Já temos andado neste agosto mal-dispostos e tristonhos por muitos e variados lados, no entanto, nesta nossa série de verão, que entra hoje no seu sétimo capítulo, ainda não fizemos um passeio por terras de Portugal. Está mal.
Logo relativamente à lusitana nação, que tão conhecida é por ter um carácter melancólico, cultivar a saudade e cantar o triste fado, é que não temos nada a dizer? Como é evidente, não pode ser, por consequência, “às armas, às armas, contra os canhões marchar, marchar”, força Portugal, que não és menos que ninguém, e também tens tristezas e má-disposições com fartura para mostrar ao mundo.
Não vale a pena pensar muito, no que toca à nação valente e imortal, não há nada como o fado para fazer derramar as lágrimas e deixar a malta cabisbaixa. Assim sendo, é acerca das tristes e fatalistas histórias cantadas pelos fadistas do nosso país, de que hoje vos vamos falar.
Mas temos uma surpresa, pois vamos aqui trazer uma abordagem completamente nova, um distinto ponto de vista para tratar deste assunto. O ângulo sobre o qual pretendemos abordar o fado, será relacionando-o com problemas habitacionais e urbanísticos.
Se é de fado que vamos falar, ou bem que esse é de Coimbra ou bem que de Lisboa, não há outros. Nesse contexto, avancemos e comecemos pelos problemas habitacionais coimbrões de antigamente, mais concretamente, pelos dos estudantes e das tricanas. Para quem eventualmente não saiba, as tricanas eram raparigas simples, mas dignas e orgulhosas, da Coimbra de outros tempos.
Todos os dias se as via passar pela cidade levando consigo uma bilha, iam ao Mondego abastecer-se de água para as suas precisões. Nesse ir e vir, as robustas moças não raras vezes se deparavam com um estudante, que qual lobo mau, metia conversa com elas com o claro intuito de lhes trocar as voltas e as fazer perder no meio da floresta.
O certo é que nessa época, um estudante era um rapaz de prestígio, culto, bem-formado e com futuro garantido. Em resumo, era um bom partido. Mas mesmo que não fosse para casar, ainda assim, as raparigas das bilhas não desdenhavam de passar um bom bocado com os rapazes, pois mais não acontecesse, divertiam-se à brava e adquiriram uma certa patine resultante do convívio com gente fina e com estudos, pois que aprender e estudar, eram coisas a que elas jamais poderiam sequer aspirar.
São célebres as petiscadas regadas com vinho maduro que então se organizavam. Dantes, para se conviver era ir direto para uma tasca onde houvesse fartas iguarias para se aconchegar a tripa, tipo chanfana, pezinhos de coentrada e leitão à bairrada, e lá vai disto.
Bebida também não faltaria, pois que a pipa era grande e o vinho dela jamais deixaria de jorrar. Ao fim do repasto, toca de cantar o fado, que é coisa que cai bem a seguir a uma refeição fausta e bem regada. Para mais, quando se está de barriga cheia e de pinga bem abastecido, o fado puxa sempre ao sentimento.
Aqui fica mais uma foto de um estudante a apresentar os seus argumentos a uma bela tricana, que com certeza estava extremamente comovida com os nobres sentimentos que o rapaz por ela tinha.
Conhecendo uma tricana que com ele engraçasse, o rapaz estudante tinha muitos dos seus problemas de habitação resolvidos. Um quarto custava caro, mas havendo um poiso certo onde pudesse passar a noite descansado, sempre poupava na mesada e estava mais agasalhado durante o tempo que levasse a completar a licenciatura.
Todas essas histórias refletiam-se na poesia popular de então, um exemplo:
“E rapazes e raparigas... lume e lenha, que lareiras, que incêndios não
acenderão nas velhas casas que sobem as encostas do Mondego, nos sítios
recônditos de Coimbra, que reçumam amor e poesia!
Mas lá vem a nota melancólica: são aves de arribação os estudantes, vêm e
vão, e, um dia, vão e não vêm mais...”
E por estes singelos versos já se vai vendo, que após os tempos de folgança com os estudantes, as moças coimbrãs acabavam sozinhas e melancólicas, tristonhas e mal-dispostas, enquanto eles partiam e iam à sua vida. Aqui fica mais uma quadra popular onde tal se reflete:
“Agora são tudo amores
À roda de mim no cais,
E mal se apanham Doutores,
Partem e não voltam mais.”
Toda essa tristeza das moças tricanas que viram partir os seus amores doutores, a quem antes deram abrigo e aconchego, foi cantada por Amália no fado “Não sei porque te foste embora”.
No vídeo que abaixo vos deixamos, Amália canta esse mesmo fado numa cena do filme “Capas Negras”, no qual a fadista interpretava uma tricana apaixonada, que no fim do curso foi abandonada.
