Na imagem de capa temos uma foto com três manequins profissionais. A foto foi tirada na Polónia em 1970 durante uma passagem de modelos. Na década de 70, nos países socialistas do leste da Europa, era esta a ideia de glamour que tinham para o verão.
A foto fez história porque registou uma das primeiras iniciativas da moda polaca para estar “up to date” e ser tão glamorosa como a ocidental. Nós não temos nada a acrescentar, cremos que foi uma boa tentativa e que a imagem fala por si. É certo que envelheceu mal, e que hoje em dia temos ideias de glamour distintas das da Polónia da década de 70. Todavia, as modas são sempre volúveis e o que atualmente achamos muito sofisticado e glamoroso, daqui a uns anos pode aparecer a futuros olhos como sendo simplesmente ridículo.
Se há coisa que nós detestamos é o glamour, sobretudo o associado ao verão e à praia. Neste décimo segundo capítulo da nossa série de verão “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto” vamos falar-vos de como uns quantos pedantes transformaram as férias de verão junto ao mar numa coisa muito chique, linda, divertida e glamorosa, ou seja, numa coisa sem graça absolutamente nenhuma.
Comecemos pelo Algarve, onde até mesmo nas aldeias de pescadores mais humildes e escondidas, e nas mais recônditas praias, surgiram de há uns tempos para cá glamorosos lounges e beach-clubs com música chill-out a tocar todo o santo dia, desde as primeiras horas da manhã até alta madrugada.
São espaços com uma decoração cool, com apontamentos vindos do oriente ou da América do Sul, e com uma arquitetura atenta ao meio-ambiente. Não há cá cimento nem pedras, nem tijolos, é tudo feito em madeira, que é um material leve, reutilizável e natural.
Nesses lounges e beach-clubs servem-se fundamentalmente cocktails e fazem-se sunsets parties. Também há gelados e sorvetes, sendo que não de marcas industriais, mas sim de fabrico artesanal, sem corantes nem conservantes, como é evidente. A malta que lá vai parece toda muito animada e divertida. Em dias especiais até há eventos, e eventos são momentos em que há muito quem queira estar presente.
Os eventos iniciam-se ali por volta das sete e meia, oito horas da tarde. Em tais ocasiões, o pessoal aparece bem aperaltado, envergando a sua melhor indumentária de verão, eles de calções e sapatos de vela, elas de vestidos largos, frescos e decotados com estampados com motivos floridos ou tropicais. Vêm todos muito bem penteados e claro está, de óculos escuros postos, uma vez que está a começar a anoitecer e o sol à noitinha encandeia muito.
Com sorte, por vezes nos eventos até aparece uma celebridade, tipo uma estrela menor da TV, um jogador de futebol cuja vida já lhe correu melhor ou alguém do jet-set que foi pago para abrilhantar a festa com a sua presença.
Se porventura aparecer um fotógrafo e houver a expectativa que saia uma reportagem numa qualquer revista, então é certo que o evento vai ser de arromba, toda a gente vai estar espetacular, super-mega-hiper divertida e feliz, em síntese, glamorosa.
Concluindo, uns quantos pedantes, com a mania dos glamours, deram cabo das férias de verão de muita gente, instalando os seus lounges e beach-clubs por todas as praias do Algarve, transformando-as num inferno de chill-out, cocktails e eventos.
Ao que parece, o Algarve está perdido, já não há nada a fazer. Desde a invasão de lounges e beach-clubs, que todas as praias estão praticamente arrasadas. Mesmo que se vá para a ponta da praia mais distante do lounge ou do beach-club, ainda assim, desde a manhã à tarde, que se vai ter como som de fundo, os maiores sucessos dançantes e românticos dos anos 80 e depois, lá para o fim do dia, aquando do sunset, é chill-out mais agitado com o som bem alto.
O que nós vos podemos dizer, é que com exceção dos glamorosos e glamorosas, com os lounge e beach-clubs, toda a restante gente fica tristonha e mal-disposta. Então uma pessoa já não pode estar na praia simplesmente a escutar o ir e vir das ondas? Tem que obrigatoriamente escutar uma banda sonora a acompanhar o mar? Quanto a isto, a nossa postura é radical, abaixo as férias de verão com glamour, fora com os glamorosos e glamorosas, que vão todos para a terra deles.
Como quem habitualmente nos lê, já há de ter reparado, nós não temos grande amor à verdade e aos factos. A verdade e os factos, na maior parte dos casos, são somente coisas chatas e pouco interessantes, por vezes são até desagradáveis e inconvenientes, por assim ser, aquilo de que gostamos mesmo é de lendas, de histórias, de mitos, de narrativas inventadas, de metáforas, de hipérboles e de tudo o que torna a realidade mais fascinante, do que na verdade e factualmente é.
Se é verdade ou mentira, tanto nos faz, o que nos importa é se é autêntico. Sophia de Mello Breyner criou com os seus poemas um Algarve de lenda, um sul mítico que na verdade nunca existiu. No entanto, é nesse Algarve autêntico que nasceu a sua poesia, no qual nós cremos. Vejamos um seu poema, precisamente intitulado “Algarve”:
A luz mais que pura
Sobre a terra seca
Eu quero o canto o ar a anémona a medusa
O recorte das pedras sobre o mar
Um homem sobe o monte desenhando
A tarde transparente das aranhas
A luz mais que pura
Quebra a sua lança
Abaixo uma foto de Sophia na praia de Dona Ana, perto de Lagos, ao fundo o recorte das pedras sobre o mar:
Mas vejamos um outro poema de Sophia, este dedicado à aldeia algarvia de Cacela Velha, que dizia ela ser um bem selvagem, belo e irrepetível. O poema intitula-se “A conquista de Cacela”:
As praças fortes foram conquistadas
por seu poder e foram sitiadas
as cidades do mar pela riqueza
Porém Cacela
foi desejada só pela beleza
Por fim, um último poema de Sophia a propósito da cidade de Lagos. Neste poema de 1975 a poeta revela-nos uma espécie de temor ou premonição, a saber, que uma vez passado “O dia inicial inteiro e limpo”, que foi como ela definiu o 25 de Abril de 1974, viessem então os empreendedores imobiliários e os construtores civis “E sua luz de prumo e de projecto” e destruíssem o Algarve e Lagos, onde ainda o sol reinava transparente.
