgia corrigir, sob pena de estarmos permanentemente a ouvir supostas piadas com bananas, chouriços, repolhos e outras coisas assim. Que por exemplo, um senhor como Fernando Rocha, entre outros exemplos possíveis, tenha sucesso e ganhe a vida como humorista, é algo que só nos pode espantar, dada a sua completa e total falta da habilidade para tal função.
Que alguém diga alarvidades e barbaridades à mesa do café, na tasca ou na feira e toda a gente em redor se ria, tal não faz com que essa pessoa esteja habilitada para ser humorista. É o equivalente a que o Fernando Mendes, o do Preço Certo, fosse ocupar o cargo de Ministro da Economia ou das Finanças, por há longo tempo lidar com números e com os valores de venda ao consumidor de muitos e diversos bens e produtos.
A expulsão dos judeus foi uma autêntica tragédia e um gigantesco erro, que como é evidente, não é com os nossos textos que se poderá reparar, mas ainda assim, porque não fazermos aqui umas leves deambulações sobre o assunto, e mais especificamente, sobre a cultura e o humor judaico?
Entre as gentes que mais admiramos, muitos são de origem judaica, como por exemplo, o inventor da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939). Sem ele, certamente que hoje em dia não nos saberíamos orientar na vida, pois atualmente já ninguém passa bem e sabe quem é, sem uma pequena ansiedade, um qualquer complexo ou mesmo um breve trauma.
Também o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) era de origem judaica, e teve a desmedida ambição de querer acabar para sempre com a filosofia, pretendendo para isso, resolver de uma vez por todas as intricadas questões metafísicas, que desde há muito intrigam a humanidade.
Acabou por perceber, que muitas dessas questões são irresolúveis, tendo concluído o primeiro e derradeiro livro por si publicado, com a imortal frase “acerca daquilo de que não se pode falar, mais vale ficar calado”.
De origem judaica é ainda Franz Kafka (1883-1924), que escreveu “O Processo” e “A Metamorfose”, obras do início do século XX, com as quais o autor criou a estrutura imaginária que ainda hoje inspira os pesadelos e as distopias ficcionais, que povoam inúmeros filmes, séries e obras literárias.
Por fim, destaquemos igualmente Marcel Proust (1871-1922), que após num fim de tarde ter dado uma dentada numa madalena com que acompanhava um chá, se lembrou da sua meninice e, em consequência disso, nos anos seguintes pôs-se a redigir mais de duas mil e quinhentas páginas, nelas narrando a sua vida inteira até ao mais ínfimo pormenor. Uma imensa empreitada literária, cujo título é “Em busca do tempo perdido”.
Mas não é só na literatura, que há gente admirável de origem judaica, temos também pintores como Marc Chagall ou Mark Rothko, músicos como o compositor e maestro Leonard Bernstein, e aquele que muitos consideram ser o maior pianista de sempre, Arthur Rubinstein. Aqui vos deixamos uma sua interpretação de “La polonaise” de Chopin:
O que praticamente ninguém sabe, é que o poeta português Fernando Pessoa, também tem ascendência judaica. Com efeito, Pessoa descendia de cristãos-novos, ou seja, de judeus que foram forçados pela Inquisição a converterem-se ao cristianismo.
Há alguns estudos sobre a influência judaica na sua poesia, mas por cá, poucos, é um assunto do qual em Portugal mal se fala. Curiosamente no Brasil, há bastante quem fale e estude essa temática. Aqui fica um exemplo:
Já agora, e a propósito de falarmos no Brasil, o outro grande poeta de língua portuguesa do século XX, Carlos Drummond de Andrade, tinha também ele origens judaicas. De Drummond de Andrade há muitos poemas geniais, contudo, queremos aqui citar um, não apenas pela sua genialidade, mas sobretudo pela sua leveza e comicidade, “Quadrilha”:
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Se continuarmos pelo Brasil, ficamos também a saber, que Tom Jobim é igualmente descendente de judeus. Um claro sintoma disso mesmo, é a propensão que tinha para se fazer engraçado, coisa que no nosso entender, é uma das mais marcantes características da cultura judaica.
Atentemos por exemplo, neste excerto de uma entrevista/reportagem sobre a vida e obra de Jobim: “Moleque de praia, adepto de esportes, homem de enorme beleza física, aberto à natureza e à vida, sedento de livros e de conhecimento, safo, excêntrico, bom de copo, inestancavelmente criativo e com um senso de humor ideal para a grande especialidade de Ipanema: a conversa fiada. Tom Jobim gostava de dizer: Você já viu que 99% das coisas que a gente fala não têm a menor importância? Tardes de conversa fiada. Cerveja sem fim. Bebo desde os 15 anos de idade 30 chopes por dia. Música solar, pele tostada ao sol. Cada canção que fiz foi uma moça que não comi.”
