Houve uma época em que todos fomos adolescentes, no entanto, parece já ter sido há bastante tempo. Mas e se, a passagem dos anos não fosse afinal mais que uma mera ilusão, e por dentro fôssemos tal e qual como antes éramos. Ou seja, se no nosso interior, continuássemos “teenagers” para sempre.
É certo que com a vida adulta vêm as responsabilidades e os afazeres, e por assim ser, quem quer que amadureça, e seja consciente e sensato, faz o que tem a fazer e comporta-se conforme a sua idade. Contudo, a hipótese que aqui colocamos é e se, mesmo as gentes mais adultas, responsáveis e sensatas, ainda assim, tivessem escondida no seu íntimo uma eterna alma de adolescente, à espera de uma qualquer oportunidade para saltar cá para fora.
Este preâmbulo parece nada ter a ver com o assunto que se segue, mas tem, razão pela qual vos vamos falar da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, que ontem decorreu.
É consensual entre opinadores, comentaristas, jornalistas e público em geral, que nunca houve cerimónia de abertura das olimpíadas tão inovadora como a de ontem. Ao invés dos já muito batidos desfiles das delegações oficiais de cada nação, com atletas e dirigentes dando a volta ao estádio da cidade anfitriã, carregando a respetiva bandeira nacional na mão, o que em Paris se viu foi uma cena diferente, tendo o Sena como cenário.
Retirar a cerimónia oficial de abertura dos jogos de dentro de um estádio e trazê-la para a rua e para o rio foi um ato inovador, que nunca ninguém antes se tinha lembrado de fazer.
Um estádio é um espaço circunscrito, onde quase tudo pode ser controlado de modo a decorrer conforme o planeado, na rua, no rio, há acasos, imponderáveis, surpresas, por consequência, nem tudo é previsível. Ou seja, por muitos planos que haja, fora do estádio, o risco de que algo falhe ou corra mal é considerável.
É um risco tão grande, como aquele que alguém já maduro ou com uma certa idade, tire cá para fora a sua alma de adolescente e se lembre de começar a agir segundo inovadores planos pouco ou nada experimentados, abandonando assim os seguros hábitos há muito estabelecidos e consolidados.
Et voilà, sabendo-se tudo isto, ontem em Paris optou-se pelo que era arriscado e não pelo que era seguro, c’est fou.
Na verdade, para assim o terem feito, foi preciso os organizadores estarem embebidos de um espírito juvenil, ou seja, possuírem em si a embriaguez, a frescura e a audácia para agirem de um modo original e rebelde, e recusarem-se a fazer como sempre se fez. Os que conceberam a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris comportaram-se na realidade como se fossem uns autênticos adolescentes.
Como é evidente, quando aqui nos referimos a adolescentes, não estamos a pensar em muitos dos atuais, desses que pouco mais fazem do que perder o seu tempo nos smartphones e andam deprimidos e ansiosos, estamos sim a falar dos adolescentes de outras eras, daqueles que viviam a juventude de um modo sonhador e entusiástico, e que mesmo tendo um elevado grau de inconsciência e inconsistência, ainda assim não receavam arriscar novidades, nem tinham temor de caminhar em diante com os cabelos soltos ao vento.
A notícia aqui é a de que ontem Paris esteve à altura da sua mitologia, a de ser uma cidade eternamente jovial, atrevida, vivaz e juvenil. Como um dia escreveu Stefan Zweig (1881-1942), autor do célebre livro “O Mundo de Ontem” (que aqui citamos em francês): “Paris est la ville de l'éternelle jeunesse. Les étudiants côtoient les écrivains, les peintres, les ouvriers, les bourgeois, sans frontière de classes, de revenus et tout cela dans une atmosphère joyeuse.”
Mas a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos não se limitou a sair do estádio e a ir para a rua e para o rio, o devaneio foi ainda mais longe. Então não é que decidiram convidar para o espetáculo uma banda de Death Metal francesa, os Gojira!
Com efeito, o Death Metal não é propriamente o tipo de música que se costume escutar em cerimónias oficiais. Mas como se isso por si só já não fosse bastante, o palco usado foi o histórico edifício da Conciergerie, local onde um dia a Rainha Maria Antonieta perdeu a cabeça na guilhotina.
Muito adequadamente, a banda de Death Metal Gojira interpretou uma canção do século XVIII, “Ah! Ça Ira”, um tema muito popular durante a Revolução Francesa, que incitava as gentes de então a acabar de vez com os aristocratas, com os nobres e com os padres (Ah! ça ira, ça ira, ça ira, les aristocrates on les pendra! Nous n'avions plus ni nobles, ni prêtres, Ah ! ça ira, ça ira, ça ira).
