A imagem é uma vista de Delft, do holandês Vermeer. Bem sabemos que atualmente, a Holanda tem como designação oficial, o triste nome de Países Baixos. Eles lá sabem da vida deles, mas a nós parece-nos mal. Holanda era um lindo nome, Países Baixos nem sequer é assim-assim, é mesmo mau.
Claro está que Holanda é só uma das múltiplas províncias do país neerlandês, mas dito isto, o que se ganhou em termos de rigor geográfico e administrativo com o nome Países Baixos, perdeu-se claramente em termos poéticos e estéticos.
Imaginem que esse enorme cantor, letrista e compositor que é Chico Buarque de Holanda (ou de Hollanda) se passava a chamar Chico Buarque dos Países Baixos! Que tremenda vergonha seria, com um nome tão desengraçado, jamais o homem faria a menor música ou poesia!
O Chico Buarque de Holanda é bem visto para esta nossa conversa, isto porque poucos, para não dizer nenhum, saberão tão bem como ele, que as palavras são coisas com as quais se brinca, não são coisas sagradas para se levarem mesmo a sério.
Palavras carrancudas, sérias e cheias de rigor administrativo são para as repartições, para os notários, para as secretarias e para os ministérios, o mesmo é dizer, para as burocracias. Palavras graves também se usam nos funerais. Palavras que passam a vida a brincar, essas sim, são para a vida e para todos os dias. Também se usam nas melodias e poesias.
Abaixo deixamos-vos uma cena filmada num ensaio de bastidores, na qual Nara Leão e Chico Buarque de Holanda improvisam alegremente a partir da canção “Serás o meu amor”.
Como verificarão ao vê-la e escutá-la, as palavras soltam-se, tropeçam, levantam-se, voam, enchem-se de graça e de encanto, e tudo isto simplesmente enquanto brincam.
A letra da canção faz referência a uma série de métodos e sistemas que as gentes usam para ter sérias certezas e controlar e prever o futuro: a astrologia (consta nos astros, nos signos, nos búzios), a religião (tá lá no evangelho), a ciência (eu li num tratado) e até mesmo a tecnologia (está computado nos dados oficiais).
No entanto, o eu-lírico ri-se, desdenha e brinca do que todos essas sisudas esquematizações possam dizer: “danem-se os astros (os autos), os signos (os dogmas), os búzios (as bulas), anúncios (tratados), ciganas (projetos), profetas (sinopses), espelhos (conselhos)” e por fim também, “se dane o evangelho e todos os orixás”.
Em resumo, o que a canção nos diz, é que a vida haveria de ser assim, ou seja, sem ser feita de palavras sérias que tudo querem controlar e prever, mas sim de outras mais brincalhonas, como por exemplo desfrutar, galhofar, folgar e gracejar.
Abaixo uma obra do pintor holandês Frans Hals (1585-1666), que retrata um feliz e divertido moço tocador de alaúde.
Quem já passou pelos grandes museus dedicados à arte antiga, como o Louvre, o Prado ou o Hermitage, sabe que neles há extensas salas dedicadas à pintura das mais poderosas nações europeias, que são simultaneamente as com maior tradição histórica e artística: Itália, França, Inglaterra, Alemanha e Espanha. Todavia, nesses mesmos museus há sempre também, uma extensa coleção dedicada a um pequeno país.
Não é Portugal, claro está, nem a Suíça, a Áustria, o Luxemburgo, a Dinamarca ou a Irlanda, esse país é a Holanda. Devido a um invulgar fenómeno cultural, a pintura holandesa equipara-se à dos maiores países europeus.
Tal deve-se ao facto de há uns séculos a Holanda se ter inventado a si própria, roubando terras ao mar, levantando diques protetores, estabelecendo portos marítimos, abrindo canais que trouxessem água a todos os lugares em que esta era necessária para o cultivo e para as pastagens, e construindo moinhos produtores de pão .
Por se ter erguido da terra contrariando o mar, como uma nação próspera e pelas mãos dos seus cidadãos, a Holanda tem uma distinta visão do mundo, uma mais feliz.
Tendo-se levantado e inventado a si mesma, apesar das adversidades da natureza que a circundava, a Holanda e os seus habitantes desde sempre têm uma noção feliz de si próprios e do seu país. Concebem-se como gente que consegue fazer e é capaz de concretizar o que ambiciona e anseia. Para os holandeses não há destinos pré-determinados ou escritos, o mesmo é dizer, que “se dane o evangelho e todos os orixás”.
Na imagem mais abaixo, vemos uma obra do século XVII, do pintor holandês Pieter Bout, que faz parte da coleção do Museu Medeiros de Almeida em Lisboa. Nela observamos uma enorme quantidade de gente, que se diverte a brincar no gelo.
