É com alguma melancolia, que vamos vendo o turismo de massas a consumir a identidade de muitos lugares. Por exemplo, Nova Iorque, Barcelona e Veneza já aprovaram rígidas medidas de modo a travar este tipo de turismo. Com o tempo, terão verificado, que a continuarem ultra-turísticas, em breve deixariam de ser cidades e passariam a parecer-se a algo que se assemelha mais a um parque temático, do que propriamente a uma urbe.
Há um século o mundo era diferente, por via do turismo de massas e não só, atualmente é tudo muito mais igual. Seja em Xangai, no Rio, em Corfu, em Paris ou em Lisboa, as principais ruas de quase todas as cidades importantes são agora bastante semelhantes.
As pessoas vestem-se neste momento praticamente todas de idêntico modo, as montras das lojas são iguais seja a oriente ou a ocidente e, por fim, as multinacionais de fast-food ocupam múltiplos espaços, tornando tudo similar por todo o lado.
Veja-se a foto abaixo do início do século XX, tirada na ilha grega de Corfu num dia normal. Como é evidente, hoje em dia, já ninguém se veste assim em sítio nenhum, a não ser para alguma festividade ou para um qualquer espetáculo que inclua trajes tradicionais. Tanto faz que seja Corfu, Xangai, Paris, o Rio ou Lisboa, atualmente, todos se vestem de forma igual, seja qual for o lugar.
Se virmos uma qualquer foto atual das ruas de Corfu, como a que abaixo se segue, percebemos imediatamente, que a cena retratada tanto poderia passar-se em Istambul, como na Bahia, como algures nas Caraíbas ou no sul de Espanha.
Pouco distingue hoje uns lugares dos outros, exceto os seus monumentos históricos, de resto, as vestes são as mesmas, as esplanadas análogas, os espaços igualmente anónimos, os comes e bebes semelhantes e tudo, ou quase tudo, se apresenta como sendo praticamente equivalente.
Vem isto a propósito de um homem que viveu entre 1860 e 1940, o seu nome era Albert Kahn. Nasceu numa família pobre da Alsácia, no nordeste de França, no entanto, estudou e foi para Paris. Aí subiu imensamente na vida, fez-se banqueiro, e conseguiu acumular uma considerável fortuna, tornando-se um dos homens mais ricos do seu tempo.
Todavia, não é a vida de banqueiro de Albert Kahn, o que aqui nos interessa. O que nos importa é a sua vertente educativa. Como tinha muito dinheiro e convivia com as mais altas personalidades intelectuais, financeiras e políticas da Europa, Kahn decidiu aventurar-se num imenso projeto de educação das elites, a ele deu-lhe o nome de “Os Arquivos do Planeta”.
A sua ideia era simples, ou seja, fotografar as gentes e os lugares de todo o mundo para depois os mostrar. Tinha como intuito formar um enorme arquivo de imagens, que desse a ver como se vivia quer nos sítios mais próximos e comuns, quer nos lugares mais longínquos e remotos do planeta.
A sua crença era a de que, quanto maior fosse o conhecimento existente sobre os diferentes povos e as suas gentes, menor seria a probabilidade que houvesse discriminações, preconceitos e guerras.
No tempo de Kahn ainda não havia TV e o cinema era incipiente, consequentemente, o único método de dar a ver imagens reais de outras gentes e de muitos e diversos lugares, era tão-somente a fotografia.
Foi precisamente nessa época, que inventaram uma nova técnica, o autocromo, um método que permitiu, que pela primeira fez na história da humanidade, existissem imagens fotográficas a cores.
O próprio Albert Kahn percorreu vários continentes dos quais captou imagens, mas, para além disso, a sua extensa rede de conhecimentos, permitiu-lhe estabelecer contatos com fotógrafos de todo o mundo, que regularmente lhe iam enviando imagens de muitos e diferentes países e regiões do planeta.
Abaixo uma imagem da Noruega no início do século XX.
Albert Kahn foi guardando todas essas imagens de modo a criar os seus Arquivos do Planeta e, quando nós agora olhamos essas antigas fotos, neste nosso tempo presente, é-nos absolutamente evidente que elas nos falam de um mundo que já não existe em lado nenhum. Não existe aqui, nem no Sri Lanka, nem em Pequim, nem no Irão e nem em Paris.
Se observarmos a imagem abaixo de Paris do início século XX, em momento algum reconheceremos a atual cidade do século XXI. Sendo efetivamente uma foto, e portanto retratando a realidade, a imagem confunde-se facilmente com uma pintura. Tal deve-se ao facto desse mundo que existia há apenas pouco mais de cem anos, nos parecer agora ser de ficção.
O inventário fotográfico formado por Albert Kahn contém cerca de 72000 imagens provenientes de cinquenta diferentes países. Seja qual for a foto que vejamos dessa extensa coleção, a sensação que temos, é sempre a de estarmos perante a visão de um mundo onde tudo não só era diferente de atualmente, mas onde tudo era também diferente de país para país, de região para região e até mesmo de cidade para cidade.