A mensagem da canção é até muito mais explícita e gráfica numa outra passagem, “Ah! ça ira, ça ira, ça ira, les aristocrates on les pendra! Et quand on les aura tous pendus, on leur fichera la pelle au cul”, o que traduzido para português, daria qualquer coisa deste género: “Ah! vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, os aristocratas serão enforcados! E quando todos os enforcarmos, vamos enfiar-lhes uma pá no…”
Há que convir, que esta mensagem dos Gojira contrasta grandemente com os discursos que normalmente se ouvem nas cerimónias olímpicas, nas quais o mais habitual é escutarem-se apelos à paz e à união entre os povos e nações do mundo.
Como já há muito se percebeu, em Paris a malta adora ser revolucionária e está constantemente pronta para contestar, chocar ou provocar, no fundo, serem uns eternos adolescentes é mesmo algo que os move por dentro e que não hesitam em trazê-lo cá para fora.
No início deste nosso texto, colocávamos a hipótese, de independentemente da idade que tivéssemos, houvesse sempre em nós uma alma de adolescente. Não é nada que outros antes já não tivessem pensado, só que o fizeram a propósito de Paris. Ernest Hemingway, no início do seu romance “Paris é uma festa”, coloca uma possibilidade, que cremos ser semelhante à nossa.
A frase com que Hemingway abre essa sua obra, nem é bem uma hipótese, é mais uma certeza. Segundo o autor, quem teve a sorte de em jovem viver em Paris, terá para sempre consigo o espírito desse tempo, ou seja, escreve algo de muito afim a ter-se durante a vida inteira uma alma de adolescente: “If you are lucky enough to have lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest of your life, it stays with you, for Paris is a moveable feast.”
Mas deixemos a festa de Hemingway e regressemos à festa olímpica. Só para termos um termo de comparação, recordemos agora a cerimónia de abertura do Euro 2004 que decorreu em Portugal. Nesse evento viram-se as caravelas tais qual como as que há quinhentos anos atravessaram os oceanos. Viram-se também danças minhotas, caretos de Trás-os-Montes e muitas outras coisas típicas, inocentes e decentes, tão próprias da cultura lusitana, como por exemplo, foguetes, que é coisa que faz sempre muito barulho e alegra o bom povo português.
Paris podia ter feito algo de equivalente, ou seja, celebrar o esplendor de Louis XIV, o Rei-Sol, as glórias militares de Napoleão ou os seus triunfais monumentos, mas não, escolheu celebrar um estabelecimento de má fama, que de inocente e decente nada tem, e cuja celebridade lhe advém precisamente do oposto, ou seja, de ser um lugar pecaminoso onde dantes se ia às meninas, beber até tombar, galhofar e bailar noite adentro: o Moulin Rouge.
É certo que hoje em dia o Moulin Rouge é um local mais a atirar para o turístico, todavia, a sua origem e vocação primeira é ser um lugar de alta libertinagem. A cerimónia inaugural dos Jogos Olímpicos celebrou-o, convidando para tal umas quantas bailarinas para dançar o Can-Can. Dança cuja coreografia consiste em raparigas a fazer piruetas impróprias para uma senhora de bem e em levantar as saias, tendo como momento áureo o final, no qual as meninas dançarinas se viram de costas para o público e mostram o respetivo rabo.
No entanto, a celebração dessa instituição cultural parisiense, o Moulin Rouge, não se limitou às bailarinas a dançar o Can-Can, pois a cantora Lady Gaga também se inspirou no mesmo assunto, e interpretou o muito sugestivo tema “Mon truc en plumes”.
Mas em matéria de novidades, a cerimónia não se ficou por aqui. A quem é que enquanto adolescente, nunca lhe ocorreu a ideia de subir ao telhado?
É uma espécie de fantasia juvenil que atravessa gerações, e se porventura o quiserem confirmar, basta irem ao Google e fazerem a seguinte pesquisa “adolescentes no telhado”. As notícias dedicadas a esse tópico são mais que muitas, e incidentes e acidentes que a esse propósito têm acontecido é coisa que infelizmente não falta. Mas dito isto, estava-se mesmo a adivinhar que em Paris íamos ter pessoal no alto do telhado.
De entre todos os lugares possíveis, os organizadores da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos decidiram escolher como palco para um espetáculo de dança, o telhado de um prédio. Não há outra conclusão a retirar que não esta, quem pensou ser essa instável e elevada localização, a ideal para se pular, rodopiar e fazer ballet, só pode ser alguém com uma alma de “teenager”.
E pronto, por aqui terminamos, mas não sem antes referirmos, que durante a cerimónia choveu copiosamente. Não podia ter sido de outra forma, quem é que enquanto adolescente não gostava de andar à chuva?
Só não gostavam “os certinhos” e muito obedientes, que jamais arriscavam fazer algo que estivesse fora dos planos, no fundo, os que já nasceram velhos e que devem ter visto com horror a tão diferente cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris.
Comentários
Enviar um comentário