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Um médico-poeta e vice-versa, sem medo de ser transdisciplinar


Atualmente não parece evidente que se junte ciência, literatura e arte, no entanto, ao longo de séculos e séculos todas elas andaram juntas e de mãos dadas. Os exemplos disso são imensos, mas nós vamos apenas referir dois, dos muitos outros possíveis.

O primeiro é por demais conhecido: Leonardo da Vinci. Não há quem não saiba, que o homem da Renascença, para além de artista e poeta, entre outras coisas mais, foi também inventor, engenheiro e anatomista. 
É certo que Da Vinci pintou a Mona Lisa só para deleito estético de quem a via, mas desenhou também com detalhe e perfeição, muitos e variados órgãos do corpo humano, tendo esses desenhos sido muito úteis para a prática de inúmeros clínicos durante umas boas centenas de anos.



Um segundo exemplo, é uma pintura de Rembrandt, da qual aqui há uns anos, quase todos os médicos tinham uma réplica pendurada na parede do respetivo consultório, “A lição de anatomia do Dr° Tulp”.

Nessa obra podemos ver uma dissecação, que era coisa raramente vista à época, mesmo por aqueles que estudavam medicina. O quadro de Rembrandt foi um marco, fez com que a anatomia fosse por todos considerada um saber, e já não uma espécie de bruxaria.

Com efeito, em séculos não assim tão distantes, dissecar um cadáver era considerado um ato pecaminoso, uma atividade diabólica, mas depois compreendeu-se que tal procedimento era indispensável ao avanço da ciência e da medicina, tendo para isso também contribuído a popularidade alcançada pela obra de Rembrandt.

A pintura foi encomendada pela Associação de Cirurgiões de Amsterdão, o quadro retrata uma aula de anatomia do Dr° Tulp, na qual ocorre a dissecação da mão esquerda de Aris Kindt, um marginal condenado à morte por assalto a mão armada.


Por alguma razão, ciência, literatura e arte foram-se afastando e especializando, tendo-se chegado à presente situação, em que todas aparentam ser coisas completamente diferentes e, de algum modo, até opostas, contudo, não o são, nem nunca o foram. Por assim ser, há quem atualmente faça por restabelecer essa antiquíssima relação, que tão frutífera foi para a humanidade.

Entre esses que querem voltar a reconciliar ciência, literatura e arte, há um português, de seu nome João Luís Barreto Guimarães. O dito é um conceituado cirurgião plástico da área oncológica no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e Espinho, e igualmente professor da Faculdade de Medicina do Porto. Mas para além disso, é também poeta.

Em 2022 foi distinguido com o Prémio Pessoa e mais recentemente com o Prémio Literário Glória de Sant’Anna pelo seu último livro de poesia, que se intitula “Aberto todos os dias”.

O próprio título do livro já nos dá pistas acerca daquilo de que nos fala, ou seja, do modo como de há uns anos para cá, o habitual descanso de fim de semana tem sido progressivamente sacrificado ao sacrossanto consumo.
Com efeito, cada vez são mais as lojas, os supermercados, os centros comerciais e outras atividades mercantis que estão permanentemente abertas, incluindo aos sábados e  domingos.

Esta atual evolução económica e tecnológica acelerada tem como consequência direta uma certa desumanização das gentes, não se estranhando portanto, que os problemas de saúde mental, as depressões e os estados de ansiedade tenham aumentado consideravelmente.

Na sua poesia, João Luís Barreto Guimarães reflete sobre acontecimentos quotidianos geradores de ansiedade, retratando situações que todos encontramos no nosso quotidiano, como por exemplo o estarmos constantemente a deparamo-nos com máquinas impessoais, que a pouco e pouco vão substituindo a interação que antes tínhamos com pessoas.

Só para que possam apreciar o tipo de poesia da sua autoria, aqui fica um poema seu:

Gostaria de partilhar comigo o resto da sua vida?

Para responder sim
marque 1. Para responder não marque 2. Caso
pretenda tempo para pensar
marque 3. Para responder
aleatoriamente à pergunta formulada
marque 4. Caso pretenda apoio técnico acerca
da vida a dois
marque 5. Para ouvir o significado da palavra
partilha
marque 6. [...]

Se lhe basta o som da minha voz (a

minha presença deste lado) o

modo como digo bom dia marque
o canto da página (regresse amanhã ao poema) e
comece tudo
do início.

João Luís Barreto Guimarães tem sido muito falado pelo estrangeiro, por ter concebido e também lecionar uma unidade curricular, cujo nome é “Introdução à Poesia e Medicina — Reflexões para uma abordagem interdisciplinar”, que faz agora parte do plano de estudos do Mestrado Integrado em Medicina.

A inspiração para criar essas disciplina que mistura ciência, literatura e arte, ter-lhe-á vindo do mote que há muito está inscrito no átrio principal do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto: “O médico que só sabe medicina nem medicina sabe”.



Dois dos maiores jornais mundiais dedicaram-se nas suas páginas a falar sobre João Luís Barreto Guimarães. Um foi o The Guardian, com um artigo intitulado “As with a poem, each patient is unique’:


O outro foi o El Pais, com o artigo El cirujano que enseña poesía a futuros médicos”:


A desconfiança que por cá existe relativamente a atividades que envolvem múltiplas disciplinas está patente num poema de João Luís Barreto Guimarães, “Bom dia, a Barbara Marzec”. 
Nesse poema o autor fala-nos de uma senhora que iria ser sujeita a uma pequena cirurgia, sendo que o médico-poeta e vice-versa, pediu-lhe que antes da intervenção ela lesse uma poesia da poeta polaca Wislawa Szymborska.

A operação correu bem, no entanto, o médico-poeta e vice-versa ficou convencido que a direção do hospital o iria chamar à atenção pelo seu devaneio transdisciplinar.

Quando Barbara entrou na Pequena Cirurgia
(para resolver a lesão na hemiface esquerda)
ninguém contava que lhe pedisse para
dizer
Wislawa Szymborska. Era
uma mancha disforme de
tantos por tantos centímetros
cuja excisão resultou
(graças a Deus?)
completa. Barbara levantou a voz e nisto
todos estancaram -
eu senti-me transportado pelo afã do asfalto
(o cheiro anestésico qual
odor a gasolina). De modo que estou a contar
(compreendo perfeitamente) ser
chamado à Direção. E ainda que tenha seguido
a elegância dos livros
(um vyricil 4-0 para os pontos invertidos
Monocryl 5-0 para a cesura da pele)
não espero senão
a expulsão.

Terminamos esta nossa deambulação sobre coisas transdisciplinares, ou seja, sobre ciência, literatura e arte e um médico-poeta e vice-versa, com um último poema de João Luís Barreto Guimarães, este chama-se “História clínica”:

As mamas da Dona Ana eram
um sítio maravilhoso. Maduras (qual
par de mangas) de entre elas
saíam coisas extraordinárias
(notas de 5 para os netos
lenços bordados no Minho) uma
ou outra medalha do mau-génio
do marido. Dessa vez veio à cidade e
o doutor ficou com uma -
ela deixou de poder encravar no meio delas
tudo aquilo e os santinhos
(deste lado de uma colina alta e generosa desse
um prado dividido). Num ano
levou-lhe a outra e a outra levou-lhe
o marido (ainda há mulheres com sorte:)
está enfim
livre de perigo.

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