Abaixo uma imagem de mulheres e crianças num mercado de rua na Sérvia, país que, recorde-se, se situa aqui mesmo na Europa, não muito longe de Itália.
É impossível olharmos para a foto e não sentirmos que estamos diante de uma visão de um mundo já extinto, que visto à distância de pouco mais de um século, quase nos parece ser mágico e pertencer tão-somente aos livros de contos.
Albert Kahn acreditava que as viagens e as fotos que delas resultavam contribuiriam para o conhecimento mútuo e para a paz entre os povos. O que ele jamais poderia ter imaginado, é que um século após ter iniciado os seus Arquivos do Planeta, as imagens se reproduziram a uma velocidade estonteante, e que no momento atual, a cada segundo que passa, fossem milhões as fotos tiradas e publicadas por todos os lados do globo.
No tempo de Albert Kahn uma imagem fotográfica era uma coisa rara e difícil de se conseguir, contudo, ao dia de hoje, qualquer um dispõe de um smartphone ou de um qualquer outro dispositivo, com o qual pode realizar milhares de imagens apenas numas poucas horas.
As imagens tornaram-se completamente banais e são a coisa mais fácil de se obter neste nosso mundo, porém, a isso veio acrescentar-se um outro fenómeno, ou seja, em grande medida, as imagens tornaram-se também redundantes e inúteis, e isto porque uma larguíssima parte delas são praticamente iguais.
Comprová-lo é simples de se fazer, basta ir à internet, a uma qualquer rede social ou a um outro sítio qualquer, e imediatamente nos deparamos com milhares de imagens semelhantes. Quem necessitará ainda de ver a enésima selfie de um amigo, familiar ou conhecido, ou a milésima vista de um célebre monumento ou de uma qualquer paisagem bonita?
Olhe-se para a foto abaixo, pertencente aos Arquivos do Planeta de Albert Kahn, e não há como não ver, que estamos diante de um modo de olhar único. O fotógrafo à época sabia nitidamente estar a captar uma imagem rara, queria portanto retratar algo, que a quem o visse causasse encantamento e espanto.
Encantamento e espanto, é precisamente o que a torrente de imagens a que continuamente agora estamos sujeitos, já não nos causa. Umas poucas imagens, não a maioria, longe disso, podem até parecer-nos engraçadas ou inusitadas, mas isso não é de todo em todo o mesmo que encantamento e espanto.
Numa imagem, o haver espanto pressupõe que vejamos nela qualquer de coisa de único. Sendo que, encantamento implica que entrevejamos numa imagem algo de mágico. Onde há hoje ainda imagens com algo de único e mágico para vermos?
Haverá com certeza espanto e encanto em algum lado, mas não certamente nessa contínua sucessão de vulgares e equivalentes imagens, com que quotidianamente somos bombardeados. Aí só há mais do mesmo, sobretudo, quando essas imagens retratam viagens.
Abaixo temos uma foto recente de gente diante do mais célebre templo helénico, o Partenon. É fácil ver que o espanto e o encanto estão ausentes.
Compare-se a imagem recente acima, com uma outra abaixo, que faz parte de “Os Arquivos do Planeta” de Albert Kahn, sendo que ambas têm como tema antigos templos gregos.
Mas, se quisermos, podemos também ver uma outra imagem da Grécia, também esta de há um século e que faz igualmente parte do arquivo de Albert Kahn. Comparando com a recente, é absolutamente evidente a diferença entre um ajuntamento atual e um outro de antigamente.
Que ninguém nos interprete mal, nós não somos saudosistas e daqueles que creem que dantes é que era bom, apenas sabemos que agora como sempre, vale a pena educar o olhar para que este se espante e encante.
Albert Kahn concebeu os seus Arquivos do Planeta como uma forma de educar o olhar das elites intelectuais, financeiras e políticas com que convivia, mas hoje em dia, desde 2021, qualquer um pode ver as imagens que ele recolheu, estão todas acessíveis ao público em geral nos arredores de Paris, no que é atualmente um museu.
Kengo Kuma, o arquiteto japonês que desenhou o novo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian a inaugurar no próximo mês de setembro, desenhou também o Museu Albert Kahn que se situa na periferia de Paris.
Nesse local, para além de podermos ver imagens desse mundo desaparecido de há um século em que todos eram diferentes, é possível igualmente dar um passeio por jardins totalmente distintos.
Na sua grande propriedade nos arredores de Paris, Albert Kahn fez no início do século XX erguer diversos tipos de jardins, uns ao estilo inglês, outros ao francês e ainda alguns ao modo japonês. Também esse foi um projeto educativo, a saber, uma forma de educar o olhar e de simultaneamente promover uma visão de paz e concórdia entre as mais diferentes gentes.
E pronto, por aqui findamos, com a certeza de que “Yes we Khan”, ou seja, sim é ainda possível vivermos e vermos de modos completamente diferentes, não há porque nos rendermos à massificação das cidades e das imagens.
Mesmo para terminar, aqui fica um pequeno resumo da vida e obra de Albert Kahn, um homem que acreditava que era através do espanto e do encantamento que nos causam as imagens de gentes e de lugares distintos, que se promove a paz no mundo.
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