Lagos onde reinventei o mundo num verão ido
Lagos onde encontrei
Uma nova forma do visível sem memória
Clara como a cal concreta como a cal
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente
Lagos que digo como passado agora
Como verão ido absurdamente ausente
Quase estranho a mim e nunca tido
Foi um país que eu encontrei de frente
Desde sempre esperado e prometido
O puro dom de ter nascido
E o sol reinava em Lagos transparente
Lagos lição de lucidez e liso
Onde estar vivo se torna mais completo
— Como pode meu ser ser distraído
De sua luz de prumo e de projecto?
Ou poderemos Abril ter perdido
O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou nosso tempo mais concreto?
Será que vamos paralelamente
Relembrar e chorar como um verão ido
O país linear e transparente
E sua luz de prumo e de projecto?
Aqui fica um excerto de um filme de João César Monteiro de 1979, onde Sophia de Mello Breyner nos fala de um mar inventado. Um autêntico oceano de lendas e mitos:
O Algarve poético, irreal e autêntico de Sophia, já não se vislumbra no Algarve inautêntico do glamour real e concreto. As férias de verão junto ao mar eram por definição um tempo poético e propício a que se inventassem mitos e lendas. Quem não guarda em si como uma preciosa memória aquelas lendárias férias de verão na praia em que…(a preencher pelo leitor).
Mas para que se inventem mitos e lendas, é preciso que haja intimidade com o que nos circunda e que o espaço surja perante nós completamente despido. Quando o espaço está nu diante de nós, é quando com ele criamos intimidade e começamos a dizer de uma praia que é a nossa, quando conversamos com o mar e quando construímos castelos de areia. Em resumo, é no espaço nu e despido que criamos as nossas lendas e mitos, os nossos castelos, as nossas mais poéticas memórias.
Um espaço nu, despido, está disponível para dele sermos íntimos, para que olhando e falando com ele criemos as nossas mais fundas recordações. Um espaço vestido e ocupado com lounges e beach-clubs que permanentemente emitem música ambiente tipo chili-out nunca será o nosso, jamais permitirá a existência de qualquer intimidade, nem aí nascerão mitos e lendas. Aí apenas acontecerão glamorosos eventos que logo cairão no esquecimento.
O Algarve perdido resiste apenas na irrealidade poética de Sophia Mello Breyner. Mas assim sendo, onde podemos nós agora neste país à beira-mar plantado, encontrar um espaço despido e nu, com o qual possamos criar intimidade e chamar nosso. Um outro Algarve que tal como o de dantes seja o do branco, do sol, do azul e da cal.
Não será certamente na costa alentejana, pois toda ela foi colonizado por gente rica e fina, e até por outros, que mesmo não sendo ricos nem finos, gostam de andar nas proximidades de quem o é, pois sentem-se melhor assim. Ou seja, toda a costa alentejana está também cheia de glamour e hoje em dia, é o que mais faz capas de revistas.
Não vale igualmente a pena pensar em destinos mais a norte, pois aí as águas são frias, é frequente o céu estar nublado e haver uma grande ventania. Assim sendo, quer-nos cá parecer, que a única solução para quem quer ter férias de verão à beira-mar em sítios quentes, aconchegantes, íntimos, despidos e nus é, como nos bons velhos tempos, ir fazer campismo.
Os ricos e finos não gostam de acampar, e os glamourosos e glamourosas também não, por consequência, parece ser esse o modo de reavivarmos umas férias de verão à beira-mar, em que estejamos livres de chill-out, de cocktails e de sunset parties.
Mas, horror dos horrores, descobrimos com consternação e tristeza, que existe um novo conceito, que de norte a sul do país, está a transformar o campismo numa coisa e fina glamourosa, o glamping.
Talvez quem nos lê nunca tenha ouvido falar no glamping, contudo, a coisa vai de vento em popa. No glamping é tudo do bom e do melhor, na verdade é tudo de luxo. Apesar de se estar numa tenda, os quartos são equivalentes aos dos hotéis de cinco estrelas, dispõe-se de jacuzzi privado com deslumbrantes vistas do pôr do sol, de spa e de refeições confeccionadas pelos melhores chefs. O glamour é tanto nesses parques de campismo, que nos faz correr abundantes lágrimas pelos olhos abaixo.
Para quem queira perceber do que falamos, aqui fica um artigo do jornal Expresso:
Estando o Algarve, o Alentejo e até o campismo todos tomados pelos glamourosos e glamourosas, só no resta fazer como Sophia e criarmos um local poético, imaginário, nu, despido e irreal do qual possamos dizer que é nosso.
Por nós esse local poético e imaginário pode ser um parque campismo, daqueles que havia antigamente, selvagem e tudo, e sobretudo sem glamour absolutamente nenhum.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o décimo terceiro capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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