Amália lamenta-se imensamente que o seu rapaz, que antes andava sempre metido lá em casa, agora já não lhe bata à porta. Acompanhamos no decorrer do fado, a dilacerante luta interior que a fadista tem consigo mesma, pois quer esquecer, andar para a frente, mas não o consegue. Repare-se por exemplo neste triste verso:
Não sei se gostas de outra agora
Se eu estou ou não para ti já morta
Não sei, não sei nem me interessa
Não me sais é da cabeça
Que não vê que eu te esqueci
Não sei, não sei o que é isto
E já não gosto e não resisto
Não te quero e penso em ti
Aqui fica o fado “Não sei porque te foste embora”, que nos fala do problema habitacional que é e sempre foi, as residências para estudantes. Fala-nos também do que é sentir-se uma casa vazia, um problema de habitação de que pouco se diz nas notícias, mas que é sentido e real:
Como se dizia no refrão de um outro fado “Mondego minha alma já não chora, pois que o amor de estudante não dura mais que uma hora…”, por conseguinte, é chegado o momento de irmos andando, vamos para Lisboa.
Na capital o problema é outro, também de cariz habitacional, mas mais moderno e com outros contornos. O facto é que um casal partilha um apartamento, mas na realidade dão-se mal, e isto ao ponto de ele de raiva lhe ter rasgado o diário e lhe ter dado cabo do vestido. Ela não se ficou atrás, queimou-lhe o seu jantar favorito e quebrou-lhe o seu disco favorito.
Levaram a disputa tão longe, que ele lhe atirou com um cinzeiro e lhe escondeu as chaves do carro. Ela, para retaliar, ofereceu roupa dele ao porteiro e também o cão. Ele contra-atacou dando um anel dela à vizinha e apagando-lhe do computador um romance que ela tinha terminado de escrever. Para ele não se ficar a rir, ela saiu para ir dançar com o seu melhor amigo (dele).
Enfim, podíamos continuar por aqui fora, mas cremos que já todos terão percebido que a vida daquele casal punha-os a ambos tristonhos e mal-dispostos, razão pela qual, resolveram os seus problemas habitacionais da forma como se descreve no seguinte verso: “Achando que também era de mais juramos pra nunca mais, foi cada um pra seu lado”. No fim, hão de verificar que a história teve um “happy end”.
O fado intitula-se “A Guerra das Rosas” e o intérprete é Camané:
Relativamente a problemas habitacionais e fado, estamos falados. Vamos agora então dedicar-nos às questões urbanísticas, que também são um triste e recorrente assunto das lides fadistas.
Vamos ficar com os mesmos intérpretes, Amália e Camané. Um problema urbanístico muito antigo em Lisboa, é o que vai desde o Intendente, passa pela Mouraria e chega ao Martim Moniz. Toda essa zona continua indefinida e pouco cuidada, muito embora na última década tenha havido nítidas melhorias.
Hoje em dia há por aí uns patetas que dizem umas alarvices, tentando desse modo convencer as gentes ignorantes, de que esse pedaço de cidade foi invadido por emigrantes, e que dantes era o local de morada de honestos e trabalhadores homens e mulheres de puro sangue português.
É preciso ser-se muito desatento para se acreditar em tais patranhas, logo o próprio nome do bairro, Mouraria, nos dá uma pista sobre os seus habitantes originais. Depois, ao longo do século XIX e XX, o bairro tornou-se um local infame e boémio, onde o mais que havia era má-vida, navalhadas, fados e guitarradas.
No entanto, todo esse bairro podia ter-se indo reconfigurando como aconteceu com outros bairros populares de Lisboa, todavia, durante o tempo do Estado Novo, as autoridades decidiram arrasar com todo o casario que existia onde hoje em dia é a Praça do Martim Moniz, de modo a terem uma vistosa praça e uma moderna avenida que ligasse a Baixa às Avenidas Novas.
O resultado foi que destruíram a unidade orgânica e urbanística de toda aquela zona, e quase um século depois, ao dia de hoje, ainda lá há feridas urbanas por cicatrizar. Aliás, o Estado Novo fez exatamente a mesma coisa na alta de Coimbra, tendo também aí mandado arrasar o casario para fazer um espaço imponente, contudo, em ambos os casos, o que lá ficou são coisas pouco bonitas e bastante desconchavadas.
Amália cantou no fado “Vou dar de beber à dor” a transformação de uma casa que passou de “viveiro de amores” a “casa de penhores”, era a da Mariquinhas. Tal fado é uma perfeita ilustração da indefinição urbanística que há muito caracteriza toda a zona da Mouraria, que apesar das sucessivas intervenções continua com ar tristonho e mal-disposto:
Para finalizarmos, outra vez Camané, “A minha rua”. “Mudou muito a minha rua
Quando o outono chegou” é o que nos diz o fadista, e já por aí vemos um anúncio de que estamos cada vez mais perto do fim de agosto e logo em seguida do verão.
O facto é que o Camané o que aqui nos canta é como o ambiente urbano muda conforme as estações do ano. Ele lamenta-se disso, e é certo que há quem diga que no outono/inverno a rua está muito mais sossegada, mas isso nada lhe importa, pois só espera pelo próximo verão para ter a rua ao seu jeito. Ao dele, que não ao nosso, pois como todos os que nos leem sabem, gostamos mais do tempo frio e este calor deixa-nos tristonhos e mal-dispostos.
“A minha rua” na voz de Camané:
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o oitavo capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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