Poder-se-ia pensar que é uma imagem pictórica simples e inocente, da qual pouco mais há para dizer. Porém, o que nós sabemos, é que ao longo da História da Arte, o inverno foi continuamente representado como uma estação severa, plena de dificuldades, e não raras vezes associada ao frio que se sente, e inclusivamente, à penúria e à fome.
A verdade é que os holandeses são os primeiros a representar o tempo de inverno como podendo ser alegre, divertido e com múltiplos contentamentos. Na verdade desafiam a natureza e fazem mesmo desaparecer a rudeza do ambiente da época mais sombria do ano.
As personagens divertem-se a patinar, passeiam-se em trenós puxados por cavalos e claro, não faltam também as inevitáveis e engraçadas quedas. Em síntese, nesta imagem aparentemente singela, está bem patente a felicidade e a alegria de uma nação, que sente ter-se inventado a si própria, e que portanto, crê tudo o mais ser capaz de fazer, até mesmo o calendário transformar, e o ríspido inverno aparecer como palco para diversas brincadeiras.
Chico Buarque de Holanda cantava assim na canção da qual já antes falámos: “E se o calendário nos contrariar…”
Pode-se muito bem afirmar, que a paisagem é um género de pintura, que foi inventada pelos holandeses há uns séculos. Antes pintavam-se os santos, cenas históricas ou mitológicas e retratos, quando muito, a paisagem era um pano de fundo, com os holandeses a paisagem passou a ser o tema e o centro da cena.
As imagens paisagísticas, em certo sentido, eram mais uma demonstração da importância que os holandeses atribuíam ao país que tinha nascido do seu esforço e dedicação. Eram uma outra evidência, de que tinham sido eles a erguer a sua nação, pois onde antes só havia lodo e pântanos, e terrenos constantemente invadidos pelas águas do mar, passou depois a existir uma terra fértil, pastagens, canais, moinhos, portos e prósperas cidades.
Um dos mais célebres pintores holandeses é Vermeer (1932-1675). São da sua autoria quadros tão conhecidos como “Rapariga com brinco de pérola”, “A leiteira” ou “Rapariga a ler uma carta à janela”. A luz que emana das suas obras é quente e íntima e envolve como nenhuma outra os pequenos gestos do quotidiano.
Também isso é uma característica da Holanda, que não é tanto de celebrar grandes e heróicos feitos, mas sim a beleza e a felicidade das coisas simples do dia a dia: um olhar adornado por um brinco, o leite que se verte de um jarro ou as palavras lidas numa carta.
Há muito quem pense, que a atmosfera e o ambiente dos quadros de Vermeer estão envoltos em melancolia, mas não, ou pelo menos, só um pouco. Na verdade, o que parece ser melancólico, é tão-somente uma pausa, um breve momento de calma e tranquilidade. As personagens de Vermeer, sendo da Holanda, inventam-se a si mesmas, e divertem-se e brincam sempre que podem, e de muitas e diversas maneiras.
Se olharmos para o quadro abaixo, também ele de Vermeer, vemos que nesta pintura há risos, rostos alegres, copos de vinho e mãos que vão deslizando por ali afora. No fundo, esta pintura demonstra que a melancolia que por vezes se entrevê nas imagens de Vermeer, é meramente passageira, pois na Holanda estão constantemente a inventar modos de andar na folia.
Terminamos com um último quadro de Vermeer. Ao fundo, pendurado na parede, observamos uma paisagem marítima, que nos relembra de como a Holanda nasceu vencendo o mar. Atrás da figura principal, uma elegante e nobre lareira, com colunas clássicas e tudo, que nos deixa adivinhar, que o inverno a ninguém mete medo.
Há também uma criada, que traz à sua senhora, uma carta de um rapaz conhecido (ou desconhecido).
Para quem sabe de iconologia, a ciência que estuda o significado simbólico das imagens, o que se diz nesta pintura é nítido. A senhora tem no regaço um alaúde, que também se chama lute, e que em neerlandês é luit, palavra que nessa mesma língua, é igualmente usada para em calão designar a vagina. Mesmo à frente no quadro, no primeiro plano, há uns chinelos abandonados no chão, que na realidade são também um símbolo de “brincadeira”.
Se nos pusermos a imaginar quais as palavras escritas na carta, dificilmente diríamos que seriam palavras sérias, e ainda menos carrancudas e cheias de rigor administrativo ou de qualquer outro. O mais certo é serem palavras livres, lúdicas e brincalhonas. Na verdade, o que gostamos mesmo é de imaginar, que na carta estão as palavras de uma canção de Chico Buarque de Holanda.
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