O que na verdade podemos dizer de todos estes personagens que aqui referimos, é que de algum modo, são todos altamente talentosos e criativos, e também herdeiros de uma cultura que aprecia o humor fino e requintado, ainda que, com o seu quê de estranho e inaudito.
Vejamos a esse propósito, os primeiros quatro personagens que no início deste texto referimos. O primeiro, Freud, tinha um consultório médico em Viena, onde recebia senhoras de meia-idade e também senhores, mas sobretudo as primeiras. Na Viena de então, era vulgar que as senhoras de uma certa condição social andassem com achaques, maçadas e arreliadas com as suas existências, em resumo, entediavam-se e para passarem o tempo, iam de quando em vez a uma consulta.
Nisto, Freud teve uma ideia com o seu quê de cómico, que consistia no seguinte: “E se eu pusesse aqui ao canto do consultório um divã e as pessoas nele se deitassem e falassem, falassem, falassem, sobre tudo o que as atormenta e lhes vai na alma”. E pronto, com isto, inventou a psicanálise.
Mas Sigmund fez mais, deu um nome fino a todos os tormentos, aborrecimentos e arrelias que as gentes sentiam. Não lhes deu um nome qualquer, pegou em figuras mitológicas da antiguidade clássica como Édipo, Narciso e outros quanto mais, e batizou os complexos que encontrou, com essas distintas e ilustres designações. Posto isto, não há como negar, que o homem tinha graça e um fino sentido de humor.
Se em certo sentido Freud era um humorista, Ludwig Wittgenstein, o segundo personagem que no início referimos, não lhe ficava atrás. O filósofo, logo para início de carreira, anunciou ao mundo que iria acabar de vez com a filosofia, assim mesmo sem tirar nem pôr, à campeão.
O seu intento era claro, segundo ele todos os problemas filosóficos decorriam de mal-entendidos gramaticais, assim sendo, aplicando-se a lógica aos textos de Platão, de Aristóteles, de Descartes, de Kant e aos de todos os outros que se dedicaram à filosofia, descobrir-se-ia que afinal todas as teorias advinham tão-somente de se ter percebido incorretamente o sentido gramatical de algumas palavras, como por exemplo, o termo "Ser".
Para Wittgenstein, a eterna pergunta “ser ou não ser” não era uma verdadeira questão, era pura e simplesmente uma confusão gramatical que se fazia entre a palavra Ser com a função de verbo, e a mesma palavra com a função de substantivo.
Como é evidente, o seu intento esbarrou de frente com aquelas questões metafísicas e espirituais, que desde sempre intrigam a humanidade, “quem somos, donde vimos e para onde vamos”. Vai daí Ludwig não teve com meias medidas, e afirmou solenemente, que acerca daquilo de que não se pode falar, ou seja, tudo aquilo que ele com as suas análises lógico-gramaticais não conseguiu deslindar, se deve permanecer em silêncio.
É inegável que a conclusão a que Wittgenstein chegou tem uma certa piada, sendo por isso reveladora do seu peculiar senso de humor.
Sigamos para Kafka, o terceiro referido no início deste texto, que por muito inverosímil que vos possa parecer, também gostava de se fazer engraçado. No seu célebre livro “O Processo”, Kafka descreve um sistema inumano e insensível, com procedimentos burocráticos incompreensíveis e injustos, que aplica as mais terríveis penas e condenações a pobres inocentes.
Foram muitos os que viram nessa obra uma profecia dos regimes totalitários que povoaram o século XX. Terá sido provavelmente por isso, que o adjetivo kafkiano entrou na linguagem comum por todos os lados do mundo.
Contudo, se lermos os diários de Kafka, vamos constatar que o homem era um brincalhão, sendo que, as distopias que inventou e os pesadelos que criou, não tinham a intenção de ser proféticos, mas sim e somente o de pregar um enorme susto a quem os lesse. Em síntese, Kafka é mais um para a coleção, a daqueles cujo humor era muito particular.
Franz Kafka escreveu no seu diário, em 2 de agosto de 1914, o seguinte: “Hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde fui à piscina.” Estávamos então nos alvores da Primeira Grande Guerra, na qual muitos milhões haveriam de tombar, no entanto, a Kafka nesse grave momento, só lhe ocorreu escrever uma gracinha, ou seja, que à tarde ia à piscina.
Aqui fica uma explicação, uma Ted Lesson, para todos os que queiram saber o profundo significado do adjetivo kafkiano:
O quarto e último personagem que referimos no início, foi Marcel Proust, o que trincou uma madalena e se pôs a escrever sobre a sua vida toda de fio a pavio. A narrativa de “Em busca do tempo perdido” resume-se nuns segundos, em pequenino, antes de adormecer, Proust falava muito ora com a mãe, ora com a avó, que todos os dias o iam aconchegar no seu leito. Já em adulto, ia a festas galantes e falava bastante com toda a gente. Teve uns quantos amores, mas como era muito dado a ciúmes, as relações acabavam sempre em complicações irresolúveis. Para além disso, Proust passava muito tempo de cama, porque andava frequentemente adoentado. E pronto, acabou, está feito o resumo.
Dito isto, é preciso ser-se mesmo um grande pândego, para se crer que uma vida relativamente comum, e sem acontecimentos particularmente fascinantes, necessita de mais de duas mil e quinhentas páginas para ser relatada. Ainda assim, foi isso mesmo que Proust fez, sendo que o resultado final é na verdade um clássico.
Ora bem, aqui chegados, é inequívoco que as gentes de origem judaica possuem um qualquer gene humorístico, ainda que o tipo de humor, que daí resulta, seja muito específico e singular.
Há uns anos, a revista "Time" fez uma pesquisa, segundo a qual, os judeus totalizavam 2% da população dos Estados Unidos, mas são uns incríveis 80% de todos os comediantes profissionais desse país.
Ao longo da história muitos são os nomes de comediantes judeus que se poderia referir, aqui ficam apenas alguns dos mais conhecidos: Groucho Marx, Jerry Lewis, Woody Allen, Billy Crystal, Jerry Seinfeld, Adam Sandler e Jon Stewart.
A título de exemplo do refinado humor judaico, vejamos alguns ditos que Groucho Marx foi deixando pelo caminho em entrevistas, conferências e noutras ocasiões:
- A filosofia é a ciência que nos ensina a ser infelizes da maneira mais inteligente.
- Estes são os meus princípios, se não gostarem deles, tenho outros!
- Preferem acreditar em mim ou nos vossos próprios olhos?
- Eu nunca me esqueço de um rosto, mas no seu caso, ficarei feliz em abrir uma excepção.
- Eu bebo para fazer as outras pessoas interessantes.
- É melhor ficar calado e parecer um idiota, do que falar e acabar com as dúvidas.
Woody Allen, é um outro bom exemplo de como se fazer bom humor:
- A melhor coisa que podes ouvir na vida não é ‘amo-te’, mas sim ‘é benigno’.
- A vantagem de ser inteligente é que se pode fingir ser um idiota, enquanto o contrário é impossível.
- O homem explora o homem e por vezes é o contrário.
- Só há um tipo de amor que dura, o não correspondido.
- Há casamentos que acabam bem, há outros que duram para sempre.
- O meu único arrependimento na vida é não ser outra pessoa.
Poderíamos continuar por aqui afora a elencar muitos outros exemplos, todavia, neste momento o que nos interessa é dar-vos uma razão, para esta peculiaridade humorística tão própria da cultura judaica.
A primeira explicação para tal foi dada por Sigmund Freud: "O humor judaico é um mecanismo de defesa, uma forma de agressão sublimada que permite às vítimas de perseguição lidar com essa sua condição." A segunda explicação é de Mel Brooks, ator e realizador norte-americano, que vai mais ou menos no mesmo sentido: "Se eles se estão a rir, então não conseguem espancar-te até à morte!"
No fundo, Freud, Wittgenstein, Kafka, Proust, Groucho Marx, Woody Allen e tantos outros, o mais que fizeram foi arranjar um modo de lidar com os grandes dramas e tragédias da vida, assim como com as chatices e arrelias, com os temores e pesadelos, e ainda com as dúvidas existenciais e filosóficas de uma forma mais leve, ganhando a necessária distância para com tudo poder fazer uma graçola.
Por tudo o que fica dito, não era mal visto que nas escolas houvesse uma disciplina dedicada ao humor. As vantagens eram imensas, mas salientemos duas delas. A primeira é evidente, as piadas e graças que ouviríamos nas tascas, feiras e Tv´s seriam mais requintadas. A segunda é que, dado o nosso amado país ser um dos maiores consumidores mundiais de ansiolíticos, talvez assim muita gente aprendesse a rir-se de si e andasse mais feliz.
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